A Imagem ao Redor

bruno barros
22 min readAug 25, 2020

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Texto originalmente publicado na Revista Húmus (vol. 10, n. 29, 2020) http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/revistahumus/article/view/13971

RESUMO: O texto procura tatear o universo simbólico inaugurado pela relação estabelecida entre o espectador e as imagens que permeiam o mundo ao redor. Com o escopo de pensar uma nova política da estética e uma nova estética da política, na esteira do trabalho do teórico de Jacques Rancière, tematiza-se a questão do dispositivo da imagem — formas de enunciação do real e a definição do dito, da forma do dito e a própria possibilidade do dizer, em um contexto de imbricação entre política e estética –, elegendo três fios temáticos (o autoritarismo, o horror e o capitalismo) para guiar a reflexão. Valendo-se de um estilo hermenêutico, o texto explora algumas produções cinematográficas que, em maior ou menor medida, souberam reinventar os dispositivos de visibilidade e de produção de sentido, articulando os temas de maneira a viabilizar novos caminhos para o imaginável, o dizível e o possível.

Palavras-chave: espectador; dispositivo; política da estética.

ABSTRACT: The text seeks to understand the symbolic universe inaugurated by the relationship existed between the the viewer and the images around the world. With the scope of thinking about a new aesthetics policy and a new aesthetics of politics, in the terms of the theoretical work of Jacques Rancière, the work puts in focus the question about the image’s device — forms of enunciation the reality and configuration of the said, the form of what was said and the very possibility of saying, in a context where politics and aesthetics overlap -, choosing three thematic threads (authoritarianism, horror or capitalism) to guide the reflection. Using a hermeneutic style, the text explores some cinematographic productions that, to a greater or lesser extent, know how to reinvent the devices of visibility and production of meaning, articulating the themes in a way to make new paths possible for the imaginable, the sayable and the possible.

Keywords: viewer; device; aesthetics of politics.

INTRODUÇÃO

Negando as tradições pretéritas, reformulando os critérios de avaliação da vida boa e propondo um novo paradigma para o conhecimento, a modernidade eclodiu no horizonte da história. Ostentando a linearidade do discurso científico, o valor da verdade universal e as relações de causalidade como guias seguros para decodificação do mundo e da natureza, todo conjunto de saber que a partir dali pretendesse constituir um corpo de conhecimento reputado científico precisaria endossar os critérios propostos, erigidos sob a lógica da demonstrabilidade e da possibilidade de refutação. O mundo poderia, enfim, ser conhecido por intermédio do método.

O presente trabalho não transita pelas vias tradicionais do método científico e, nesse sentido precisamente, caminha na contramão do projeto da modernidade. Herdeiro do giro linguístico materializado pela filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein em Investigações Filosóficas, transgressora das fronteiras sintático-semânticas a que a linguagem até então se encontrava circunscrita, e da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer[1], precursora do círculo hermenêutico como o acontecer da fusão de horizontes, o trânsito das ideias delineadas se dá pela via da circularidade em busca de respostas contextuais e não universais.

Assumindo, a um só tempo, que a linguagem não mais figura como um acessório à disposição do sujeito no processo de conhecimento, mas, antes, como própria condição de possibilidade (matéria prima do pensamento), e que o processo de conhecimento é fundamentalmente marcado por uma fusão de horizontes que se interpenetram — a bagagem prévia articulada e não articulada do intérprete ou espectador em contraste com a dimensão de sentido apresentada pela obra — , reconhece-se, via reflexa, seu condicionamento histórico-temporal e os marcos teóricos claros que participam no processo de elaboração.

Não mais com Platão, a par de conhecer a essência das coisas que encontram no mundo das ideias um correspondente ideal; não mais com Kant, na tentativa de compreender a estrutura humana de conhecimento e a produção de sentidos objetivos. Antes, imerso na linguagem, consciente dos pressupostos que antecipam sentidos, o texto ingressa sobriamente na circularidade hermenêutica para visualizar os frutos advindos de um diálogo sincero entre o autor, as informações hauridas dos referenciais teóricos delimitados e dos dados inscritos na realidade. Uma via de mão dupla em que a compreensão só é possível como autocompreensão.

