Duna Capítulo 37: A Água da Vida

Bruno Birth
brunobirth
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8 min readSep 15, 2020

“As mãos, os lábios se movem:
Ideias jorram de suas palavras,
E seus olhos devoram!
Ele é uma ilha de Individualidade.”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

Este é o capítulo que finaliza a parte II do livro Um de Duna, trazendo uma torrente de reflexões para nós que acompanhamos a trajetória de Muad’Dib.
O contexto deste capítulo gira em torno de um ritual de passagem. Como Stilgar já havia revelado a Jéssica, a respeitada anciã de seu sietch estava na fase final de sua vida, assim, seu posto de reverenda madre deveria ser transferido para outra mulher. Stilgar, bem como parte de seu povo, crê que Jessica, a mãe do suposto Lisan Al-Gaib, é a única substituta possível. Contudo, uma grande parcela dos milhares de fremen que comparecem à cerimônia não possui a mesma certeza, o que coloca a jovem Chani como também uma possível candidata.

Antes de partirmos para os desdobramentos do ritual em si, vale trazer uma análise de uma declaração da muito idosa reverenda madre sobre os fremen. Ela revela que os antepassados dos nativos de Arrakis eram sunitas, sendo os fremen então herdeiros de uma ancestralidade de sobreviventes de guerras, um antigo povo das margens do rio Nilo.
Basicamente explicando, os sunitas e xiitas são as duas principais denominações do islamismo, com os sunitas representando uma parcela de 80% da população muçulmana. As raízes dessa apartação ideológica dentro do islã se traduz na figura de Maomé. As divergentes formas de enxergar o legado do profeta causaram tal separação desses imensos grupos, inclusive com o advento de guerras sangrentas.
Nós tratamos os fremen por “nativos de Arrakis” como uma denominação didática ao olharmos a linha do tempo do mundo futurista de Duna e como parece ter se desenrolado o longo processo de colonização espacial dos humanos a partir do planeta Terra. Um dos agrupamentos humanos saiu da Terra e transitou por alguns planetas até chegar a Arrakis; lá esse povo se instalou e, após muito tempo de reformulação cultural e tradicional, renasceu como o que hoje se traduz ao mundo como a população fremen.
Essa concepção já foi tratada em capítulos anteriores e com mais detalhes adiante, sendo que essa afirmação da reverenda nos dá a entender que os valores islâmicos foram trasportados por esse agrupamento humano em específico ao longo dessa vasta linha do tempo, se diluindo e se ressignificando ao passo que as gerações dessas pessoas foram sendo influenciadas pelos diversos contextos aos quais tiveram contato. Entenda, os fremen não são muçulmanos, apenas resquícios dessa cultura sobreviveram, provindas de sua antiquíssima gênese.
É válido recordar que há também aspectos sobreviventes do cristianismo nesse mundo. A bíblia católica de Orange é o grande exemplo disso. Mas o cristianismo desse mundo é completamente diferente pois foi exposto à ressignificação que o antropológico passar do tempo impôs a essa filosofia.
Alegoricamente falando, são muitos os leitores que analisam a obra de Frank Herbert colocando o planeta Arrakis como uma metáfora ao Oriente Médio, os fremen como a população árabe (por isso as características do islã como exemplo de alegoria) e a especiaria como o petróleo. Nessa alegoria, Arrakis e os fremen, assim como o Oriente Médio e seus povos, sofrem com os colonizadores estrangeiros, que só se interessam em invadir e tomar os recursos do planeta Duna, oprimindo seus nativos no processo e sem a mínima preocupação com a sustentabilidade local.

