Duna Capítulo 7: A Chegada a Arrakis

Bruno Birth
brunobirth
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6 min readJul 6, 2020

“Com lady Jessica e Arrakis, o sistema Bene Gesserit de semear lendas-implantes por meio da Missionária Protectora chegou a sua realização plena. Há tempos se reconhece a sensatez das Bene Gesserit em semear o universo conhecido com um padrão de profecias para a proteção de seu pessoal, mas nunca se viu uma condição ut extremis com um casamento tão perfeito de indivíduo e preparação. As lendas proféticas tornaram-se tão populares em Arrakis que até mesmo certos termos foram adotados (entre eles Reverenda Madre, canto e respondu e boa parte da panoplia propheticus de Shariá). E hoje é comum aceitar que as habilidades latentes de lady foram grandemente subestimadas.”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

No excerto de Irulan para esse capítulo já podemos inferir algumas coisas. Seria a confirmação de que Paul Atreides será de fato o Kisatz Haderach? O grande protagonista da profecia Bene Gesserit? Pois até o momento que acompanhamos há uma aura de incerteza sobre o garoto, exceto por lady Jessica, que tem certeza de que seu filho é o “messias”. Outra coisa interessante é como o excerto mostra que a classe das Bene Gesserit ganhou relevância cultural no planeta Arrakis, algo que vamos desenvolver adiante nessa análise.

Pois bem, a família Atreides desembarca em Arrakis, o planeta desértico conhecido como “Duna”. E o primeiro contato que temos com o planeta é através dos olhos e sentimentos de lady Jessica. A mulher observa tudo de um modo único enquanto luta para não deixar suas emoções se sobreporem a sua postura controlada; postura essa que Jessica sabe que agora precisa mais do que nunca. Enquanto os servos vão alojando as caixas da mudança, Jessica recebe o duque Leto Atreides em um diálogo revelador que nos mostra que ela, apesar de toda responsabilidade e importância que parece possuir, não passa de uma concubina comprada das Bene Gesserit por Leto Atreides. O duque deve permanecer “solteiro” por uma questão política relacionada ao possível fomento de alianças com outras casas grandes através do casamento. Se um arranjo do tipo fosse elaborado lady Jessica nada poderia fazer, mesmo sendo a mãe do único filho de Leto Atreides. Imagine como essa mulher deve se sentir. Tal relação fica muito clara nas palavras trocadas pelo casal; há certa afinidade emocional entre os dois mas há também muita frieza por parte de Leto, que não hesita um minuto em tratar Jessica como alguém que deve receber ordens apenas. Jessica, por outro lado, transita entre o afeto que possui por Leto e a repulsa que tem à maneira que o duque muitas vezes a ela se dirige. Em vários momentos Jessica deseja agir de modo mais natural com Leto mas não consegue por ser uma concubina (algo inferior), enquanto em outros ela luta para não usar suas habilidades psíquicas (aprendidas na classe Bene Gesserit) e mudar as predileções mentais de Leto, quando o duque se comporta de modo hostil com ela. Não ser a esposa de Leto Atreides faz uma diferença absurda para a existência de Jessica, nos faz até mesmo conjecturar que a escolha do sexo masculino de Paul pode ter sido uma pura imposição de Leto Atreides, em vez de uma decisão em conjunto do casal.
Em meio aos pacotes que chegam se encontram duas coisas importantes relacionadas ao duque: o retrato de seu pai e a cabeça de um touro com chifre ensanguentado, presa a uma placa de madeira para enfeite. Esses objetos, conforme a conversa do casal avança, mostram que o pai de Leto não era lá uma pessoal muito amigável e que a criação que o velho duque deu a Leto fez o companheiro de Jessica se tornar uma pessoa ruim em vários aspectos que fazem Jessica até mesmo o odiar em alguns momentos. Leto parece não nutrir saudade amorosa alguma do pai e se torna meio asqueroso pensar o motivo de ele guardar aquela cabeça de touro quando se descobre que o sangue a sujar os chifres é de seu pai, morto pelo animal. Em uma análise adiante vamos desenvolver uma teoria sobre o velho duque e o touro. Aguardem.
Há um certo momento em que o duque se pergunta em pensamento sobre a ancestralidade de Jessica. Para o duque, é intrigante imaginar se Jessica faz parte ou não de uma linhagem importante. Já foi falado em capítulos anteriores que as mulheres da classe Bene Gesserit não possuem passado, o que quer dizer que deve haver algum processo de lavagem cerebral ou algo do tipo para que, a partir do momento em que ingressam na classe, as irmãs Bene Gesserit passem a viver apenas em prol dos propósitos das Bene Gesserit e nada mais. Contudo, ao trazer esse pensamento de Leto Atreides, Frank Herbert pode estar brincando conosco sobre a importância do passado de Jessica, que pode muito bem ser resgatado de alguma forma mais a frente na narrativa.