A peculiaridade desse processo que privilegia a fusão dos horizontes posicionados nos dois espectros envolvidos (o espectador-intérprete, de um lado, a obra do outro) é que ele produz alguma coisa diferente do que já se tem de antemão em ambos os polos, na medida em que o produto decorre da relação associativa perpetrada. A fusão é sempre um acontecimento singular, porque o horizonte do intérprete, que é um ser-no-mundo, é um construir-se continuamente à luz de outras relações e do processo de semiotização da realidade, primando, pois, por uma circularidade que convida à revisão constante das pré-compreensões e a um inexorável refinamento do processo de intepretação.

Daí por que o vetor eleito é um estilo[2], e não um método.

Não menos importante é o posicionamento da ideia de imagem trabalhada no bojo do quadro teórico proposto. Partindo da reflexão Freudiana a respeito da evolução humana em direção ao bipedismo[3], concorda-se com a hipótese de que o advento da postura bípede implicou certa atrofia do olfato (acompanhado do recalcamento do cheiro) e o consequente deslocamento do foco sensitivo para a visão, redimensionando a relação do homem com o mundo ao redor, que passou, a partir dali, a ser predominantemente imagética, representando aquilo que dentro da teoria psicanalítica é chamado de passagem da fase instintiva à pulsional (JORGE, 2000).

À luz dessa nova perspectiva relacional com a imagem ao redor, não só o homem passa a ser outro como também o mundo à volta é reinterpretado. Na exata medida em que o processo de atribuição de sentido acontece de um novo ponto de vista, novas tonalidades, nuances e colorações exsurgem no universo das sensações. O que o mundo imagético nos diz, afinal, sobre as formas de organização do mundo, sobre os sentidos autorizados, sobre aquilo que nos chega como natural e diante do qual parece não existir vias possíveis para refutação? O que o mundo mostra, enfim, que sem ele não poderia ser percebido?

Para a trajetória imaginada, elegem-se três conceitos polissêmicos que, por essa razão mesma, inserem a reflexão em níveis instáveis de compreensão, deslocada de uma dimensão dogmática de análise e insuscetível de apropriação monopolística: o autoritarismo, o horror e o capitalismo. Conquanto colocados como unidades temáticas autônomas, estabelecem, em verdade, uma relação de interdependência entre si. Quando contrastados com as descrições das obras cinematográficas delineadas ao longo do texto, os conceitos são superpostos, confundidos e ressignificados: o autoritarismo dialoga com o horror, assim como o capitalismo pode assumir traços autoritários e um mesmo evento pode comportar as três coisas ao mesmo tempo.

E é justamente por isso que, a despeito da delimitação dos conceitos, o trabalho não adota uma divisão estrutural para tratar de cada um deles. À medida que as ideias vão sendo edificadas em perspectiva argumentativa, espera-se que eles, estáticos a princípio, sejam diluídos no decorrer do texto à luz das recombinações semânticas sugeridas. Ora fragmentados, ora contextualizados, podemos, a partir deles, inferir graus, níveis e contextos que rechaçam abordagens maniqueístas ou peremptórias.

Mas por que as produções cinematográficas como eixo? Os filmes, independentemente do que se espera deles ou do sentido que supostamente carregam, são em si mesmos um horizonte. A imagem-movimento[4] inaugurada pelo cinematógrafo, diferente das outras artes não industriais, constitui um movimento automatizado (automovimento) que se mostra e, portanto, destacado do espectador enquanto instância autônoma, o filme, per si, permite ser visto sem que a ação do espectador seja instada nessa dinâmica.

