O Grande Fechamento

Bruno Braga
10 min readApr 19, 2020

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Na manhã de mais um dia de quarentena, depois de mais uma noite mal dormida e muita dificuldade de vencer aquele sono paralisante, que não me deixava abrir os olhos direito, pensei sobre o que escrever no meu primeiro texto deste site, texto esse que venho ensaiando na minha cabeça há dias, mas que, por uma imensa ansiedade e incapacidade de concentração, só tomei forças para escrever hoje. Não tenho nenhum tipo de expectativas sobre isso que está acontecendo aqui, pois, ultimamente, tenho duvidado muito da minha aptidão para traduzir em palavras tudo o que eu estou sentindo e pensando, o que não me impede de tentar.

Olhando as notícias importantes nos principais jornais do Brasil e do mundo, como todos os dias faço, me deparei com o que o Fundo Monetário Internacional divulgou nessa semana: atravessaremos uma crise econômica mais grave do que a Grande Depressão de 1929, que, na época, derrubou o mundo humano pelas suas bases, destruindo não só a economia, mas também as subjetividades das pessoas e de certa forma a cultura ocidental, naquele momento encantada com o progresso técnico que o capitalismo imperialista e selvagem proporcionava, mesmo que para poucos, e eufórica com o fim da 1ª Guerra Mundial.

Pois bem.

Diante desse cenário catastrófico, apelidado de “The Great Lockdown”, traduzido como “O Grande Fechamento”, vários pensamentos se amontoaram na minha cabeça. Preso mais ao nome dado a esse contexto histórico ao qual estamos submetidos e à semântica que o conjunto das palavras que o formam carregam do que precisamente aos números alarmantes e preocupantes sobre os imensos prejuízos que esse sistema obsoleto — ainda visto como a única opção de desenvolvimento pela maioria — terá, pensei que as palavras “grande” e “fechamento” poderiam ser transplantadas para outras instâncias da vida humana nesse momento em que somos obrigados a nos isolar do antigo mundo que conhecíamos até meses atrás. Isso porque, como subjetividade, como um indivíduo social e como um cidadão brasileiro, o que a quarentena tem me feito é um grande fechamento. Em mim, com os outros, e por outros. Explico:

O Grande Fechamento (em mim)

Não saio da minha casa desde o dia 15/03/2020. Fui a uma festa no dia anterior e, mesmo sem conseguir imaginar totalmente tudo que estaria por vir, me despedi do mundo como eu conhecia, me baseando nas experiências de solidão e isolamento que as outras pessoas de outros países já estavam enfrentando. Por incrível que pareça, porém não me dei conta de que seria obrigado, por conta de um vírus, a conviver comigo mesmo e com os meus pensamentos durante as 24 horas do dia. Não imaginei, pelo menos conscientemente, que estava me fechando, em mim mesmo, como subjetividade, e em tempo integral. Que estava, de forma compulsória, me deparando com o mais íntimo de mim, sem as distrações dos estudos e da rotina que eu levava antes dessa crise, rotina essa que, mesmo que por alguns momentos, era capaz de adormecer o eu que mora em mim. Sem o amor e as risadas dos amigos que eu tanto amo, que aliviavam a semana nos encontros de sábado.

Os dias foram passando, e, sensibilizado pelas notícias arrasadoras de número de mortos e infectados aumentando, estressado pelos crimes cometidos pelo presidente brasileiro em sua maneira de lidar com a situação calamitosa que o Brasil está e entediado pelo ócio, tenho tido a oportunidade de me confrontar como eu ainda não tinha feito antes, mesmo após anos de terapia.

As mesmas listas de músicas e álbuns que eu escutava antes da crise incansavelmente, talvez por tê-los incorporado àquela rotina maçante que hoje me questiono se me faz falta, tomaram outro significado. O álbum da banda O Terno, que antes me tocava pela beleza das letras e melodias, hoje me tocam pela concretude que a música “Tudo Que Eu Não Fiz”, “Pegando Leve” e “Passado / Futuro” tomaram. As reflexões que antes eu fazia sobre meus relacionamentos, minha família, minhas escolhas e a vida que eu queria pra mim, de um dia pro outro foram trancadas em um baú de memórias de um mundo que não existe mais. A partir de agora, as reflexões são dos relacionamentos que eu quero ter, do modo como quero conviver em família e das escolhas que eu ainda vou fazer quando essa pandemia acabar. Talvez eu precisasse dela pra perceber que, com 19 anos de idade, não estava tudo acabado como minha cabeça de um homem de meia idade em crise pensava estar.

Por fim, o Grande Fechamento (em mim), paradoxalmente, apesar de estar sendo de certa forma renovador, ele também tem sido destrutivo. Isso porque, devido ao futuro incerto que teremos, todas as novas oportunidades que esse novo mundo nos trará não são inteligíveis no momento, e isso é extremamente angustiante e exaustivo. Tenho me sentindo exausto, mesmo sem fazer muita coisa, pelo menos aparentemente. Tenho mais dúvidas do que respostas, e, se antes da pandemia, em um mundo já conhecido por mim, isso já me causava arrepios, imagina agora, que essas dúvidas sem respostas vagam por um mundo que ainda será (re)construído.

