Duna Capítulo 22: As Esferas e Casualidades do Destino

Bruno Birth
brunobirth
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11 min readAug 12, 2020

“Ó mares de Caladan,
Ó súditos do duque Leto:
A Cidadela de Leto tombou,
Tombou para sempre…”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

Enquanto estão refugiados em meio ao vasto deserto, perdidos e com a vida por um fio, Paul Atreides e lady Jessica trocam pensamentos sobre o que aconteceu, o golpe Harkonnen que acabou com o altivo duque Leto; o que pode acontecer, as possibilidades de sobrevivência, bem como os variados tipos de morte que podem acometê-los. Em meio a tudo isso, surgem reflexões existenciais que fazem deste o melhor capítulo de Duna até aqui.

Paul Atreides descobre que suas habilidades psíquicas repentinamente aumentaram. Seus sentidos estão mais aguçados, sua interpretação do meio ambiente onde está, das pessoas que o povoam e até mesmo a análise cognitiva dos três aspectos do tempo (passado, presente e futuro) se desenha nitidamente na mente de Paul. Essa torrente de informações psíquicas o impede momentaneamente de sentir emoções fúnebres por seu pai e o prende no casulo dos diagnósticos objetivos e projeções lógicas e realistas. Mas será que foi de repente mesmo que Paul (subvertendo a ideia de superioridade de Jessica passada no capítulo 19) se tornou maior em habilidades psíquicas que sua mãe?

Um dos principais conceitos trazidos e desenvolvidos por Frank Herbert ao longo da narrativa de Duna é a ideia de uma “ciência da mente”. Tal cultura de aprofundamento filosófico possibilitou neste mundo futurista de Herbert a criação de organizações sociais como a ordem das Bene Gesserit, o Condicionamento Imperial e a ordem dos Mentat, por exemplo. Em cada uma dessas classes o profundo estudo dos aspectos da mente, o que abre um vasto leque de possibilidades que a minuciosa manipulação do processamento de dados mental pode trazer às compreensões de um indivíduo, se torna um diferencial primordial dentro da narrativa desse livro. Como consequência disso surgem personagens graduados, com aprimorada interpretação abrangente do espaço físico (maior compreensão da natureza), detecção detalhada de linguagem corporal e análise aprimorada das esferas do tempo ante acesso a registros mentais para enxergar o passado vivido (memórias) com clareza minuciosa e obtenção cognitiva de prognósticos detalhados baseados em interpretação racional e analítica do presente. A esta última característica, Frank Herbert utiliza o termo “presciência” como intitulação.

Veja, o que o autor propõe neste livro não é algo sobrenatural. Paul Atreides não tem “poderes especiais”. Inclusive, Herbert prefere utilizar o termo “habilidades” para descrever as atribuições mentais do garoto. O que Herbert propõe aqui é algo que pode ser considerado palpável para a realidade de um universo futurista povoado por seres humanos. E digo mais, já temos hoje as capacidades mentais das habilidades psíquicas de Jessica e Paul, só que em um nível inferior.
Conseguimos (e o tempo todo fazemos isso), por exemplo, vasculhar nossas memórias e enxergar em que nosso passado influenciou nosso presente, seja em memórias longas de anos ou curtas de minutos. E nossas memórias passam por recorrente processo de ressignificação pois no presente contínuo estamos sujeitos todos os dias a aquisição de novos conhecimentos e experiências, o que mantém nossas mentes renovadas ininterruptamente e altera caracteristicas de nossas certezas atuais. Certezas essas sempre obtidas a partir do que tiramos do passado. Conseguimos analisar o nosso presente e projetar diferentes desdobramentos de nosso futuro, que também se altera o tempo todo quando nele pensamos. Isso se chama prognóstico. Não acertamos perfeitamente em nenhuma dessas ações pois, além de não termos uma “ciência da mente” que nos permita uma detalhada análise cognitiva de nossos sentidos neuronais, o próprio Paul diz que a presciência é uma realidade mental mas é um habilidade completamente sujeita ao erro. Mesmo assim, as limitações impostas a nossa presciência não impedem nossas mentes de agirem com presciência. Trilhamos 24h por dia os caminhos do passado, presente e futuro, o que mostra que já temos as capacidades mentais descritas nos indivíduos do mundo de Duna, só que, de novo, em escala menor.

