Carta #1 || devote-se ao Brasil comigo

Bruna Kalil Othero
6 min readJul 8, 2020

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O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Carlos Drummond de Andrade

Brasil, 22 de junho de 2020.

Querida leitora, querido leitor,

Essa é a primeira cartinha da newsletter quinzenal Carta aos navegantes. Sou grande entusiasta da epistolografia, o gênero literário das cartas, e acho maravilhosa a possibilidade de escrever para tantos destinatários de uma vez só — alô, internet! Por isso, agradeço muito a cada um de vocês por se inscreverem, torcendo para que gostem do conteúdo. Inscreva-se na newsletter aqui.

O formato dessas cartas é muito simples: ela sempre será dividida em algumas seções. NA PRAIA COM BRUNA K será a reunião dos conteúdos que tenho produzido, textos, vídeos, entrevistas, etc. ÚLTIMAS ONDAS NO OCEANO LITERÁRIO será uma curadoria de links e notícias do mundo da literatura, arte & cultura nos últimos quinze dias. E cada cartinha terá uma seção especial com uma citação literária seguida de comentários críticos. A de hoje vai ser maior por ser a primeira, então a tentativa [já fracassada] é de cobrir 2020 até agora, mas as próximas vão ser mais curtas, viu. Ai, já tô animada!

NA PRAIA COM BRUNA K

🔹 Nas terças e quintas de julho, vou dar uma oficina 100% online intitulada ESCREVER DE QUATRO (risos), sobre leitura e escrita de literatura erótica. O rolê é na Estratégias Narrativas, espaço dedicado à literatura criado pela maravilhosa escritora e amiga Laura Cohen. Corre que são poucas vagas e já lotamos uma turma!

🔹 Postei minha primeira vídeo-aula no YouTube, intitulada QUENGA NEOCLÁSSICA, comparando Pabllo Vittar e Claudio Manoel da Costa. Sim, um poeta arcadista e uma drag queen têm muito a ver!

🔹 Aliás, quem quiser se inscrever no meu canal, agradeço muito, estou postando performances por lá e vão sair vídeos-ensaios com comparações inusitadas em breve. Inclusive aceito sugestões.

🔹 Dei uma entrevista muito estimulante ao podcast #EureK, sobre divulgação científica, falando da minha experiência pesquisando literatura na universidade. Falamos dos embates entre academia e sociedade, a dificuldade do ensino de literatura no Brasil, y mucho más.

🔹 Pensando nesses tempos sombrios, indiquei um poema de Hilda Hilst e um de Carlos Drummond de Andrade na excelente coluna Notícias de outras ilhas, da Revista Cult, a convite do poeta Tarso de Melo. É do poema “Hino Nacional”, do DruDru, que tirei a epígrafe dessa primeira carta.

🔹 O César Cardareiro, ator que deu vida ao Pedrinho da minha infância e ao Bentinho da minha adolescência, se emocionou com um depoimento meu, e fiquei pensando em como os artistas são fulgores de luz decisivos — essas pessoas que nem conhecemos e que mudam tão drasticamente a nossa vida.

ÚLTIMAS ONDAS NO OCEANO LITERÁRIO

🔹 Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, ganhou nova tradução nos EUA, e esgotou em apenas um dia. Por isso, reuni alguns fios que fiz no twitter sobre o bruxo do cosme velho. Também indico a entrevista da tradutora Flora Thomson-DeVeaux para o caderno Pensar do Estado de Minas e esse episódio do podcast Expresso Ilustrada, que conta com depoimento do querido amigo e professor da UFMG Eduardo de Assis Duarte. Bom demais ouvir ele metendo o pau no Castro Alves e exaltando o nosso bruxinho.

🔹 O Grupo Galpão de teatro fez um filme-ensaio absolutamente maravilhoso: Éramos em bando (2020), experimento feito a partir da peça Quer ver escuta, que estava pronta mas não estreou devido à pandemia. A dramaturgia é feita a partir da poesia brasileira contemporânea, com textos de poetas como Paulo Henriques Britto, Dimitri BR e Ana Martins Marques. Infelizmente, o filme foi exibido ao vivo e não está mais disponível, mas aqui tem uma live entre a atriz Lydia Del Picchia e Marcelo Castro, que dirigiu o grupo nesse processo.