O ritual é mais um dos vários momentos da narrativa que vociferam o imenso protagonismo de lady Jessica. Ao longo do livro Um de Duna são muitos os acontecimentos diretamente influenciados pelas ações de Jessica e é bem conclusivo dizer que Paul não chegaria a lugar nenhum sem ela.
É muito interessante ver como o convergência entre a recorrente necessidade de se reinventar para sobreviver num mundo muito diferente e os anseios pessoais para tornar as características de seu filho iguais às da lenda do messias norteiam todas as reflexões de lady Jessica.
Partindo do momento em que Jessica e Paul são encontrados por Stilgar (pois muito já falamos sobre a criação que a Bene Gesserit deu a Paul desde criança), vemos essa mulher argumentar e contra-argumentar das maneiras mais diferentes e astutas possíveis para não só sobreviver entre os fremen, como também convencer os nativos de Arrakis a acreditarem no mesmo que ela, ou seja, que Paul Atreides é o messias.
A construção dessa personagem é de uma inteligência filosófica absurda pois reflete toda a discussão que já tratamos no capitulo 22 sobre as naturezas do destino e da casualidade. Veja, se Jessica e Paul tivessem fugido de Arrakis e se refugiado em outro planeta, a Bene Gesserit iria articular suas ações para convencer o povo desse outro planeta de que Paul é o messias. Lembrem-se de que, por não conseguirem aceitar a pequeneza de sua existência e finidade imposta pela morte, os humanos se esforçam para moldar o caos da completa casualidade da vida humana para que tal aleatoriedade convirja com os mitos de destino (controle superior, predestinação na direção de uma existência de valor elevado) que os próprios humanos criam para si mesmos.
É isso o que Jessica está fazendo com os fremen, se entregando por inteiro e colocando a sua vida (e a de seu feto feminino) em risco para salvar a Paul Atreides, alinhando a lenda do Kwisatz Haderach das Bene Gesserit com a lenda do Lisan Al-Gaib dos fremen em torno de seu filho com o duque Leto. Lisan Al-Gaib que surgiu das lendas de evangelizações de antigas Bene Gesserit, há de se lembrar inclusive.

É realmente incrível e visionária a maneira como Frank Herbert discute o conceito de messias nesse livro. É como se todas as obras posteriores e que se inspiraram em Duna na verdade tivessem vindo antes e Duna fosse uma crítica racional em perspectiva a elas, pois essas outras obras inspiradas em Duna, como Star Wars por exemplo, se usam do conceito de messias do modo mais simplório, partindo da ideia de predestinação como realidade a governar todos os povos. Anakin Skywalker é tratado como de fato um menino predestinado e a mudança de alinhamento de caráter pela qual a personagem passa durante a história acaba sendo considerada como parte da lenda do “escolhido para dar equilíbrio à Força”. Entendem como é diferente? Ninguém chega a questionar de fato se o anseio da população por um Escolhido é o que faz Anakin ser o escolhido. Ele só é e pronto.

