Resultados não bastam

Bruno de Pierro
9 min readSep 13, 2019

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“Não estamos conseguindo fazer o que vocês fazem”, foi o que disse a biomédica Helena Nader, presidente de honra da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], ao encerrar o sétimo encontro da jornada Relações do conhecimento entre arte e ciência: gênero, neocolonialismo e espaço sideral, realizado ontem, 12 de setembro, na sala do conselho universitário da USP [Universidade de São Paulo].

Ela se dirigia aos artistas que dividiam o espaço do auditório com cientistas de várias áreas do conhecimento. E o que os artistas fazem que os pesquisadores não estão conseguindo fazer? Para Helena, os artistas contemporâneos (visuais, digitais, etc.) sabem como sensibilizar a população ao propor discussões estéticas sobre problemas da atualidade rompendo barreiras disciplinares.

A comunidade científica, por sua vez, segue muitas vezes isolada na luta em defesa da pesquisa no país, por não conseguir se associar culturalmente com outras áreas da sociedade, nas palavras do bioquímico Hernan Chaimovich, presidente do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] entre 2015 e 2016: “associações, sociedades e academia produzem abaixo assinados, lidos com atenção aparentemente apenas pelos próprios assinantes”.

Penso que um dos méritos da arte contemporânea é desnudar os procedimentos empregados na produção artística. As obras, na maioria das vezes, se apresentam como processos, revelam as técnicas empregadas pelos artistas. Já a ciência raramente é apresentada como processo. Ao contrário, pesquisadores e divulgadores preocupam-se em mostrar à sociedade os produtos acabados da ciência. E não há nada de errado em fazer isso: é cada vez mais necessário apontar de que forma a produção científica impacta na sociedade, e isso implica expor resultados de pesquisas e suas aplicações.

Se por um lado busca-se fixar a importância da ciência para solucionar problemas reais e gerar inovações, por outro lado não se estimula na população a empatia pelo trabalho dos cientistas. E isso ocorre porque a divulgação científica, em grande parte, trata exclusivamente do produto final da ciência, negligenciando do público os processos envolvidos na produção do conhecimento.

Um pouco de arte

Até o início do século XX, o esforço de laboração dos artistas era mantido “em segredo”. Sabemos que pinturas do Renascimento podiam levar anos para serem concluídas dado o alto nível de realismo aplicado por artistas como Leonardo Da Vinci (1452–1519). Mas obras como Monalisa quase nada nos revelam sobre metodologias, processos e técnicas adotados por Da Vinci. Isso porque, nesse caso, o mais importante para o artista era apresentar uma obra-prima do realismo renascentista, um retrato acabado, cuja perfeição ofusca o próprio trabalho braçal despendido por Da Vinci. É como se o quadro tivesse caído do céu.

A partir da década de 1910, os construtivistas russos rompem que essa noção de arte. Para eles, o processo da pintura (enquanto trabalho) era mais importante do que o resultado final (o quadro), como explicou o teórico russo Nikolai Tarabukin (1889–1956) no ensaio Do cavalete à máquina (1923).

Construction, do artista russo Aleksandr Rodchenko (1891–1956): a junção de linhas, formas geométricas e cores primárias busca organizar a realidade a partir do trabalho do artista, e não representar a realidade em si (Imagem: MoMA)

Os artistas da LEF [Frente de Esquerda das Artes], que aglutinou os principais nomes do construtivismo russo, tinham como finalidade socializar a arte. Ao conceber a pintura e a escultura como formas de construção (e não de representação), o construtivismo entendia a obra de arte como um objeto útil, à serviço da revolução e, portanto, da classe operária.

Nesse sentido, era necessário “profanar” a arte burguesa por meio de uma nova arte mais “terrena”, capaz de mostrar que uma pintura nada mais é do que o resultado do trabalho do artista.

Essa escola russa influenciou fortemente a arte moderna ocidental. O francês Marcel Duchamp (1887–1968) mostrou que o fim da atividade artística não é a obra, mas a liberdade, como salientou Octavio Paz (1914–1998) em Marcel Duchamp ou o castelo da pureza (Perspectiva, 2012). “A obra é o caminho e nada mais”, escreveu ensaísta mexicano.