Como portas de entrada a lugares nunca antes visitados, o sentido filme é sempre fruto da síntese associativa entre as perspectivas em jogo, o que significa dizer, em última instância, que o lugar a que se chega é sempre um lugar novo e, como são infinitas as maneiras de articular os elementos — montagem, figurino, posição, tipos de lente e ângulos — , apresenta-se com uma via fértil para repensar o dito, a forma do dito e a legitimidade do dizer, além das formas possíveis de enunciação do real. Em outras palavras: uma nova concepção da política a partir da estética e da estética à luz da política, na esteira do trabalho teórico de Jacques Rancière.

A aposta na fertilidade da via eleita para empregar novos contornos à estética e à política, no entanto, é só mais uma via entre tantas outras possíveis. Desacompanhado de qualquer pretensão totalizante, o texto que se desenvolve ostenta como marca o seu condicionamento no tempo e no espaço e, assim, reconhece tudo o que pode ser inferido do nível do não dito (ato ilocucionário) e assume todas as pré-compreensões não conscientemente articuladas que se disseminam para o texto. Há tempos sabemos que não somos senhores da própria casa, afinal.

É, aliás, sobre isso mesmo que o texto versa em grande medida: a infinidade dos dispositivos de enunciação do mundo. Convicto de que o investimento em formas criativas, remodeladas, combinadas, trocadas e invertidas pode oferecer um novo panorama ao abrir mais uma janela da percepção — assim como a ênfase na visão reposicionou o homem no mundo que habita — , discute-se a versatilidade dos dispositivos como um tributo à infinidade de ordenações e categorizações que a vida comporta.

Do giro linguístico à hermenêutica, da pragmática da linguagem à circularidade do discurso, da langue à parole, de Freud à consagração da visão, da visão à hegemonia da imagem, da imagem estática à imagem-movimento, do movimento ao dispositivo, do dispositivo à política, da política à estética, da estética à política, do concreto ao lúdico: o texto se abre para defender a abertura como modo de vida; recorre à polissemia para fazer apologia à polissêmica como pensamento, e sonha para convidar a sonhar.

DESENVOLVIMENTO

— Tem gente lá fora.

É a última frase de uma cena de três planos verbalizada por Elisabeth Teixeira, a viúva de João Pedro Teixeira, antes da interrupção das filmagens de Cabra Marcado para Morrer, em 31 de março de 1964. No dia seguinte, primeiro de abril de 1964, tropas do exército brasileiro — como se fossem elas mesmas, ironicamente, o referente daquela enunciação que assumiria contornos de um presságio — chegariam ao Engenho da Galileia para inaugurar um hiato de quase vinte anos entre o início das filmagens e o lançamento do longa-metragem de Eduardo Coutinho.

De uma ponta à outra, vinte anos de desdobramentos que viriam a amplificar o símbolo do protagonista daquela história, João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé — maior associação de camponeses do nordeste à época, com cerca de sete mil sócios — , assassinado em 1962, pelo óbvio contraponto revolucionário performado na contramão dos interesses dos latifundiários da região. Vinte anos que viriam a ampliar o espectro de interrogações sobre o autoritarismo — migrando da compreensão das circunstâncias de um singular assassinato à reflexão das consequências da adoção oficial de uma forma de vida fascista — , e a reposicionar vítimas, atuações, diretores, histórias e, no limite, o próprio espectador.

Se, por um lado, a ideia apriorística de Cabra Marcado para Morrer consistia em contar a história por intermédio da atuação dos próprios camponeses, que reviviam, em um tom pedagógico, o recontar dos fatos, mas a partir da perspectiva do estrangeiro, orientada por um roteiro inflexível, inclinado ao desenho de personagens unidimensionais que apenas viessem a confirmar a narrativa pré-elaborada, materializando um modelo conscientizador que delimitava o espaço do saber e do não-saber; de outro, quando da retomada das filmagens, em 1981, não havia lugar para qualquer linha de continuidade em um horizonte dramaticamente reformulado (RAMOS, 2006). Abandonando o itinerário do primeiro roteiro, o recomeço consistiu em revisitar o local das filmagens, reunir os camponeses e resgatar a história a partir de novos pressupostos, outras referências e, substancialmente, outro lugar de compreensão do mundo dentro de uma historicidade radical.

