Duna Capítulo 30: A Supremacia Liet

Bruno Birth
brunobirth
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7 min readAug 30, 2020

“Essa adaptação religiosa dos fremen, portanto, é a fonte do que hoje reconhecemos como ‘os Pilares do Universo’, cujos Qizara Tawfid estão entre nós, portando sinais, provas e profecias. Eles nos trazem a fusão mística arrakina, cuja profunda beleza é exemplificada pela música comovente e fundamentada nas formas antigas, mas carimbadas com o novo despertar. Quem é que nunca ouviu nem se comoveu profundamente com ‘o hino do velho’?
Impeli meus pés pelo deserto
Cuja miragem tremulava feito multidão.
Ávido de glória, sôfrego de perigos,
Vaguei pelos horizontes de al-Kulab,
Vendo o tempo arrasar as montanhas,
Em sua busca, sequioso de mim.
E vi os pardais chegarem rápido,
Mais audazes que um lobo no ataque.
Alastraram-se pela árvore de minha juventude.
Ouvi o bando em meus galhos
E fui apanhado em seus bicos e garras!”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

O excerto acima funciona como uma espécie de louvor ao modo de vida fremen, exposto culturalmente na religião sincretista dos nativos de Arrakis, estabelecida em suas “tábuas de leis e provérbios”, os chamados Qizara Tawfid. É interessante notar também que a presença de antigas canções na cultura religiosa fremen denuncia a característica de tradição oral como um dos preceitos primordiais do modo de vida fremen.
Na história original de nossa humanidade, a tradição oral, como se sabe, vem antes de escrita e era acompanhada dos primeiros aspectos de música, ainda em forma rudimentar, com instrumentos de som básicos e versos carregando a linguagem falada.
Quando as ideologias culturais fremen são citados no excerto como sendo “fundamentadas nas formas antigas, mas carimbadas com o novo despertar”, o que pode estar sendo falado é que, em algum momento entre o colapso do planeta Terra (por conta das guerras causadas pelo uso de inteligência artificial das máquinas como armas por parte de facções humanas) e a emancipação da colonização espacial como realidade do mundo futurista de Duna, os fremen são povos provindos de humanos que se estabeleceram em Arrakis (estes não sendo fremen ainda) e que se isolaram completamente do resto do mundo. Com o longo passar de tempo, uma nova “raça” humana surgiu, com novos preceitos culturais (influenciados por diversas culturas do passado e pelas profecias de evangelistas do novo universo), idioma, modo de vida, e etc. Este novo povo são os fremen.

Filosoficamente neste capítulo em específico, esse excerto é também uma ode à figura central e divina dos sietchies, o homem que uniu todas as comunidades dos nativos de Arrakis: Liet.
Aqui vale fazer a separação entre Liet e seu alter-ego: Kynes. O homem ruivo moribundo que acompanhamos neste capítulo nasceu como Kynes, filho de um notável planetólogo, que trabalhava para o império. Eu não vou esmiuçar narrativamente como discorrem muitos dos acontecimentos desse capítulo mas, reflexivamente, Frank Herbert demonstra que o pai de Kynes possuía intenso conhecimento sobre as características naturais da atmosfera e bioma de Arrakis, o que mostra que tal planetólogo passou muito tempo estudando o planeta desértico, sendo talvez até parte do projeto ecológico que o império iniciou em Arrakis e depois largou.
Ao crescer, Kynes assumiu o lugar do falecido pai como planetólogo do império e, assim como ele, foi enviado para viver e trabalhar em Arrakis. Assim, Kynes se transformou no Juiz da Transição do império, o fiscal de maior importância nas transações envolvendo principalmente os interesses do império na mineração de mélange, a cobiçada especiaria.
Só que ocorreu algo de diferente ao dr. Kynes. Ele se deparou com os nativos de Arrakis e com eles estabeleceu conexão social, algo que seu pai jamais fez. O pai de Kynes demonstra inclusive nunca ter contado com a importância cultural dos fremen em suas considerações sobre o planeta e trata as diferentes civilizações humanas que vivem em Arrakis sob uma abordagem homogênea, própria da ciência exata.
Em uma parte bem importante desse capítulo, Frank Herbert usa as palavras do pai de Kynes para exprimir uma crítica social sua:

“Temos de fazer em Arrakis uma coisa que nunca se tentou fazer com um planeta inteiro. Temos de usar o homem como uma força ecológica construtiva…”

Frank Herbert está falando da relação industrial que os humanos impõem à natureza e o contexto destrutivo que essa relação ocasiona. Como o pai de Kynes diz, nunca os humanos agiram em concordância para salvaguardar a ecologia de todo um planeta. Na verdade, o ser humano se mostra muito mais uma força ecológica destrutiva do que construtiva.
Sustentabilidade! O quão incrível é a mente de um escritor para desenvolver nos anos 1960 (época do lançamento de Duna) uma crítica tão atual, tão presente na década de 2020?

