Duna Capítulo 24: A Cultura D’Água

Bruno Birth
brunobirth
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5 min readAug 17, 2020

“Meu pai certa vez me disse que o respeito pela verdade é praticamente o alicerce de toda moral. ‘Não há como uma coisa surgir do nada’, ele disse. É um pensamento profundo para quem entende como a ‘verdade’ pode ser volúvel.”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

Estamos entrando em uma nova atmosfera narrativa do livro Um de Duna. O ataque dos Harkonnen aos Atreides mudou os rumos da história e está levando nossos protagonistas para outros ambientes, cujos contextos se mostram cada vez mais peculiares, tornando o universo de Duna amplo em seus diferentes e detalhados núcleos.
Conforme nos são dadas mais informações culturais acerca dos fremen, os povos nativos de Arrakis, fica claro o quão trabalhoso foi para Frank Herbert desenvolver essa história e que Duna, de fato, foi um trabalho que se desenrolou por grande parte da vida do autor.

Thufir Hawat, o maior homem de confiança do falecido duque Leto, e seus comandados se vêem refugiados, perdidos no deserto após fugirem da caçada dos Harkonnen, abrigados em um acampamento montado por um destacamento de soldados fremen de olhos profundamente azuis, provenientes do consumo viciado de especiaria.
Hawat se sente ameaçado e desconfiado enquanto conversa com o líder do grupo de nativos. Há uma desconexão essencial entre os homens da patrulha fremen e os homens dos Atreides; um paralelismo expresso nas várias palavras que se perdem enquanto os líderes dialogam pois seus dialetos desencontrados advém de linguagens que provém de opostas concepções culturais da natureza, de diferentes noções de existência social e filosófica.
Contudo há um fator em comum que os une: o ódio aos Harkonnen. O líder fremen faz questão de demonstrar a Hawat que seu receio de que qualquer um dos fremen pudesse ajudar os Harkonnen a caçá-los é infundado.

As diferenças culturais entre os homens de Hawat e os fremen são ressaltadas quando surge a expressão “decisão d’água”, por parte do líder fremen, que diz isso ao perceber que Hawat possui homens feridos.
A ininterrupta realidade de escassez de água do planeta Arrakis se estabeleceu ao longo dos tempos como o catalisador da criação das tradições fremen. Uma absurda capacidade de resiliência em prol do apreço pela vida criou nas comunidades fremen um profundo senso alarmante de sobrevivência que acabou ultrapassando todo e qualquer tipo de interesse pessoal, tornando-se um interesse puramente coletivo.
Assim sendo, é natural ao líder da patrulha fremen se virar para Hawat e dizer “tome a decisão d’água. Os feridos e ilesos têm de pensar no futuro da tribo”. Hawat não consegue compreender a profundidade daquelas palavras pois não partilha do contexto de sobrevivência da qual elas surgiram. Quando o significado mais direto da afirmação é explicado, os homens de Hawat até se ofendem. Os feridos deveriam rapidamente pesar o valor da água presente em seu corpo para o coletivo e, se chegassem a conclusão de que sua vida pessoal não pudesse contribuir à comunidade mais do que sua morte, seu corpo deveria ser entregue para extração completa do líquido nele armazenado e distribuído aos demais companheiros da tribo, sendo depositado nos filtros de seus trajestiladores. Uma oferenda de morte à manutenção da vida.
Os homens de Hawat se exasperam. “Mas e a memória do ferido?”, “Que absurdo cogitar a conspurcação de um ente querido, um companheiro, um amigo!”. Os fremen por sua vez se mantêm calmos, consideram ilógica a raiva dos soldados dos Atreides, destinados a morrerem por não terem trajestiladores em meio a um deserto cheio de vermes da areia e estando muitos deles feridos. Um contexto incomum aos homens de Hawat, mas completamente comum aos fremen.
Hawat sabe que precisa da ajuda dos fremen para sobreviver e engole seco refletindo sobre sua cultura estranha e a ele incômoda. Sabe que os fremen só os ajudarão em troca de um ato de confiança e tal ato só se configuraria quando a decisão d’água fosse tomada. A oportunidade surge quando um ferido acaba morrendo, restando apenas aos vivos refletirem sobre “o futuro da tribo”. O “laço da água” se estabelece entre os fremen e os soldados dos Atreides quando Hawat relutantemente autoriza a extração do líquido do cadáver, contra a vontade de seus homens.
É interessante notar como o aparente desrespeito à figura da vida individual faz parecer que os fremen não louvam a existência de seus cidadãos. Mas que destino teria a grande tribo fremen ao não superar os valores individuais se não a extinção completa? Como se sobrevive uma sociedade em situação de extrema adversidade se não se unindo em prol da sobrevivência comum? Será que valorizar a “vida” é o mesmo que valorizar o “indivíduo” primordialmente?

Uma vez protegidos pelos trajestiladores fornecidos pelos fremen, os homens de Hawat acompanham os nativos e se assustam com o desdém com o qual os fremen falam sobre os sardaukar, os temidos soldados do imperador padixá, contra os quais os fremen demonstram lutar e vencer com certa facilidade.
Hawat fica pensativo, imagina se houvesse mais tempo para que os Atreides conseguissem a lealdade de exércitos fremen. Aqueles eram os verdadeiros soldados a serem temidos. Se houvesse um líder que convertesse a lealdade de todos os sietches fremen, grandioso seria seu poder.
Mas talvez aquele líder já existia. “O paraíso é uma certeza para o homem que morre a serviço de Lisan Al-Gaib” havia dito o líder da patrulha fremen.

Eis que nos é revelado que Paul Atreides e lady Jéssica estão na presença segura de Liet, a divindade viva a governar todas as comunidades fremen. Quem são essas pessoas?, se pergunta Hawat, assustado com as palavras fortes dos fremen, seu senso de união inabalável e até mesmo suicida quando o assunto é a proteção e sobrevivência da tribo fremen.
Hawat não compreende aquele povo, assim como Jessica também não. Mas Paul Atreides tem a capacidade de entendê-los, de absorver suas culturas e incorporá-las de modo único. Sua união com Liet, a persona que foi capaz de unir todos os fremen, promete muita reflexão e diálogos marcantes.
Nos resta aguardar.

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Bruno Birth
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