Embaralhando dores, demandas e afetos, a aleatoriedade dos desígnios da vida deu conta de trocar e somar posições. Aquele que antes acreditava saber e, justamente por isso, se colocava na condição de (re)contar a história, voltou como vítima e personagem; o personagem que antes atuava dentro dos limites pensados para evidenciar um ponto, refutou as balizas de outrora e desdisse o que era sinceramente esperado que fosse dito; no lugar de um protagonista, um fio temático que atualizou relações e redimensionou estereótipos; no lugar do narrador onisciente, a horizontalização do plano da narrativa para marcar uma instância de troca de experiências e memórias, tomando o cuidado, em todo caso, de não propor nenhuma equivalência entre realidades e percepções dos produtores e personagens. Diretor-personagem, vítima-diretor, diretor-vítima, personagem-vítima-diretor-roterista: a imprevisibilidade da vida mesma reorganizando as formas de contar uma história, de elaborar um trauma e de entender por um recorte o mundo ao redor. Lugares trocados e exatamente os mesmos, ao mesmo tempo.

Explícita ou não, a ruptura da expectativa linear projetada na relação obra-intérprete-sentidoinstaura uma nova cadeia de sentidos imagináveis. Dissenso, intitula Jacques Rancière, quando desorganiza a leitura tradicional que acredita existir uma linha reta entre o pensado e o sentido, e propõe uma perspectiva na qual figuram autonomamente autor, obra e destinatário: o autor cogita e elabora; a obra, espaço-temporalmente condicionada, representa e convida; o espectador, de um ponto de partida só seu, rearticula em seu horizonte e dá o tom rarefeito da experiência inédita. Dissenso como reconhecimento de que, de um lado, não existe monopólio viável da cadeia de afetos desencadeada nem tampouco dos sentidos potenciais de um determinado objeto (uma obra de arte, um filme), e, de outro, à luz de uma concepção política da estética, de que é possível e preciso repensar quem pode dizer, o que pode ser objeto do dito e os termos do dizível, redefinindo, em última instância, novas formas do possível e do imaginável (RANCIÈRE, 2014, p. 63).

As produções artísticas que ensaiam novas formas de apresentação do real e do irreal só são mal digeridas ou consideradas despropositadas quando articuladas no bojo de uma relação mimética[5] com a imagem, na qual o espectador se coloca na condição de extrair alguma orientação deontológica para agir, uma virtude a ser desenvolvida ou mesmo compreender uma espécie de mensagem sutil que chegaria ao final da obra como um arremate de sentido, o que justificaria a experiência em última instância, como se a imagem, em si, contivesse uma amálgama de cenas e símbolos tal que desse forma a uma equação comum àqueles que souberam manejar as chaves de leitura calculadamente fornecidas pela trama.

Um novo relacionamento com a imagem e, portanto, uma nova estética da política, capaz de repensar os dispositivos de expressão do real, permite reorientar as perguntas para os problemas que se apresentam em um falso tom de ineditismo: é preciso buscar compreender a nossa incapacidade de lidar com a profusão das imagens ao redor, que vai desde a publicidade intragável que nos espreita até a dinâmica do espetáculo da informação que nos aterroriza e mobiliza afetos não desejados, ou, ao contrário, parece mais profícuo repensar a relação que travamos com a imagem, os dispositivos a que recorremos para apresentar o frívolo e o cruel e a obviedade dos discursos que gravitam ao redor de discursos monolíticos?