Quando focamos nossa mente em alguma matéria, com o tempo de estudo e experiência prática, nos tornamos peritos, seja essa matéria puramente acadêmica (demandando esforço mental) ou física (união de mente e corpo). Esta evolução de conhecimento focado é gradual e, quando menos se espera, acontece algo que desperta em nós o quanto aquele determinado assunto é por nós dominado. Acontece quando uma pessoa joga futebol por muito tempo, adquirindo aprimoramento físico, técnico e instintivo, “de repente” faz um extraordinário gol de bicicleta. Na verdade esse gol foi construído após muito tempo de prática mental e corporal.
Paul Atreides se vê, diante das consequências do ataque mortal dos Harkonnen, impelido a abandonar sua vida de infância passada em Caladan, abandonar a paternidade de Leto e abraçar o presente urgente de sobrevivência de Arrakis, local que Paul se esforça para aprender sobre desde que partiu de seu planeta natal. Não ser mais um menino, ou seja, possuir a maturidade necessária para compreender o mundo de maneira objetiva e voltada a necessidades primordiais, ter sido ensinado nas ciências da mente desde criança e, por fim, ter durante um tempo focado suas habilidades em aprender sobre Arrakis, tornaram possível esse momento de aumento de capacidade mental de Paul. Se trata de uma resposta da mente de Paul para com o ambiente a sua volta, que se traduz em uma evolução de cognição interpretativa focal e gradual que se mostrará cada vez mais aparente a partir de agora.
Paul chega a gritar para sua mãe que não se tornará um mentat, que é uma aberração, uma estranheza. Ter sido ensinado desde pequeno por Jessica a ser um mentat e um homem Bene Gesserit (duas coisas completamente fora da ordem social comum no império) explicam essa afirmação que desenvolverei sob outra ótica mais a frente nesse artigo.

O papel das Bene Gesserit como evangelistas do universo volta a aparecer nesse capítulo quando Jessica supõe que uma “Manipuladora das Religões” passou por Arrakis. Como já falamos anteriormente, suspeitamos que as irmãs atravessam os planetas do império, plantando suas lendas e crenças, adaptando-as para se encaixarem nas diferentes culturas com as quais se deparam. O objetivo disso? Bom, Jessica diz que as Bene Gesserit vivem apenas para servir, contudo, assim como Thufir Hawat, duvidamos disso. Acreditamos até que as irmãs buscam encontrar o Kwisatz Haderach (aquele que enxerga todas as esferas do tempo) para usá-lo a fim de elas alcançarem o poder supremo. “Manipuladora das Religiões” nada mais é que um outro termo que em nada se difere de “pastor”, “evangelista”, “missionário”, etc.

Falando nas irmãs, descobrimos que lady Jessica é filha do barão Vladimir Harkonnen. O barão, em meio aos prazeres da juventude, foi usado pelas Bene Gesserit, que enviaram uma de suas irmãs para seduzí-lo e trazer dele uma semente para a ordem. O objetivo, segundo reflexão de Jessica, era misturar os traços genéticos dos Atreides com os dos Harkonnen.
Nossa teoria de que os Harkonnen são alienígenas humanoides caiu por terra com essa revelação. Na verdade surge agora uma outra teoria: os Harkonnen são fruto de aprimoramento genético humano, proveniente da época da evolução das máquinas, muito anos antes do contexto de Duna. Se trata de uma evolução biológica forçada, uma nova ideia de seleção artificial (conceito presente em teoria na nossa realidade atual). Vide Homo Deus, livro de Yuval Noah Harari, que trata exatamente de como os “super humanos” devem surgir a partir de estudos de bioengenharia reversa, em prol de aprimoramento genético, para aqueles que conseguirem pagar por isso, claro.

A força dos fremen é outro aspecto super interessante levantado neste capítulo. Tratados superficialmente como um conjunto de meras sociedades aquém da estrutura social imperial, os nativos de Arrakis na verdade possuem um poder imenso, conhecimento científico sem igual e grande influência política, através de acordos escusos com a Guilda Espacial. Com Paul se dirigindo a eles, teremos cada vez mais detalhes sobre suas tramas e organizações. Paul detecta que os fremen são subestimados ao extremo, mas na verdade possuem a força necessária para talvez desafiar o império de padixá.

