O que é coisa de mulher?

Bruna e Matheus
4 min readMay 3, 2020

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por Bruna Soares (@brusoaresaguiar) & Matheus Ribeiro (@matheusripe)

“Uma única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentiras, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história” (Chimamanda Adichie, 2009) [1]

Tradicionalmente os indivíduos são condicionados a se comportarem de determinadas formas e acreditarem que pertencem a um único lugar. No caso das mulheres, há um consenso social de que a casa é o ambiente ao qual pertencem e esta narrativa é reafirmada através dos mais variados espaços (política, religião, publicidade), como maneira de condicionar os comportamentos femininos geração após geração. Sendo, assim, uma estratégia para a manutenção do status-quo e justificativa das disparidades de gênero.

O debate em torno da dicotomia público/privado (Okin, 2008) [2] é fundamental para analisar as relações de gênero na sociedade. O capitalismo conformou que os homens deveriam ocupar os cargos de trabalho produtivo e às mulheres caberiam os trabalhos relativos ao cuidado e reprodutivos, dessa forma foi estruturado o sistema econômico, político e cultural atual (Federici, 2017) [3], e esta compreensão serviu para contar a história das civilizações.

“Todo o dispositivo que visa criar controle e condicionamento segrega tácticas que o domesticam ou o subvertem; contrariamente, não há produção cultural que não empregue materiais impostos pela tradição, pela autoridade ou pelo mercado e que não esteja submetida às vigilâncias e às censuras de quem tem poder sobre as palavras ou os gestos” (Chartier, 2002, p. 137). [4]

Um resultado da reafirmação de uma única possibilidade para as mulheres é a ausência de representatividade e identificação no mercado de trabalho. Ainda que, atualmente, haja mais pessoas do sexo feminino com formação superior, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) informou que, em 2018, o sexo masculino esteve 26,5% mais empregado [5]. As mulheres, por sua vez, são atuantes na esfera doméstica, tendo o dobro de chances de serem trabalhadoras familiares sem remuneração. Acontece que, em 2020, a Ong OXFAM identificou que para a realização deste tipo de serviço meninas e mulheres gastam 12,5 bilhões de horas, e que, caso fosse contabilizado, renderia à economia mundial em torno de US$10,8 trilhões, o que é três vezes maior do que o valor da indústria tecnológica [6].

Uma outra informação divulgada pela OIT, ao observar cargos de elevado poder de decisão, como por exemplo administração de empresas, os homens têm quatro vezes mais chances de estarem representados nestes postos. Esta impossibilidade de ocupar espaços de reconhecimento e que tenham um maior retorno financeiro, ainda que possuam maior formação acadêmica do que os homens, reforça a limitação dos espaços femininos. E o fato de não verem mulheres representadas em campos como tecnologia, diplomacia, política e ciências limita a imaginação e o reconhecimento de meninas com outros espaços que não sejam tradicionalmente descritos como femininos, ou “guetos rosa” (Farias e Carmo, 2016) [7].

Como Chimamanda bem afirma em sua palestra no TedTalk em 2009, o perigo de uma única história é que reduz os espaços de ação dos sujeitos. Os estereótipos escondem realidades e experiências de vida que contradizem o senso comum, limitando o conhecimento acerca da realidade. Se retirado o véu do patriarcalismo, pode-se notar que diferentes marcos da evolução social são protagonizados por mulheres: Hildegard de Bingen escreveu livros sobre botânica e medicina durante a Idade Média e tem, inclusive, um asteroide batizado com seu nome (898 Hildegard), Maria Gaetana Agnesi, matemática espanhola, foi a primeira mulher a escrever um livro de álgebra e a ser convidada para lecionar matemática em uma Universidade, Marie Curie ficou conhecida como a “mãe da Física Moderna” [8] e Carolina Maria de Jesus ultrapassou barreiras raciais e econômicas ao se tornar uma das primeiras escritoras negras do Brasil.

A omissão destas vivências e da capacidade de resistência feminina é resultado de uma ideologia patriarcal que busca podar as alternativas para as mulheres, como uma maneira de restringir seus corpos e reafirmar o exercício do poder do homem. As histórias não apenas deixam de ser contadas, mas são narradas buscando dar centralidade ao masculino e, ao longo do desenvolvimento social, foram sendo criadas as mais diversas ferramentas para o apagamento das mulheres, e, assim, instrumentos para reforçar o lugar delas fora do protagonismo.

Atualmente, as redes sociais vêm auxiliando na disseminação de discursos estereotipados e na ampliação destas diferenças. Apesar de possuírem diversos fatores benéficos, como a desterritorialização dos espaços, que reduziu as barreiras geográficas a partir da comunicação (Levy, 1996) [9], e ter ampliado a difusão de discursos e práticas feministas (Holanda apud Sayuri, 2019) [10], as novas mídias vêm sendo utilizadas para promover narrativas menos aprofundadas. Este fato se deve ao desenvolvimento das chamadas “bolhas”, que são fruto da implementação dos filtros algorítmicos nas redes sociais, nos quais os pensamentos de um grupo passaram a girar em torno de um mesmo significado, não sendo sugeridas ideias novas (Pariser, 2012) [11]. Ou seja, neste universo o preconceito e as diferenças são moldados para continuarem cada vez mais fortes.

É neste contexto que a publicidade da Google — uma das maiores empresas do século XXI, que tem como um dos seus principais serviços a busca pela internet — se faz tão importante. Mostrando, através do protagonismo de uma menina negra (56,10% da população brasileira se declara negra [12]) e de uma narrativa empática, que o “lugar das mulheres é onde elas quiserem”. Esta propaganda é uma evidenciação a respeito dos perigos de uma única história.

Elaboração: Google (2020)

QUEM SOMOS?
Bruna Soares de Aguiar
é doutoranda em Ciência Política (IESP/UERJ), mestra em Sociologia e Cientista Política. Atua como pesquisadora sobre gênero em interseção com política externa, migrações e cooperação internacional.
Matheus Ribeiro Pereira é mestrando em Economia Criativa (ESPM), possui especialização em Comunicação Organizacional Integrada e graduação em Comunicação Social. Atua como designer e pesquisador de comunicação política digital.

COMO CITAR ESTE TEXTO EM TRABALHOS ACADÊMICOS:
AGUIAR, B. S.; PEREIRA, M. R. O que é coisa de mulher? 2020. Disponível em: https://medium.com/%40brunaematheusoficial/o-que-%C3%A9-coisa-de-mulher-e19e1dd9f8f8 . Acesso em: (data).

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Bruna e Matheus

Ela, pesquisadora em gênero (IESP/UERJ). Ele, pesquisador em comunicação política digital (ESPM/RJ). Juntos, os pensamentos vão mais longe.