Duna Capítulo 15: Um Passeio no Deserto

Bruno Birth
brunobirth
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6 min readJul 26, 2020

“Meu pai, o imperador padixá, me pegou pela mão um dia, e senti, usando os métodos ensinados por minha mãe, que ele estava transtornado. Ele me levou ao Salão dos Retratos, até a egocópia do duque Leto Atreides. Notei a forte semelhança entre eles (meu pai e aquele homem no retrato), ambos com rostos magros e elegantes, traços bem marcados e dominados por olhos frios. ‘Filha princesa’, meu pai disse, ‘como que queria que você fosse mais velha quando chegou a hora deste homem escolher uma mulher’. Meu pai tinha 71 anos na época e não parecia mais velho que o homem no retrato, e eu tinha apenas 14, mas lembro-me deter deduzido, naquele instante, que meu pai, no fundo, desejava que o duque tivesse sido seu filho, e que não via com bons olhos as necessidades políticas que fizeram deles inimigos.”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

Finalmente um pouco mais de informação sobre a princesa Irulan. O excerto desse capítulo é marcante por nos apresentar o pai de Irulan: o imperador padixá. Parente e inimigo do duque Leto Atreides (motivos da inimizade desconhecidos ainda) como já falado em análises anteriores, o imperador mostrar interesse de que Leto pudesse desposar sua filha dá um tempero a mais ao enredo. Parece que o tempo narrado por Irulan é concomitante ao tempo de Paul Atreides que estamos acompanhando, o que colocaria a princesa na idade de um ano mais nova que Paul. Será que haveria a possibilidade de Irulan se tornar uma pretendente a Paul? Teremos que esperar.

Eis que somos apresentados ao Juiz da Transição do império. O principal representante fiscal do imperador padixá no planeta Duna. Doutor Kynes é o ecólogo do planeta Arrakis e nesse capítulo leva o duque Leto, Paul e Gurney Halleck para uma viagem de reconhecimento dos desertos além da área protegida de Arrakina.
Novamente os boatos em torno de Paul Atreides ganham a cena quando os soldados que acompanham Kynes se movimentam de modo emocional ao avistar o suposto “Mahdi”. Kynes, claro, adverte seus soldados mas ele mesmo está analisando Paul de perto, como que para tentar investigar o garoto. Pela voz de Kynes, inclusive, vemos diversas passagens da profecia fremen. Enquanto observa os trejeitos e atitudes do filho de Leto, o ecólogo faz correlações com as predições acerca dos feitos que Mahdi, expostas na lenda. É curioso acompanhar isso pois tais correlações acontecem algumas vezes no capítulo e Kynes, assim como os soldados, se impressiona com Paul, que nem sabe o que eles estão pensando e só está agindo naturalmente. Os soldados reagem mais abertamente e Kynes reprime mais suas reações perante a astúcia anormal de Paul.

Mas Kynes não é o único a analisar outras pessoas. Paul e Leto Atreides mantém fixos seus olhos sobre o Juiz da Transição, cada um à sua maneira. O duque, sabendo que o imperador faz parte do ardil dos Harkonnen contra ele, não tem motivo algum para confiar em Kynes e logo começa a fazer perguntas espinhosas ao ecólogo. As respostas de Kynes saem capengando em várias delas, principalmente quando o assunto é sobre seus estudos mais profundos da especiaria. Conforme a conversa avança bem, Paul conclui em pensamento que “de Kynes surgem apenas mentiras e meias verdades”.
O olhar do garoto é diferenciado. Ao contrário do pai, que foca seus questionamentos e desafios a Kynes sob a ótica da política, Paul Atreides utiliza suas habilidades psíquicas para enumerar cada gesto de Kynes, cada respiração e cada piscadela do homem traiçoeiro. Em dado momento, Paul pergunta a Kynes se ele é fremen, dado ao seu jeito de agir e os olhos extremamente azuis. Aqui o autor Frank Herbert, por meio de suas descrições contextuais, nos dá uma resposta cultural quando fala que qualquer um inserido na cultura fremen por dado período se torna fremen. Isso só corrobora o que já havíamos falado anteriormente sobre os fremen serem humanos com tradições diferenciadas.

Os tripulantes entram em uma nave pilotada pelo duque e a viagem segue em direção às dunas. O passeio se direciona a um local onde está ocorrendo trabalho de mineração de mélange. Kynes presenteou os Atreides com exemplares do equipamento essencial para a sobrevivência no deserto e mais detalhes sobre os trajestiladores fremen são mostrados. A reutilização de água do traje tecnológico é absurda, chegando ao ponto de aproveitar e filtrar até mesmo os dejetos dos seus utilizadores. O duque mostra desconforto ao utilizar seu traje mas Paul utiliza o seu com naturalidade, mesmo sendo a primeira vez a vestir um, o que aumenta a curiosidade de Kynes sobre o herdeiro dos Atreides.

