Duna Capítulo 31: Novos Caminhos

Bruno Birth
brunobirth
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5 min readSep 2, 2020

“Profecia e presciência: como é possível colocá-las à prova diante de perguntas sem respostas? Pense nisso: quanto se deve à verdadeira previsão da ‘forma de onda’ (nome que Muad’Dib dava a sua imagem-visão) e quanto se deve ao profeta que vai modelando o futuro para se encaixar na profecia? E quanto aos harmônicos inerentes ao ato profético? Será que o profeta vê o futuro? Ou será que enxerga uma linha de fraqueza, uma falha ou rachadura que ele possa partir com palavras ou decisões , da mesma forma que um cortador de diamantes estilhaça sua pedra com o golpe de uma faca?”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

A caminhada de Paul e lady Jessica no deserto é interrompida quando uma tropa de fremen os interceptam. A divagação dos fremen entre matar os capturados ou inserí-los no grupo (seja para levá-los a outro lugar para prendê-los/interrogá-los, seja para torná-los parte coletiva da tropa) marca o pano de fundo desse capítulo muito interessante.
Logo de cara já ocorre um questionamento que ganha contornos culturais em análise paralela quando surge a dúvida entre os nativos se Paul e Jessica são humanos ou djim, ao que prontamente um dos soldados responde que os capturados garantidamente são humanos.
O termo djim não havia aparecido no livro até aqui, então não temos a mínima ideia de seu significado prático no mundo futurista de Duna. Contudo, desbravando conceitos culturais da realidade, constata-se que “djim” é o nome dado pelos árabes a entidades benfazejas ou maléficas, superiores aos homens e inferiores aos anjos. Os famosos “gênios da lâmpada” são djims. Ok, com essa informação a mesa podemos fazer algumas deduções. Os fremen criaram uma clara separação entre o que é humano e o que é djim, logo, a primeira aferição é que os tais djims podem ser outros tipos de humanos geneticamente modificados (tal como os Harkonnen). Mas também há o aspecto sobrenatural imposto à palavra, o que pode fazer com que o termo seja interpretado como uma abordagem mística dos fremen para tratar certos tipos de pessoas, cuja biologia seja humana mesmo mas sendo tratadas de forma diferente por conta de alguma atribuição intelectual/cultural diferenciada desses supostos indivíduos. Quem sabe os evangelistas que cruzam o universo, as missionárias protectoras, não são considerados djims aos olhos dos fremen, por exemplo. Teremos que aguardar um pouco mais para mais informações sobre isso.

Bom, o líder da tropa fremen dá as caras, revelando-se como Stilgar, o mesmo fremen da reunião do capítulo 12, quando o duque Leto ainda era vivo. Na oportunidade, Stilgar havia feito um pacto de água com Duncan Idaho após um de seus companheiros fremen ter dado a vida por Idaho.
Stilgar reconhece Paul da reunião e avisa aos outros sobre a mensagem espalhada por Liet pelos sietches fremen para que o garoto (o considerado Lisan Al-Gaib) fosse resgatado pelos nativos de Arrakis. Aqui vem uma parte conceitual linguística interessante. Stilgar utiliza o termo “ciélago” para falar sobre os morcegos mensageiros que espalharam a mensagem de Liet. Jessica reconhece o termo, proveniente do idioma chakobsa dos fremen, chegando à conclusão que sua captura e a de seu filho por aquela tropa não era um caso isolado, e sim consequência de uma ação em larga escala.
Pois bem, como já falado anteriormente, a cultura dos fremen nasceu após um longo e gradual processo de emancipação tradicional, surgido de uma amálgama de culturas antigas para, após muito tempo, ganhar corpo e dar vida à original cultura fremen. A religião dos nativos de Arrakis é, inclusive, resultado de intensas conjecturas místicas baseadas em sincretismo.
A linguagem dos fremen exerce uma ilustração oral e escrita desse contexto. Se adicionar a sílaba “mur” à palavra “ciélago” (usada para descrever morcego em chakobsa fremen), terás a palavra “murciélago”, que significa morcego em espanhol. A palavra “chakobsa”, que dá nome a um dos idiomas fremen, tem sua significação na realidade como sendo um idioma antigo falado em algumas regiões do cáucaso; porém, Frank utilizou como base do idioma aspectos linguísticos de idioma romano-latino, servio-croata e árabe, como vemos em diversas palavras como “Lisan Al-Gaib”, “Ibn”, etc. Darei um outro exemplo das artimanhas linguísticas de Frank Herbert, que aparece neste capítulo, mais adiante na análise.

Em um dos diálogos entre os fremen pescamos mais características sociais presentes em Arrakis. A visível fortitude e agradável aparência de Paul chama a atenção de Stilgar, que vocifera aos seus comandados que o garoto em muito se parece com os “fracotes das caldeiras” mas, ao contrário deles, Paul não é um fracote. Como já falamos nas primeiras análises, existe uma relação social entre diferentes tipos de povos em Arrakis. Os nomes comuns desses povos são grabens, os pias e os das caldeiras. Há até preferências culturais voltadas ao casamento entre esses povos, os fremen inclusos.
Mas há uma curiosidade implícita nessa fala de Stilgar. Paul possui a formação física que tem por ter nascido em um planeta abundante em água e cercado dos privilégios, coisa que Stilgar salienta em seu argumento. Ao compará-lo com o povo das caldeiras, Stilgar está nos dizendo que o povo das caldeiras possui uma vida, se não abastada, bem menos sofrida que a dos fremen. Agora, quais são as circunstâncias que favorecem o cotidiano da vida do povo das caldeiras? Se trata de mais um mistério que teremos de aguardar para sanar.

Do meio para o fim do capítulo, Jessica e Paul, em meio às deliberações, percebem que os membros da tropa fremen estão inclinados a levarem apenas o garoto consigo, deixando Jessica (considerada inútil por eles) para trás. Então, sem dar muitos detalhes, mãe e filho agem rápido e com violência para dar uma volta na situação e ganhar o respeito dos fremen na força. O plano funciona, a maioria dos nativos fica impressionada. Eis que surge a outra palavra interessante linguisticamente que prometi citar quando são dadas duas bakkas, mantas usadas sobre as costas de todos os membros do sietch de Stilgar, para os (até segunda ordem) novos membros da tropa. A palavra “bakka” vem do islandês e significa “costas”. Uma grande mistura de idiomas realmente forma a língua fremen.

Antes de terminarmos, vale ressaltar a aparição de uma garota descrita como tendo rosto de fada: Chani. A filha de Liet (semente do casamento de Kynes, citado anteriormente) faz parte da tribo de Stilgar e logo se apega a Paul Atreides, que fica completamente estupefato pois Chani é a garota que povoava seus sonhos prescientes. Sonhos que ele havia contado à Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam durante o teste do Gom Jabbar.

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Bruno Birth
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