Em meio ao pesar pela morte de seu amado, Jessica não consegue acompanhar as confabulações analíticas de Paul Atreides e, em dado momento, cita a Bíblia Católica de Orange, com um trecho no qual ela busca o conforto que seu filho não pode lhe dar neste momento de tristeza:

“Tempo de buscar, e tempo de perder. Tempo de guardar, e tempo de deitar fora; tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.”

Este trecho tem convergência direta com um da bíblia de nossa realidade. O capítulo 3 de Eclesiastes, livro que compila autobiografias de poetas do Oriente Médio, datando do período de 450 a 180 a.C. Eclesiastes é um livro de caráter existencialista que se dirige às ideias do que se trata o sentido da vida, bem como traz interpretações do que seria uma melhor forma de viver. Neste capítulo 3 em específico, Eclesiastes traz pensamentos diversos sobre as características do tempo.

Eclesiastes não está aqui citado por acaso. O existencialismo se torna a maior e mais importante reflexão do meio para o fim deste capítulo. Pois bem, vamos lá.
Desde crianças, somos ensinados a interpretar “destino” e “casualidade” como duas coisas completamente diferentes e, portanto, opostas. o conceito de “destino” está ligado a predeterminação, um caminho traçado que o indivíduo apenas segue sem que possa alterá-lo ou subvertê-lo durante o decorrer sua vida. Já “casualidade” está ligado a acaso, acidente, a vida de um indivíduo sob esta conceituação filosófica nada mais é do que fruto do ininterrupto caos existencial, sem que haja cordas superiores a o guiarem por um caminho específico.
O que Frank Herbert propõe neste capítulo (ou melhor, neste livro) por meio de Paul Atreides, é que destino e casualidade, apesar de diferentes, não são opostos, na verdade se complementam.
O mundo futurista de Duna nasceu da destruição de uma guerra sem precedentes. Os sobreviventes se uniram em diferentes grupos para reconstruir a sociedade, a humanidade. No vasto processo se mataram enquanto tribos em busca de estabelecer cada qual a sua forma de existência cultural, seu sentido para a vida. O futuro repete o passado, os seres humanos sempre fizeram isso.
Deixe-me partir do sentido mais pessoal possível. Você, pare para pensar quantas vezes você se viu em situação alarmante. O que você mais desejou nestes momentos senão ajuda exterior? Alguém, seja humano ou não, que lhe tirasse de sua situação adversa. Você não foi doutrinado a tentar enxergar sua adversidade como apenas mais um aspecto da sua natureza, por exemplo, ou até mesmo questionar e ressignificar o que de fato significa “adversidade”. Você só foi ensinado que, quando está em situação difícil, deve lamentar e buscar mudança pessoal, e quando não conseguir, buscar ajuda externa.
Agora imagine toda uma multidão, uma nação, uma raça inteira com este mesmo sentimento, diferente no âmbito de detalhamento pessoal, porém comum no que concerne à busca por ajuda externa na tribulação. A guerra causa isso, a destruição que representa ameaça máxima a vida e propaga a palavra da sobrevivência acima de todas as coisas, o sentimento de desespero por ajuda, por mudança de status de sofrimento em busca de um dia melhor. E mais, durante toda a história, a humanidade jamais conheceu momento de paz existencial, a humanidade sempre esteve diante do medo da extinção, do fim da vida; seja a nível pessoal, tribal ou global.
A “adversidade” se interpreta como uma perturbação à felicidade humana. Já “felicidade” é o que maximiza o prazer da vida humana. Portanto, a adversidade mais aproxima o ser humano da morte. A Morte é um aspecto natural com o qual nunca tivemos intimidade de aceitação, ou seja, não queremos morrer. Assim sendo, a impotente tentativa eterna da humanidade em subverter um dos maiores valores da natureza (a morte) faz os humanos constantemente buscarem uma redenção que nunca será completa, uma vez que não se luta contra a realidade, não se pode ser imortal.
Tal desespero comum, tal incessante busca por ajuda exterior perante o sofrimento das dificuldades da vida mortal e a busca por elevar o valor da vida fez e faz todos os seres humanos, seja de onde forem, concentrarem as bases de suas filosofias existenciais em torno de um fator comum, enxergado de diversas maneiras através das variadas culturas humanas do mundo: a figura de um messias, aquele que trará a salvação do mundo, a resolução de todos os problemas, o advento da imortalidade. E, de novo, isso se estabelece a nível global, tribal, pessoal, humano, essencialmente inconformado com a morte.
Yuval Noah Harari fala em seu livro “Sapiens” sobre como as comunidades humanas se uniram em torno de “ficções cognitivas”, verdades disseminadas e absorvidas pelas mentes de grupos que posteriormente se tornaram multidões inteiras. As ficções cognitivas foram capazes de guiar os modos de como, as civilizações procederam com suas evoluções sociais, filosóficas e científicas. Até hoje às ficções cognitivas governam a humanidade e provam o valor do dinheiro, o poder de deus, a necessidade da monogamia, entre tantas outras tantas verdades consideradas absolutas mas com características questionáveis sob análise.