A única conclusão que eu tiro dessa divagação é que terei mais longos anos de terapia pela frente. Tanto pelos estragos do vírus, quanto pelos estragos do meu olhar e do meu grande fechamento pra dentro (a gente vê, sente e pensa umas coisas que antes não via, não sentia e não pensava).

O Grande Fechamento (com os outros)

Nunca imaginei que passar tempo com as pessoas que eu mais amo no mundo, a minha própria família, seria um dos grandes desafios que eu enfrentei nos últimos tempos. Afinal, passávamos tanto tempo ocupados com as nossas próprias rotinas, fazendo viagens à trabalho, estudando até tarde ou encontrando os amigos que gostamos, que um tempo juntos teria tudo para ser uma ótima experiência, mesmo que eu não tivesse criado muitas expectativas quanto a isso, uma vez que, mesmo no mundo velho, já tínhamos nossos conflitos, como qualquer família comum. Pensei que, no antigo mundo que vivíamos, sempre reclamávamos das saudades um do outro e de como muitas vezes não tínhamos tempo para reparar nas pequenas coisas uns dos outros, pra conversar sobre assuntos familiares e para nos conhecermos melhor, já que a constante transformação de nós mesmos e a morte são as únicas certezas que temos na vida.

O Grande Fechamento com os outros, sendo estes a minha família, me colocaram diante de grandes desafios. O principal deles é perceber o quão diferente deles eu posso ser, o que era algo que já desconfiava. E imagino que o mesmo que tenho sentido fechado em mim, eles têm sentindo fechados neles. Mas, com a intensificação do tempo de convivência, o que era latente e restrito apenas aos encontros em família, se tornou constante e, mais uma vez, catalisado pela angústia e ansiedade diante do novo mundo que ainda não pudemos conhecer. Assim, diversos conflitos internos e externos surgiram, o que me tem feito refletir muito:

Como conciliar minhas diferenças, muitas vezes intransponíveis, com as deles?

Ainda estou tentando descobrir.

Talvez não descubra agora, talvez não descubra nunca. De concreto, o que esses conflitos causaram em mim foi a necessidade urgente de exercitar a minha tolerância e paciência, antes mais frágeis pela possibilidade de me distanciar deles por um tempo caso eu quisesse. Agora, preso com eles, pra onde posso fugir?

A conclusão que tiro deste trecho, parte desse desabafo, é que os Grandes Fechamentos talvez estejam me obrigando a conviver com situações que antes, por comodidade, eu apenas enterrava em mim mesmo. Mas, uma vez que fechado em mim e fechado com os outros, tudo o que me resta é viver essas situações, tentando resolvê-las de maneira a aliviar o monte de sofrimentos já trazidos pela própria conjuntura que estamos vivendo. Afinal, o mundo lá fora, fechado também, já está suficientemente difícil para não nos esforçarmos para ficarmos bem no único lugar que, mesmo nos cansando e nos fazendo sofrer, paradoxalmente, é onde estamos mais seguros.

O Grande Fechamento (por outros)

Não.

Não culparei o vírus por esse fechamento, apesar de, essencialmente, ele ser a causa primordial de toda essa destruição que estamos presenciando de nossas janelas. O lockdown causado pelo vírus é necessário para a nossa sobrevivência, no final das contas. Na verdade, essa parte do texto trará como culpado por esse grande fechamento — o que eu chamei de O Grande Fechamento (pelos outros) — o presidente da república, sua equipe e sua base de apoiadores mórbidos.

Sim, Bolsonaro é o culpado por estarmos fechados em um país que está indo diretamente ao esgoto. Ele está, nesse momento, nos fazendo de reféns de seus planos genocidas para o povo brasileiro, usando como arma a COVID-19, sua omissão em relação ao SUS e seus incentivos à aglomerações e desrespeito às recomendações da OMS. Como se não fosse suficientemente obscuro esse cenário, o verme que chamamos de presidente ainda, constantemente, inflama sua horda de homens lobotomizados pela sua ideologia da morte para pedir golpes militares e o fim da democracia brasileira, construída por meio de muita luta e após o derramamento de muito sangue depois de 21 anos de ditadura militar, que, não custa lembrar, é elogiada abertamente pelo capitão que hoje ocupa o Palácio do Planalto.

Desde o início do grande fechamento do Brasil, no início de março, o presidente da república já saiu às ruas diversas vezes, tocando em seus apoiadores, causando aglomerações e, talvez, transmitindo a COVID-19 entre os seus seguidores. Para além de todos os crimes que esses atos configuram, queria, aqui, analisar o bolsonarismo como uma ideologia nefasta, que tem como objetivo o autoextermínio, a destruição do povo e a morte como princípio reitor de todas as ações empreendidas por este homem que chamamos de presidente. Fazendo uma analogia, Bolsonaro representa o Voldemort, e seus seguidores e equipe, os comensais da morte.