Mais algumas características da especiaria valiosa de Arrakis são trazidas nesse capítulo. O duque cita que precisa fazer com que os caçadores de especiaria de Arrakis, funcionários especializados na mineração do mélange, permaneçam no planeta, uma vez que, pela legislação imperial, possuem a opção de irem embora com a mudança de suserania do feudo de Arrakis. A preocupação do duque nos mostra que a obtenção do mélange é extremamente complicada, apesar de Arrakis possuir uma reserva natural com volume aparentemente absurdo. Leto poderia simplesmente deslocar seu próprio pessoal, se a mineração de mélange fosse algo relativamente fácil. Outro aspecto dessa situação é que os operários especialistas não são ligados às grandes casas, eles têm a opção de se ligarem a elas ou não, o que os torna funcionários do império como um todo. Tal relação pode se tornar relevante posteriormente.

Sai Leto Atreides de cena, entra a nova funcionária pessoal de lady Jessica, uma fremen chamada Mapes. É interessante como a construção de mundo imposta por Frank Herbert nesse livro funciona de modo orgânico e cheio de detalhes interessantes. A conhecida escassez de água no planeta Duna marca a vida dos fremen de diversas formas, culturalmente e fisicamente, como já falamos em análises anteriores. Pelos olhos de Jessica, Frank Herbert descreve as características físicas de Mapes sob a ótica da estranheza que a mãe de Paul Atreides deveria sentir ao se deparar com um tipo de gente tão diferente. É bem marcante como as distinções físicas são ilustradas nesses capítulo.
E aí voltamos a falar sobre a disseminação da cultura Bene Gesserit no planeta Arrakis citada pela princesa Irulan no início do capítulo pois, desconfiada de sua nova funcionária, Jessica usa suas habilidades psíquicas para detectar as intenções de Mapes; ao fazer isso, Jessica descobre que a fremen está ali para avaliá-la e se caso o resultado fosse negativo, Jessica devia morrer. Mas por quê? Como assim?
Como Irulan explica, as profecias das Bene Gesserit se tornaram populares em Arrakis e, pelo que Mapes afirma, os fremen adotaram a profecia do Kwisatz Haderach em sua cultura por algum motivo incerto, moldando-a para sua linguagem tradicional própria. Com isso, os fremen aguardam ansiosamente pela Bene Gesserit “escolhida” e quando ficaram sabendo da chegada de Jessica, enviaram Mapes para se infiltrar na família Atreides, afim de avaliar Jessica, que acabou desmascarando um plano que era pra permanecer em segredo. Algumas coisas interessantes sobre isso devem ser destacadas. A classe Bene Gesserit faz parte da estrutura social do império, contudo, os fremen são tidos como um povo inferior, completamente à parte da sociedade imperial. Mesmo assim, aspectos culturais das Bene Gesserit se entranharam na cultura fremen! E por propagação primária voluntária das Bene Gesserit! Qual seria o interesse das irmãs em um povo que não faz parte do império do qual elas fazem parte? E mais, seria Arrakis parte incompleta da profecia envolvendo o messias e por isso essa lenda profética foi implantada no planeta?
Tem uma última coisa importante. Como falado, se Jessica fosse avaliada como não sendo a Bene Gesserit escolhida ela deveria ser morta por Mapes, o que mostra que os fremen batalham para que apenas uma Bene Gesserit seja permitida em solo arrakino: a Bene Gesserit escolhida. Mapes acaba interpretando Jessica como a mulher da profecia e a ela dá um presente, uma dagacris, que é uma adaga feita a partir do dente de um verme da areia. Um objeto que ganha aspecto significativo nas palavras da fremen.
Bom, se o duque Leto Atreides está pensando em planos para fazerem os fremen se unirem aos Atreides contra a emboscada Harkonnen, mal ele sabe que, a partir do momento que Mapes espalhar a palavra da profecia, esse apoio dos nativos de Arrakis virá naturalmente.

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Bruno Birth
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