Vamos aos aspectos conceituais do ritual. A específica maneira como a mente humana neurologicamente sente e processa os dados para interpretar o espaço e o tempo representa uma “micro-realidade”, ou seja, uma parcela da realidade total e inerente a limitação dos aspectos fisiológicos humanos. A partir disso, surge a “ciência da mente” de Frank Herbert (discutida no capítulo 22) como a camada filosófica mais profunda do mundo de Duna. Desde o antigo jihad butleriano, a revolução contra as máquinas que resetou o mundo humano, se estabeleceu que os computadores de inteligência artificial não mais podiam existir. Máquinas que possuíam inteligência superior à humana não mais podiam ser permitidas.
Dessa forma, a alternativa para a continuação da evolução humana fez com que as sociedades do futuro da narrativa de Duna trabalhassem pesado para expandir as capacidades mentais dos humanos. Assim surgiram as já conhecidas organizações que tanto citamos como os mentat e as Bene Gesserit. O ponto é: por meio desse esforço da sociedade em concentrar-se nos valores na mente, a capacidade cognitiva dos humanos deste futuro se elevou profundamente.
Mas qual foi o ponto de partida de Frank Herbert para projetar isso? Vamos focar nesse capítulo nas Bene Gesserit, por conta do ritual de Jessica.
A ciência da mente permeia o livro inteiro mas a reação psíquica de Paul com uma refeição que continha mélange em capítulo anterior foi o primeiro exemplo descrito diretamente sobre a junção de um aspecto externo (a química da especiaria) com um aspecto interno (as características físico-químicas do corpo de Paul). Tal episódio foi também um ensaio para o que acontece no ritual deste capítulo.
Pois bem, Frank Herbert possuía um histórico de análise do relacionamento humano com a natureza alucinógena de cogumelos. Leia mais sobre isso AQUI. É notável como a acentuação dos sentidos cerebrais diante da reação a cogumelos ou outros tipos de substâncias parecidas (como o composto da ayahuasca) serviram de inspiração ao ritual da Água da Vida, exposto neste capítulo.
As descrições de como Jessica mergulha em sua mente após ingerir a mistura líquida a base de especiaria se encaixam com as características de uma experiência com alucinógenos. A mãe de Paul cria imagens-reflexos de como sua mente interpreta pessoas a sua volta e nesse espaço de acentuação dos sentidos neurais Jessica chega a conversar com as imagens-reflexos que cria das pessoas. Em dado momento, a projeção que a mente de Jessica faz da velha reverenda madre se encontra com seu receio pela vida de sua filha no ventre e então a imagem-reflexo da reverenda madre repreende Jessica por se expor a esse ritual sabendo que está grávida. Parece loucura mas não é.
A relação entre nosso eu e o ambiente exterior se traduz ininterruptamente em nosso subconsciente e inconsciente (ambos funcionam sem parar) na maneira como enxergamos o mundo e a nós mesmos. Se eu disser para você se imaginar em cima de um elefante no deserto, você não tem a escolha de não imaginar isso; sua mente vai criar essa imagem de modo instantâneo, sem seu mínimo controle. Sob o avivador efeito mental da ayahuasca, por exemplo, a estrutura neuronal de um indivíduo maximiza a tudo isso.
É o que acontece a Jessica. Uma Bene Gesserit, ou seja, só por isso já tem uma mente em atividade elevada, levando em consideração todo o contexto no qual se desenvolve o mundo futurista de Duna, mais a adição química da especiaria, o que acentua ainda mais a sua atividade cerebral no ritual.

Jessica sobrevive. A antiga reverenda madre morre. O povo fremen entra no estupor coletivo do culto, salientando a influência do ambiente social como catalisador construtivista da confirmação dos ideais pessoais, inseridos tradicionalmente pelas grandes redes de ficções cognitivas.
Assim agem os pentecostais que, sob a atmosfera sensorial induzida por fervorosa pregação cheia de oratória do pastor, entram “no espírito”.
Assim agem os fãs do Metallica, não conseguindo em um show controlar a efervescência sanguínea causada pela frenética troca de notas musicais das guitarras do thrash metal.
Não importa se alguém que não participou do ritual da Água da Vida não acredite que Jessica é a mãe de Lisan Al-Gaib ou mesmo a mulher ideal para ser a nova reverenda madre do sietch. Os que participaram do ritual, do culto, estarão dispostos a matar e morrer por ela.

Então chega a vez de Paul ingerir a Água da Vida, e quando isso acontece, uma nova cachoeira de reflexões trinoculares, ou seja, a mistura de passado, presente e futuro, invadem sua mente para ilustrarem as mais diversas esferas da realidade na qual ele está inserido, assim como acontece no incrível capítulo 22. O presente está claro, a jornada das Bene Gesserit para continuarem planejando cruzamentos genéticos em busca de reproduzir e encontrar o Kwisatz Haderach e as maquinações dos inimigos Harkonnen. Mas também há coisas que ainda se mantém em segredo, como os objetivos reais da Guilda Espacial.

Contudo, há uma adição nova nas reflexões prescientes de Paul: Chani. A afeição sentimental pela garota faz com que Paul a permita acompanhá-lo em suas veredas pelo futuro prognóstico. De repente, Chani está ao lado de Muad’Dib, chefiando o terrível jihad do Messias de Duna. De repente Chani está grávida de Muad’Dib. O ciclo está completo, o ritual se finaliza Paul Muad’Dib a partir de agora é, na prática, o Messias de Duna.

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