Duna Capítulo 32: Miragens Verossímeis

Bruno Birth
brunobirth
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6 min readSep 4, 2020

“Os fremen eram supremos naquela qualidade que os antigos denominavam spannungsbogen, que é a autoimposição de um adiamento entre o desejar uma coisa e o estender a mão para apanhá-la.”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

Como mais um exemplo linguístico da diversidade cultural na qual se baseia a cultura fremen, a palavra “spannungsbogen”, do excerto da princesa Irulan, vem do alemão e significa “arcos de tensão”. Esse significado em muito tem a ver com a ideia de paciência trazida pelo excerto. Na análise do capítulo anterior mostramos que os idiomas fremen possuem aspectos de latim, espanhol, árabe, croata e islândes no idioma fremen, com um adendo de alemão agora.

Seguimos a trilha de Paul Atreides e lady Jessica enquanto nossos heróis acompanham o sietch de Stilgar. Como esperado mais e mais detalhes sobre a vida e ações dos fremen ganham espaço na narrativa. Enquanto estão escondidos no interior de um amontoado de formações rochosas, em dado momento, Stilgar chama Jessica para conversar e mostrar os horizontes como ilustração de suas ideias. Stilgar mostra ao longe sua comunidade, local onde eles devem chegar o mais rápido que puderem e de modo indetectável por forças inimigas. A relação dos fremen com a Guilda Espacial (já trazida por Paul no capítulo 22) volta a ser citada com mais detalhes. Os fremen pagam tributos em forma de especiaria para a guilda e, em troca, a guilda mantem o espaço sobre Arrakis limpo de satélites captores de movimento, livrando os nativos de serem espionados. Assim, os fremen podem colocar adiante um muito gradual plano criado por Liet. Se trata de uma série de ações em prol de uma sistêmica alteração das características da atmosfera e ecologia de Arrakis, para tornar o planeta viável para a vida humana. “Nossa geração não verá isso, nem nossos filhos ou netos. Mas um dia alguém verá” diz Stilgar para Jessica, mostrando a resiliência dos fremen frente a um plano tão complexo e demorado e também mostrando como a ideia de “interesse da tribo sobre qualquer interesse pessoal” realmente é levada a sério entre os nativos do planeta Duna.
A pergunta que fica é: Ok, a Guilda afasta os instrumentos de espionagem que poderiam ser usados contra os fremen. Mas será que a Guilda está também alheia aos planos de Liet?
Essa troca de favores já ocorre há um bom tempo, como é falado, mas se a Guilda sabe o que está acontecendo, das duas uma: Ou a guilda tem um interesse velado no plano dos fremen ou não se importa nem um pouco, somente querendo seu periódico pagamento em especiaria mesmo.
E outra coisa. Será que não existem aqueles (dentro ou fora de Arrakis) que estranhem a ausência destes satélites ao redor do planeta desértico? Cito só os satélites, em vez de também os fremen, pois já foi mostrado como praticamente todo mundo subestima absurdamente os fremen. Assim sendo, ninguém tem interesse no que os nativos fazem ou deixam de fazer.

Mais uma olhadela pro horizonte e Stilgar mostra, ao longe, um verme da areia sendo montado por um grupo de fremen. Jessica engole seco. “Que absurdo é esse?” ela pensa. Pois é. Quando desenvolvi essa teoria e meus amigos foram contra, se tratava de algo extraordinário em minha mente. Algo que seria inclusive descoberto por Paul Atreides, o messias. Mas esse capítulo mostra que não é bem assim. Montar vermes é mais cotidiano do que parece. Só que há um porém nessa situação. Há uma linha tênue entre o aspecto comum de se montar em um verme da areia (sob o ponto de vista dos fremen) e o aspecto extraordinário e completamente desconhecido de se montar em um verme da areia (sob o ponto de vista no dos outros povos de Arrakis e do resto do império).
Em capítulos anteriores é citado que ninguém além dos fremen se aprofunda tanto no deserto. São nestes locais (lembrando mais uma vez da ausência de satélites) que ocorre esse tipo de coisa, onde literalmente não há mais ninguém para testemunhar não só os fremen viajando sobre vermes gigantes, como também os trabalhos ecológicos ou a verdadeira força militar dos fremen, por exemplo. É como se a sociedade fremen fosse como Wakanda. O reino africano fictício é conhecido pelo mundo, por meio da ONU, através apenas da tribo da fronteira, que fica em torno do perímetro de Wakanda. A tribo da fronteira finge uma simplicidade, uma pobreza camponesa que não existe e se situa propositalmente fora do domo ocultador de Wakanda.
Essa comparação nos fez até questionar se não existe entre os fremen uma espécie de “política de sacrifício”, na qual alguns grupos, em prol do bem e manutenção da tribo, seriam selecionados para viverem como seres em subsistência (tal qual os mendigos que esperavam a água de toalhas espremidas no banquete dado pelo duque Leto), à margem do núcleo fremen, a fim de manter a atenção do resto do mundo afastada da verdade sobre os nativos de Arrakis.
Depois de falar isso tudo, é preciso ressaltar como os Harkonnen são inúteis, uns verdadeiros imprestáveis. Os inimigos dos Atreides governaram Arrakis por oitenta anos e não conseguiram descobrir nada dos segredos dos fremen. Chega a ser ridículo.