Quando Michael Moore lançou, em 2002, o documentário Tiros em Columbine para contar a história do massacre na Columbine High School, em 1999, o caminho mais esperado a ser percorrido, simétrico às expectativas sensacionalistas mais corriqueiras de uma audiência conhecida, seria a exploração amiúde das imagens de vídeo registradas e o destaque das lágrimas em curso daqueles que ainda procuravam um nome para o irrepresentável. Não que artifícios apelativos não tenham sido utilizados, porque, sim, evidentemente que foram; mas, quando o longa inclinou-se à investigação sincera dos elementos estruturais que concorriam para a eclosão daquele tipo de acontecimento, sem esboçar, de antemão, qualquer resposta palpável — assumindo, inclusive, o não saber como ponto de partida — , abriu-se espaço para o universo do improviso e do inacabado.

Ao entrevistar o cantor Marylin Manson, apontado por uma parcela da classe política conservadora, à época, como exemplo emblemático da cultura de ódio que fomentava tragédias dessa natureza, Michael Moore pergunta o que ele diria, caso tivesse a oportunidade, às crianças e à comunidade de Columbine; o entrevistado, talvez sem esperar que assim pudesse provocar uma reflexão sobre a própria possibilidade e conveniência de se aquilatar a dor do outro a partir de um horizonte não compartilhado, respondeu: eu não diria uma única palavra; eu ouviria o que eles têm a dizer.

Quando outro episódio trágico arromba o país do american dream — um garoto de apenas seis anos de idade, depois de apanhar a arma de fogo do tio e levá-la à escola, assassinou uma colega de classe de também seis anos de idade — , Moore elabora uma pergunta cujo horizonte inaugurado pela resposta não tinha espaço para ser explorado no contexto proposto, embora provocasse um desconforto que exigia uma reflexão: onde estava a mãe daquele garoto? Resposta: trabalhando em dois empregos, compreendidos por uma jornada de setenta horas semanais. Como o salário percebido ainda assim não era suficiente para bancar o aluguel, deixou o filho com o irmão, tio da criança, para ir ao trabalho. O final da história já foi antecipado.

Se não problematizamos os dispositivos de apresentação, concordamos com modelos que se ajustam às lógicas que não são as nossas ou, no mínimo, com as quais não concordaríamos se nos déssemos conta, nos desacostumamos a demandar a humanização dos processos de produção de sentido a partir da imagem e deixamos de exigir novos acoplamentos afetivos possíveis. A imagem do nosso instante[6], impregnada da crueza dos tratores e retroescavadeiras que amontoam caixões em valas comuns, intermediada pela avaliação de profissionais do prognóstico, embora veiculem a informação que precisa ser conhecida e ajude a implementar melhores práticas coletivas, impessoaliza e desistoriciza aqueles indivíduos ao serem percebidos em termos estatísticos: sem nome, sem lápide, sem individualização do espaço, sem choro nem vela. A informação precisa mesmo oxigenar as percepções e munir os espectadores de melhores elementos para a ação; mas qual é o papel da ênfase no choque nessa dinâmica?

Rilthy Panh, no documentário A Imagem que Falta, em meio aos poucos rastros do passado não destruídos, procura contar a história da ditatura do Camboja protagonizada pelo Khmer Vermelho entre os anos de 1975 e 1979. Recorrendo a dioramas (réplicas animadas de cenas tridimensionais em escala minimizada), não apenas apresenta ambiência e contexto à luz de uma perspectiva humana singular, mas, com ainda mais força, conta uma história sobre contar histórias. Catalogando outros elementos fáticos que amparam a narrativa, o diretor instrui didaticamente a visualização de duas ideias fundamentais: é absolutamente viável, sem desnaturar os fatos, dar forma ao hediondo por intermédio do seu avesso; e, confirmando o ajuste do nome ao filme, explicita a potência da imagem para dar corpo aos afetos.