🔹 A Antofágica, editora incrível que publica clássicos com edições belíssimas, reuniu, em um post do instagram (!), os motivos de Italo Calvino para lermos os clássicos — livros, filmes, músicas, textos em geral. Aliás, eu converso com esse texto do Calvino no ensaio “Literatura numa hora dessas?”, onde reúno algumas razões pelas quais a literatura, a arte e a cultura são essenciais pra vida humana existir. Spoiler: uma delas é a literatura não serve pra nada.

🔹 Uma das pessoas mais inteligentes que conheço e querido amigo Rafael Silva, doutorando na UFMG, fez um vídeo-ensaio comparando o Brasil de 2020 com Antígona, do luto à luta. Emocionante e necessário.

🔹 Simplesmente o Porta dos Fundos fez o melhor vídeo sobre interpretação de texto e educação. Com frases como estas: “Sim recebi pelo whatsapp mas isso não é relevante, tudo é poesia.” & “O eu-lírico não está muito a fim da você-lírica”. Obrigada por tudo Porta.

🔹 O twitter surtou com esse trecho de uma carta foda da Frida Kahlo pro Diego Rivera em 1953, e trago aqui algumas conclusões a partir disso:
a) minorias que são artistas deveriam receber indenização
b) a carta é importante porque captura a nossa subjetividade pela história
c) amigas e amigos, tomem cuidado com a lábia dos homens artistas, podem até ser inteligentes mas é tudo safado

BRASIL, MONSTRO MOLE & INDECISO

Já que essa é a primeira carta e eu adoro metalinguagem, a seção surpresa de hoje será um trecho de uma das minhas atuais leituras, Carlos & Mário, reunião da correspondência entre os dois gigantes modernistas, com comentários do próprio Drummond e do crítico Silviano Santiago. Aliás, a imagem que ilustra essa newsletter é uma foto da primeira carta de Carlos pra Mário, escrita em 1924 de Belo Horizonte. É incrível ver a troca profícua entre os Andrades: o jovem Carlinhos e o guru intelectual do meio literário nos anos 20, provavelmente o maior epistolográfo da história da literatura brasileira. Separei este trecho, da resposta de Mário pra primeira carta de Carlos, porque ser brasileiro em 2020 tá foda, então a gente olha pro passado pra ver se ganha mais esperança:

São Paulo, 10 de novembro de 1924.

[…] Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. […] Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. […] Com a inteligência não pequena que Deus me deu e com os meus estudos, tenho a certeza de que eu poderia fazer uma obra mais ou menos duradoura. Mas que me importam a eternidade entre os homens da Terra e a celebridade? Mando-as à merda. Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei. A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são pro Brasil, é a minha razão de ser da vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma vaidade por outra. Foi o que fiz. A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração espontânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota pensar em ficar, principalmente quando não se sente dentro do corpo aquela fatalidade inelutável que move a mão dos gênios. O importante não é ficar, é viver. Eu vivo.
[…]
Um abraço do
Mário de Andrade

Fico tão emocionada com essa troca de cartas. Me impressiona a força e o vigor do mestre ao seduzir, pela linguagem, seu jovem receptor. Ser artista brasileiro é sacrificar-se à sua nação, esse monstro mole & indeciso que não entende a magnitude da sua própria cultura. E talvez essa minha cartinha seja, também, uma tentativa de pedir a você, que me lê, que se devote ao Brasil e à arte junto comigo. O sacrífico de Mário, de Carlos, de Joaquim, e de tantas outras e outros, não foi em vão. Porque, como disse a Hilda, enquanto vive um poeta, o homem está vivo. Vivamos, então.

Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
Se gostou, me conta; se não, também. É só responder o e-mail.
❤️

com amor,
Bruna K

p.s. essa primeira cartinha é dedicada aos meus dois queridos amigos, André Figueiredo e Beatriz Fontenelle, que me incentivaram e me ajudaram nessa empreitada de criar newsletter. amo vocês!
p.s.2. você me acha na internet aqui.

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