A conversa entre Stilgar e Jessica avança e, de modo estranho, o líder fremen expressa seu… digamos interesse diferenciado por Jessica. Essa parte é muito boa de se analisar pois mostra como os fremen culturalmente se relacionam fisicamente e como as reverberações de uma relação carnal se tornam preocupações de Stilgar no aspecto coletivo da tribo. Jessica, que a primeiro momento rejeita a possibilidade quase que instintivamente, depois passa a considerar os desdobramentos de uma união como essa ao descobrir que poderia ganhar uma autoridade de Reverenda Madre entre os fremen.
Nessa parte Jessica percebe a oportunidade e, sabendo que está disfarçadamente sendo assistida por todos da tribo, utiliza algumas de suas artimanhas de irmã Bene Gesserit, baseada na oratória envolta em falsa manta de superioridade sobrenatural (tal qual os pastores pentecostais fazem tão bem, enganando milhares todos os dias) para exprimir provérbios da cultura fremen, subjetivamente se colocando como a Bene Gesserit da lenda, a progenitora do Lisan Al-Gaib.
É incrível como as pessoas tentam se moldar para percorrer (e se aproveitar) os destinos criados para elas, como discutimos no capítulo 22.

De todos os presentes, Paul Atreides é o único a enxergar o cinismo de sua mãe. O garoto se senta, perturbado por sua presciência. Novamente, assim como no capítulo 22, a mente de Paul é mergulhada em uma série de reflexões sobre o futuro. Além disso, a química de sua mente está sob efeito da alimentação com base em melangé que Paul havia comido pouco antes, o que desencadeia um novo tipo de experiência psíquica para o garoto.
Sentado, o garoto novamente se vê morto no futuro. Claramente o espaço cheio de ameaças a sua volta influencia as reflexões de Paul, que inconscientemente se lembra do conforto no qual cresceu no passado, o que o faz considerar o contraste brutal de sua vida anterior com o presente uma antecedência ininterrupta de morte futura.

Veja, é preciso entender que a ciência da mente criada por Frank Herbert e pela qual Paul desenvolve suas reflexões se baseia puramente em como nós humanos processamos a passagem de tempo em nossas mentes, através da junção de nossa composição físico-química cerebral e a interpretação de tudo o que forma o espaço a nossa volta. É aí que mora o grande trunfo desse livro; o de discutir como nós interpretamos o tempo. Esse capítulo traz um complemento reflexivo ao absurdo capítulo 22, onde foi esmiuçado o significado de destino e causalidade. Aqui a discussão é sobre o espaço-tempo, tal como interpretado por nossa mente para resultar em diagnósticos e prognósticos diversos e constantes.

O tempo todo mudamos nossa percepção e certezas do presente a partir de revisões de memórias do passado, seja para alterar opiniões sobre pessoas, acontecimentos ou qualquer outro aspecto de nossa realidade. Essas revisões são alimentadas por novos conhecimentos e experiências que adquirimos com o passar de nossas vidas e que nos fazem mudar nossas concepções, acontecendo sem nosso controle, no inconsciente. Da mesma forma acontece com as projeções que fazemos do futuro, a partir das junções de nossas mais variadas esferas sapientes (nossa inteligência, cultura, experiência, emoções, fé, ceticismo) atuais.

Lembre-se do que falei no capítulo 22. Todos nós temos as habilidades psíquicas de Paul Atreides, só que em escala e compreensão diferente da proposta por Frank Herbert. Com esse influxo que faz o garoto enxergar os três aspectos do tempo como que em simultâneo, o capítulo fecha com uma adequada menção a Werner Heisenberg, famoso físico do século XIX, o primeiro formulador dos preceitos da mecânica quântica. Uma clara referência a Frank Herbert.

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Bruno Birth
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