O investimento em novos dispositivos não é senão um investimento em formas mais humanizadas de ver o mundo; formas outras de autocompreensão em direção ao inabordável, ao que deixamos de falar porque incomoda ou porque julgamos não existir articulação léxica suficiente. O lúdico, o cômico, o caricato, o alegórico, o pitoresco, o improvável e o fantasioso funcionam como vias de acesso a dimensões que deixamos de visitar pela preferência à brutalidade do real, que nos guia por caminhos cômodos porque conhecidos. Mas se o mundo, que existe, só ganha contornos de realidade quando a ele atribuímos sentido, de quantas formas distintas podemos articular os elementos que nos compõe (pré-compreensão) e os elementos que nos chegam (eventos do mundo) e, portanto, quantas são as configurações do real que nos escapam? Quantas deixaram de nos convidar a sonhar?

Gilles Lipovestky parece mesmo ter razão quando afirma que a ambiência do movimento de maio de 68 é muito melhor descrita como uma paixonite pela Revolução, desacompanhada de um engajamento de fundo, do que o renascimento de uma mobilização social por uma ruptura radical (LIPOVETSKY, 2009, p. 285). Radicou-se sob a plataforma do efêmero e da sedução, como uma grande celebração que articulava os símbolos e fetiches imbuídos do espírito revolucionário, mas de fato nada revolucionários. Diferentemente do que sugere, no entanto, não parece um processo decorrente da falência da ideologia, mas o aprimoramento da perspectiva hiper-individualista neoliberal (não menos ideológica) difundida em todos os aspectos da vida, que faz questão de incluir elementos da crítica — romantizados, idealizados e dissolvidos em uma atmosfera de pacifismo — como forma de refutá-la[7]. No limite: investimento em um tipo de relação fundamentalmente estética com a imagem ao redor e o financiamento da avidez pelo incessantemente novo.

Roddy Piper, ápice dos referenciais estéticos mais prestigiados pelo ocidente, ao encarnar o protagonista de John Carpenter em They live, John Nada, reuniu os elementos mais clichês do herói americano para performar satiricamente épicos confrontos bélicos contra alienígenas capitalistas que dominavam veladamente o mundo. Caracterizados por expressões faciais fatasmagóricas, os aliens, dotados de trejeitos burgueses, realizam encontros secretos em corredores subterrâneos, confabulam nos bastidores e trabalham incessantemente pela cegueira dos seres humanos. Em um esforço hercúleo para apresentar a verdade e expor a opressão capitalista, inicia-se uma jornada de desafios e aventuras — alusivas aos clássicos roteiros hollywoodianos mais conhecidos — que delineiam uma crítica quase em termos literais, convidando o espectador a vivenciar uma história hiperbolicamente fictícia, mas que propõe, em última instância, um novo dispositivo de visualização da crítica que outrora fora cooptada e transformada em um artigo de moda de uso sazonal.

Novos espectros do possível acessados por vias marginais.

Novos horizontes em velhos pontos cegos. E é assim que, tematizando os sentidos que não gozam do mesmo estatuto de destaque da visão, Parasita (Boong Joon-ho) e O Som ao Redor (Kleber Mendonça) trasladam olfato e audição, respectivamente, para a perspectiva da imagem. Enquanto imagem, pois, o cheiro e o som são concebidos no bojo de uma plataforma que autoriza a percepção de um sentido a partir de outro e, assim, cheiro, som e imagem fundidos são ressignificados em um mesmo eixo de debate — as contradições da sociedade de classe — , convidando o espectador a experimentar novos ângulos sensitivos.

O cheiro, embora lateralizado enquanto figura temática no primeiro filme, compõe a narrativa e confere amplitude à clivagem desenhada entre os personagens. O pequeno Da-song, filho mais novo da afortunada família Park, não tendo ainda compreendido o sistema de valores que enquadra o odor na vida social, algo que, naturalmente, é absorvido na forma de habitus[8] à medida que as respostas que prescindem de articulação são automatizadas, verbaliza que Chung-Sook e Kim ki-taek, que na verdade formam um casal, têm o mesmo cheiro. Quando buscam contornar a situação para evitar quaisquer suspeitas, lavando as roupas de cada um com um tipo diferente de sabão, a filha, Ki-jung, cética, antecipa que nada adiantaria porque, na verdade, o cheiro viria do porão (insalubre e úmido) que impregnava as roupas. Em outro momento, O Sr. Park, sem imaginar que os integrantes da família Kim se escondiam debaixo da mesa central enquanto aguardavam o melhor momento para bater em retirada, compartilha sua irritação com o novo motorista, Kim-ki-taek, e compara o seu odor com o de um rabanete velho.