Pois bem, com nossas mentes extremamente sofisticadas criamos nossas crenças, nossos mitos de existência superior, chamando-os de verdade. Destes mitos nasceram nossas interpretações da natureza, da realidade. Então passamos a moldar o caos de nossas existências para encontrar as respostas impostas pelos destinos (frutos de nossos mitos) que nós mesmos traçamos para humanidade.
A partir disso, chamamos homens de deuses e reis mais de uma vez. Acreditamos na capacidade messiânica deles e convergimos nossa confiança total a estes líderes. Nós, humanos, criamos a corda que nos prende ao destino e, mais de uma vez, choramos quando o destino não se completou como imaginávamos. Por que continuamos a fazer isso? Por que não aceitamos a casualidade e a morte? Isso é a fonte de tudo isso e o fim indubitável de todos.

Quando Paul Atreides diz “Eles me chamarão de Muad’Dib” ele está dizendo que já é o Messias de Duna, o Kwisatz Haderach, Lisan Al-Gaib. Independente de sua vontade, Paul Atreides foi regido por Jessica a ser uma aberração, alguém completamente diferenciado no império, o que naturalmente o coloca em situação oposta e notável correlação a todas as outras pessoas a sua volta. E sua mãe não fez isso por mal. Ela mesma estava sendo regida pelas características da lenda estabelecida tradicionalmente (e que para ela foi ensinada) quando moldou Paul para que com o mito a vida de seu filho convergisse. Jessica agiu inconscientemente, tal qual nós somos levados a agir por estarmos mergulhados nas concepções sociais e filosóficas há muito já estabelecidas, cimentadas. Para todos os efeitos, Paul Atreides é o messias e as pessoas acreditarão nisso, mas não é porque o destino é uma ordem superior que rege a vida, e sim porque os humanos foram e são soberbos demais para aceitar sua pequeneza, então deram vida à ideia de destino e, mesmo não conseguindo alcançá-lo, para ele correm desesperadamente, tentando controlar e entender o caos de suas vidas.
O messias é o centro disso. Quando um messias cai, vem a ressignificação de sua queda, seja para dizer que este messias ascendeu a um plano superior, seja para dizer que interpretações foram erradas e o messias na verdade ainda está por vir. O importante é que o mito permaneça vivo. Quantos Kwisatz Haderach já não surgiram antes de Paul?

Então, na reflexão final, Paul vislumbra a maneira mais contundente utilizada por tribos humanas para, ao longo da história, emanciparem sua visão existencial: o jihad. Este conceito islâmico se divide basicamente em duas esferas: O jihad maior (que é a absorção dos valores do islã por parte do indivíduo) e o jihad menor (propagação dos valores do islã em larga escala e luta para sobrepor valores contrários).
É natural que o conceito de jihad seja visto sob a ótica da violência de uma evangelização militar e colonial. Apesar de ser um termo islâmico, o cristianismo se estabeleceu no ocidente a partir do conceito de jihad, após o fim da Idade Média.
Em um momento de presciência, Paul se viu diante de um prognóstico que o coloca em frente a uma tropa opressora e uma organização político-social ditatorial, o que o fez sofrer pois queria poder evitar este futuro, mesmo não sabendo se será capaz.

A primeira parte do livro Um de Duna termina com as lágrimas de Paul em memória de Leto Atreides. Depois de tudo isso, a falta do amor e segurança de seu pai lhe doeu.

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Bruno Birth
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