Pois bem, voltando a Kynes. O novo planetólogo não só se conectou socialmente com os fremen, como também absorveu profundamente o modo de vida dos nativos de Arrakis, unindo os fremen em torno dele, em torno de sua mente intelectual diferenciada e abrangente, exercendo uma sucessão de cultos ao conhecimento socio-ambiental compartilhado, guiada por uma linha de pensamento filosófico-existencial que atraiu todas as comunidades fremen. Aos poucos o planetólogo foi sendo colocado em uma posição de superioridade mental e sobrenatural na civilização fremen.
Como Kynes havia dito para Paul durante o passeio no deserto, junto com o ainda vivo duque Leto, “qualquer um pode se tornar um fremen”. Foi exatamente isso o que aconteceu a Kynes. o planetólogo se tornou um fremen, e o fremen se tornou Liet, a divindade viva.
Essa relação de Liet com os fremen em muito me lembrou Apocalypse Now (1979), clássico filme de Francis Ford Coppola sobre um grupo de soldados americanos que, em meio a guerra do Vietnã, partem para capturarem um coronel que em teoria havia perdido a cabeça durante a guerra. Quando enfim encontram o esconderijo do coronel nas profundezas das selvas vietnamitas, os soldados descobrem que o foragido havia se tornado parte de uma tribo local e havia desenvolvido uma sociedade filosófica onde ele representava o guia, a figura reflexiva central ao absorver os valores culturais da tribo e com a tribo compartilhar os aprofundamentos de sua mente. Assistam esse filme, vale a pena.

Eis que duas revelações bombásticas surgem abalar as estruturas do livro Um de Duna.
Existe água em abundância no planeta Arrakis! Liet, em suas confabulações moribundas com o pai, fala sobre a existência de água em uma camada geológica de difícil acesso. A existência de água em Arrakis funciona como um profundo lençol freático muito abaixo de camadas rochosas, outras camadas mistas de matéria orgânica vegetal e, por fim, abaixo da camada de especiaria. Essa revelação traz mais perguntas do que respostas. Quem mais sabe disso? Porque não existem trabalhos de extração de água em Arrakis? Teremos que aguardar um pouco mais para descobrirmos isso.
A outra revelação bombástica precisa de contexto. Liet está sem trajestilador, capengando em deserto aberto após ter sido capturado e surrado por soldados Harkonnen, que o largaram para morrer sob a cálida tortura do deserto sem água. Em dado momento, Liet chega a desejar que um criador (verme da areia) apareça, então diz:

“É certo que um criador aparecerá quando esta bolha estourar. Mas não tenho ganchos. Como poderei montar um dos grandes criadores sem os ganchos?”

Pois é, já entenderam, não? Como já teorizado anteriormente, é possível controlar os vermes da areia. Logo no capítulo anterior Paul Atreides citou os tais “ganchos de criador”. Que audácia montar em um bicho que mede mais de 300 metros de comprimento, não? Espero ansioso por uma cena épica dessa.
A “bolha” citada por Liet é um fenômeno natural criado por Frank Herbert para Arrakis em específico. Imagine uma mistura de gêiser com vulcão arenoso que, quando ativado, cria um imenso tornado de areia em sua volta, expele água para cima e traga o que está ao seu alcance para as profundezas. Isso acontece quando reações químicas nas profundas camadas geológicas de matéria orgânica vegetal de Arrakis ocasionam um grande acúmulo de pressão, formando uma bolha que, quando chega ao ápice, explode para cima.

Na parte final do capítulo, uma dualidade filosófica se faz presente quando o pai de Kynes, com sua postura exata, cartesiana, diz na mente de seu filho que perante todas as possibilidades ecológicas que os povos de Arrakis podem alcançar se trabalharem juntos “nada poderia ser mais desastroso para o povo de Arrakis do que cair nas mãos de um herói”. Se trata de uma crítica às conjunturas cognitivas sociais que levam as civilizações a se projetarem na direção de um líder, de um salvador, algo respeitado plenamente por Liet. Falamos sobre essas facetas da mente humana coletiva na análise do capítulo 22.
Liet, percebendo que está exatamente no meio de uma bolha prestes a explodir, sorri diante de seu desfecho vital e zomba da cara de seu pai. Zomba por ele achar que conhece os povos de Arrakis quando na verdade não conhece nada! “As mensagens foram enviadas para as minhas vilas sietchies. O filho do duque, se estiver vivo, será encontrado e protegido” diz Liet, orgulhoso de sua supremacia enquanto é engolido pelo planeta Arrakis, tornando-se uma criatura do deserto.

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Bruno Birth
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