A particularidade é que o cheiro está inscrito em um quadro interpretativo que precede a película e, portanto, tem o condão de dilatar, recuar e rearranjar os sentidos propostos de acordo com o seu ajuste ao contexto esboçado. Uma vez reconhecido que o cheiro é aquilo sobre o que não se fala ou, no limite, sobre aquilo que se fala com uma prudência incomum que se socorre de eufemismos para não constranger — o fétido é recalcado e alvo constante de um programa de neutralização dos eflúvios que imbrica higiene, bem-estar e boa convivência, ao passo que o perfumado é festejado, embora tenha que observar limites e a medida certa para não ser encarado como inoportuno[9] — , a perspectiva pouco explorada do cheiro invade a imagem para sublinhar ideias não confessadas que constituem o imaginário burguês a respeito do pobre. Constrangendo, enfim.

O som, como figura imagética central no segundo filme (O Som ao Redor), atravessa toda a narrativa como um elemento que aguça a audição enquanto objeto de representação da imagem. Essa proposta ambígua que mistura sensações convida o espectador a reparar os ruídos difusos que permeiam a realidade das grandes cidades, e, consequentemente, refletir sobre a vida que se leva em meio a mecanismos de segurança, os medos que nos visitam, a mesquinhez das nossas aspirações materialistas, as contradições sociais experimentadas dentro de casa (na relação com os empregados domésticos), no condomínio (a reunião marcada para discutir a demissão do porteiro) e na rua (o segurança humilhado e advertido de que o orelhão da rua não é de favela). Interfone, porta, porteiro e portaria; elevador, chave, cadeado, tranca, casa: que tipo de construção a trilha do som pode provocar?

Se se percebe, pois, que o dispositivo é capaz de desorganizar, desconstruir e fragmentar para reapresentar uma nova dimensão do percebido, somos também habilitados a reconhecer o que nos limita, o que nos serve, o que foi embaçado, distorcido e negligenciado. A reconhecer, também, como são pobres as maneiras disponíveis à vista para buscar a igualdade e executar atos de solidariedade, quase sempre reduzidas ao encontro verticalizado entre aquele que tem em sobra e o que não tem — um encurvar-se fugaz que sai e retoma a posição ereta, condenando e confirmando a falta, ao mesmo tempo — , muitas vezes por meio de um intermediário que se legitima como responsável por receber e alocar recursos excedentes destinados ao universo oficialmente chamado de filantropia. Daí não percebemos a manutenção interessada da estrutura que produz a falta e a constante aposta em sua institucionalização; como, por que e por quem.

Seja a informação, a publicidade, a arte, a crítica ou o horror celebrado, a imagem ao redor nos compõe e a compomos como horizontes fundidos desde que a visão recebeu o posto privilegiado dos sentidos no mundo contemporâneo. Desde que a cidade apagou a conveniência da palavra e elegeu a distância do olhar frívolo. A imagem não vale por si mesma na exata medida em que nosso universo simbólico não se impermeabiliza. E, por mais que haja alguma homogeneidade dos afetos quando mobilizados em certa direção e de uma determinada maneira, a percepção nunca será a mesma porque as interações são radicalmente singulares; por mais que existam consensos a respeito das formas mais efetivas de apresentação do dado, sempre dispositivos alternativos estarão de soslaio, à espreita na porta da percepção inexplorada; e por mais que se possa esperar e provocar uma cadeia retilínea entre o choque e o espanto, a dor sempre será objeto de uma experimentação irrepetível.