Halleck se mostra incomodado com a falta de vassalagem impressa no modo de falar de Kynes, ao que tanto o duque quanto Paul se mostram indiferentes à primeira instância. Em dado momento, Halleck (famoso por seu apreço pela música) canta uma canção que cita “os ancestrais que se alimentaram de maná no deserto”. Como muitos de vocês devem suspeitar, essa é uma referência direta a uma passagem da mitologia judaico-cristã, em que os hebreus fugitivos do Egito, chefiados por Moisés, passavam fome no deserto em direção a Canaã quando foram abençoados pelo deus Jeová, que sobre eles derramou maná para alimentá-los.

A nave do duque enfim chega ao local onde os trabalhadores estão minerando especiaria e essa é uma das partes mais incríveis do livro até agora. Os operários utilizam uma gigante máquina lagarta-usina para perfurar o solo e extrair mélange para um tanque. A cena descreve a nave do duque e as outras com soldados que o acompanham como pequenos mosquitos perto do besouro gigante que é a lagarta-usina.
Antes de alcançarem o local de mineração, é perguntado a Kynes se havia a possibilidade de eles se depararem com um verme da areia, já que o processo de mineração chama a atenção dos monstros. Kynes responde que era sim bem possível. Quando se está lendo isso já é esperado o que vai acontecer, mas a maneira como Frank Herbert descreve é surreal pois a tensão vai aumentando com o avançar das frases e o desenrolar dos acontecimentos, arrebatando o leitor.
De fato um verme da areia surge no horizonte, avistado pelo arguto duque Leto Atreides, que avisa aos trabalhadores de antemão quando o verme está a calculados 20 minutos do local. Seguindo o que explicamos na análise do capítulo 12 sobre a mineração, a lagarta-usina deveria ser guinchada por um caleche, uma nave robusta que serve para resgatar a lagarta-usina antes de ser tomada por um verme da areia. Acontece que o caleche, por motivos escusos, não aparece e o terror se estabelece.
É aí que ocorrem três coisas muito importantes no fim desse capítulo:
- O duque Leto cresce e mostra que em situação de adrenalina ele se torna o homem que inspira liderança fanática de seus servos. Contrariando a lógica, o duque resolve abandonar a grande reserva de especiaria já armazenada no tanque da lagarta-usina e ordena que os mineradores abandonem seus postos e entrem nas pequenas naves. Kynes fica boquiaberto com a veemência da atitude do duque, que não pensa duas vezes em se colocar em risco (e também ao seu filho) em favor dos trabalhadores. Até mesmo a maneira de Kynes pensar sobre o duque é abalada com isso;
- Quando enfim o verme aparece, Kynes e os sobreviventes dentro da nave do duque deixam escapar preces estranhas. O nome “Liet” (já citado como aquele que une todos os sietchies sob seu governo divino) ressurge e quando o duque questiona Kynes disfarça.
- Paul Atreides também se agiganta. Quando todos escapam do verme, que engole completamente a lagarta-usina em uma cena absurda, Paul avista algumas pessoas andando normalmente pelo deserto, a uma pequena distância do ocorrido. Anteriormente, o duque havia perguntado se alguém já conseguiu sobreviver andando pelo deserto, ao que Kynes responde que não, mostrando o quão mortal é caminhar pelo deserto, como os viajantes que Paul avistou estavam tranquilamente. Quando Paul afirma que os caminhantes eram fremens (acostumados com o deserto) que estavam na mineração, os trabalhadores se assustam e Kynes soa frio, com sorriso amarelo. Não era para haver fremens nas estações de trabalho de mineração. Kynes tenta disfarçar mas Paul não se deixa enganar. Claramente há segredos a serem revelados.

O capítulo termina com o Juiz da Transição afirmando em pensamento que gosta do duque Leto. Isso nos faz conjecturar o que pode vir a acontecer correlação a trama dos inimigos do duque. Seria possível que Kynes mudasse sua predileção, em favor dos Atreides? E quanto aos questionamentos de Paul? O garoto está a cada dia mais adequado, familiarizado e desenvolvido mentalmente em Arrakis, como se ele estivesse aos poucos se tornando realmente uma espécie de nativo do planeta desértico.
Como já falado em capítulos anteriores pela princesa Irulan, pelo duque e pela Reverenda Madre Gaius, “Paul nasceu em Caladan mas sua casa deve ser Arrakis”.

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Bruno Birth
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