Foto de Joedson Alves, da agência de notícias EFE

De maneira escatológica, temos um verme que nos governa e todo dia se dedica a atacar inimigos criados por ele, como a China, o seu Ministro da Saúde, o STF e o Presidente da Câmara dos Deputados. Enquanto isso, corpos se amontoam nos hospitais e cemitérios sem que os familiares dessas pessoas transformadas em números — que Bolsonaro chama de pequenos — possam sequer se despedir, para evitar o contágio pelo coronavírus nos que ainda estão vivos, tamanha a gravidade da crise de saúde que o Brasil e o mundo vivem hoje.

Será que os 2.300 mortos que o Brasil tem até o momento são insuficientes para que a mente perversa que comanda o país pare de ser irresponsável?

Lamentavelmente, a resposta dessa pergunta parece ser sim. Em entrevista dada no passado, Bolsonaro vociferou que a ditadura deveria ter feito 30.000 mortos. Diante dessa declaração, talvez esse momento de pandemia esteja sendo a oportunidade perfeita para que o presidente assassine todos aqueles inocentes que ele quer exterminar há anos, uma vez que os estudos demonstram que, caso as orientações da OMS continuem sendo desrespeitadas, o número de vítimas da doença no Brasil pode chegar a casa dos milhões.

Assim, submetidos a um plano genocida articulado em torno da abertura do comércio (visto que a economia é mais importante que a vida humana) e do (grande) fechamento do Congresso Nacional e do STF, empreendido por um psicopata eleito democraticamente, e, hoje, apoiado por uma minoria de pessoas que apodreceram junto à democracia brasileira, não há grande fechamento — esse por motivos sanitários — que seja capaz de parar a COVID-19.

Foto de Gabriela Biló, tirada no dia em que o presidente se reuniu com apoiadores e incentivou um golpe militar no Brasil.

Para piorar o que já é péssimo, essas mesmas instituições democráticas atacadas constantemente pelo anti-presidente, como define bem o jornalista Bruno Torturra, insistem em se acovardarem e se omitirem quanto à gravidade, igual ou superior do vírus Bolsonaro, que infecta todos os dias os indivíduos, as famílias, e a sociedade brasileira. Todos esses fechados de diferentes maneiras, que, combinadas, são capazes de me colocarem incrédulo e recolhido em pensamentos e sentimentos nada nobres. Sentimentos esses que são apenas sintomas de uma doença que mata o Brasil: o bolsonarismo.

Toda essa breve análise da situação política do Brasil serve para concluir que esse Grande Fechamento (por outros) é, por ser o maior de todos, visto que envolve todo o corpo social, aquele que mais me tem feito mal durante o isolamento social e os outros dois grandes fechamentos comentados nesse texto. Isso porque, como indivíduo social e cidadão brasileiro, me sinto constantemente agredido pelo meu próprio presidente, que, com suas ações, colocam em risco a vida dos meus, intensificam a dor de estar fechado em mim e as dificuldades de estar fechado com os outros, já que, além de despertarem em mim sentimentos tóxicos e me tornarem muitas vezes intolerante e impaciente, objetivamente, essas ações atrasam o fim — ou, pelo menos, o relaxamento — da quarentena.

Termino essa parte do texto com uma imagem, capaz de expressar o Brasil de 2020 muito bem:

“Um policial aponta uma arma em direção a casas da favela do Vidigal que jogavam ovos e objetos em carros que participavam de carreata pró-Bolsonaro e a favor da reabertura do comércio durante a pandemia do Covid-19 no Rio” (Foto e legenda por Lucas Landau).

É isso aí: o policial representa o presidente, que é aquele o qual deveria estar trabalhando para nos proteger, mas, ao contrário, nos ameaça com o que está em suas mãos para nos matar. Por sua vez, os motoristas da carreata da morte representam os zumbis bolsonaristas que saem pelo Brasil fazendo campanha pelo autoextermínio e os moradores do Vidigal representam o povo oprimido e feito de refém pelos primeiros.

O Grande Fechamento (do texto)

Para concluir esse desabafo, me apego em um excerto de Gramsci, que diz:

“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”.

Sem nos dar nenhuma resposta, Gramsci é capaz de, no fundo, acender um fio de luz dentro de nós. Interpretando a assertiva, concluo que, apesar de mórbidos os sintomas, um dia eles vão passar e o novo vai nascer. Logicamente, portanto, o Grande Fechamento cessará e o novo mundo nascerá também.

Enquanto isso não se concretiza, permaneço fechado em mim, com os outros e, infelizmente, por outros, me perguntando que vida teremos quando tudo isso acabar.

Trazendo Gramsci novamente, eu, pessimista da razão e otimista da vontade, me respondo dizendo que o novo que nascerá depende de nós. Basta nos organizarmos pela construção do mundo que queremos para que seja possível, novamente, nos abrirmos como subjetividade, como indivíduos e como cidadãos livres, saudáveis e proativos na reconstrução da humanidade que haverá de nascer após a catástrofe da pandemia.

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