E ao que não se repete, o singular; ao que não se rememora, a ficção; ao que não se diz, o lugar de fala; ao inabordável, exsurgem as palavras de José Virgílio, antigo camponês da liga do Sapé. Depois de compartilhar a experiência de passar vinte e quatro horas em pé preso em um espaço de um metro quadrado rodeado de excremento até o peito, elabora, à sua maneira, como mais ninguém poderia fazer, o indizível: nada como um dia após o outro, uma noite no meio e as graças de nosso Senhor Jesus Cristo chegando de hora em hora. Ou alguma coisa assim.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interrogação do mundo certamente admitirá respostas múltiplas, caminhos vários e uma gama infindável de conclusões, umas mais e outras menos razoáveis. De todas entre tantas possíveis, aqui se sublinha uma, sem interditar nenhuma outra, anunciada como afirmação embora implicada em uma profunda reflexão que acaba abrindo a questão e, naturalmente, rompendo com o roteiro tradicional das conclusões: o mundo pode ser diferente.

E o mundo diferente que se propugna exsurge da constatação de que não existem essências ou ordens transcendentes que, de fora, definem a ordem e o lugar natural das coisas que efetivamente estão disponíveis ao nosso juízo e deliberação. Na mesma medida em que um país pode escolher entre regimes e sistemas de organização e deliberar conjuntamente sobre os critérios éticos para uma vida vivida na coletividade, uma cidade, por exemplo, pode se organizar em torno de outros valores e edificar espaços mais humanizados, uma notícia pode ser veiculada de maneira provocativa e criativa sem recorrer a clichês e um médico pode optar por tratar o doente no lugar da doença. Assim sucessivamente.

Os dispositivos, nesse contexto, não constituem um fim em si mesmo, mas instrumentos engajados no processo de ampliação das perspectivas de visualização de lugares, ideias e sentidos que ainda não conseguimos enxergar, seja porque acreditamos que as coisas são naturalmente o que são (cenário em que a resposta mais usual é a acomodação), seja porque mecanismos interessados consagram um só tipo de formatação do real sem esbarrar em qualquer resistência efetiva (cenário em que a reação ordinária é a resignação), seja porque o sonho perdeu o assento (cenário em que a arte precisa ser a resposta). São, pois, instrumentos para dar corpo aos sonhos que deixamos de sonhar e para fomentar o investimento nas potencialidades que deixamos de apostar.

Afinal, quantos são os mundos que não conhecemos?

REFERÊNCIAS

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[1] Perspectiva teórica apresentada em: (GADAMER, 1997).

[2] Estilo no sentido proposto por pela hermenêutica filosófica gadameriana.

[3] Sigmund Freud constrói a reflexão sobre a relação entre bipedismo, recalcamento orgânico e a primazia da visão de maneira difusa, embora esteja em alguma medida estampada no caso clínico conhecido como o “Homem dos Ratos” e em pelos menos dois textos do autor: “Meus pontos de vista sobre o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses” (1906) e “Sobre a tendência universal à depreciação da esfera do amor (1912)”.

[4] O conceito é trabalhado por Gilles Delleuze (2018).

[5] Conceito trabalhado em: (RANCIÈRE, 2012).

[6] O texto foi escrito em maio de 2020, quando o mundo inteiro experimentava os desdobramentos da maior pandemia dos últimos cem anos, causada pela COVID-19.

[7] A cooptação da crítica social por dispositivos a indústria cultural é elaborada pelos teóricos da assim chamada Escola de Frankfurt, e alguns dos seus elementos são trabalhados em: (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).

[8] O conceito de habitus aqui empregado é no sentido trabalhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, podendo ser encontrada, por exemplo, em: (BORDIEU, 2004).

[9] Essa ideia é trabalhada com esmero em: (LE BRENTON, 2013).

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bruno barros

as circunstâncias, as coisas e a pressa de todas as coisas @brunobarrosff