Uma das obras mais famosas de Duchamp é o Grande Vidro, de 1915, que consiste em duas imensas chapas de vidro, nas quais fios de chumbo, óleo e verniz são utilizados na composição. Duchamp trabalhou na obra até 1923 e, de acordo com Octavio Paz, é um marco da crítica ao próprio ato de pintar. Inacabado, o Grande Vidro revela o trabalho de Duchamp de romper com a arte de pintar. A obra é meio para a crítica. Diz Paz:

O inacabamento do Grande Vidro é semelhante à palavra última, que nunca é a do fim: é um espaço aberto que provoca novas interpretações e que evoca, em seu inacabamento, o vazio em que se apoia a obra. Esse vazio é a ausência da Ideia […] se o poema é um ritual da ausência, o quadro é sua representação burlesca.

O Grande Vidro, de Duchamp: o trabalho em movimento e inacabado do artista para além da simples contemplação

Pouco importa o que é o Grande Vidro, no fim das contas. O que interessa é que o vidro transparente reflete a imagem de quem o contempla. É uma obra que, enquanto meio e não fim, não pode ser contemplada, senão decifrada.

Voltando à ciência

Ao criar um objeto que estimula a reflexão sobre a própria produção artística, Duchamp, abriu a caixa preta de sua arte, revelando ao público seu rompimento com a “pintura-pintura” (a tradição pictórica) ao mesmo tempo em que expõe, nas próprias obras, seu modo de produção artística.

De lá pra cá, a arte contemporânea seguiu nessa linha: o fazer-arte enquanto arte em si. Em 1997, o artista brasileiro Eduardo Kac reuniu público e jornalistas na Casa das Rosas, na Avenida Paulista, em São Paulo, e diante de todos tomou uma anestesia local, fez uma incisão com bisturi no tornozelo esquerdo e implantou um chip do tamanho de uma ponta de lápis — que está em seu corpo até hoje. O chip é daqueles usados para identificar animais domésticos perdidos. A performance de Kac é mais interessante do que a finalidade do chip implantado em seu corpo. “Queria confrontar uma memória natural com outra que você adquire artificialmente”, disse à época.

O trabalho “braçal” de Kac, a performance em si, é lembrada até hoje e fez seu nome despontar no cenário internacional da arte contemporânea. Três anos depois, em 2000, o artista, com a colaboração de cientistas do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica da França, criou uma coelha albina, chamada Alba, que emitia luz verde quando submetida à luz azul.

O trabalho artístico, novamente, era a obra em si: a introdução em células reprodutivas da mãe de Alba um gene que produz uma proteína verde fluorescente, a GFP, extraída de um tipo específico de água-viva. O processo artístico-científico gerou controvérsias e motiva debates sobre os limites da manipulação genética e da própria arte até hoje.

Isso que os artistas fazem e que os cientistas negligenciam é simplesmente mostrar como seus trabalhos são criados. O que Kac fez para promover uma discussão sobre a relação homem-máquina? Mostrou o processo completo de implantação de um chip em seu corpo. Isso é mais impactante do que simplesmente expor em uma galeria uma foto da cicatriz do corte feito para colocar o chip. E qual caminho o artista trilhou para mobilizar debates acalorados e reflexões sobre ética e manipulação genética senão manipulando genes de um ser vivo?

Eduardo Kac e a coelha Alba

Assim como a arte contemporânea a ciência é feita de processos. Todos os dias os cientistas tomam decisões em seus laboratórios, fazem estudos de campo, desenvolvem soluções criativas (para não dizer gambiarras) para resolver imprevistos no percurso de seus trabalhos, enfrentam situações inusitadas e até perigosas para concluir pesquisas. Assim como pinturas renascentistas, os artigos científicos omitem tudo isso para que resultados de pesquisas sejam comunicados com eficiência entre os pares. No entanto, isso não significa que os processos envolvidos na produção científica devam ficar de fora do olhar da divulgação e do jornalismo científico.

Simplesmente porque são esses processos que mais humanizam os cientistas e podem aproximá-los do público em geral. Se as pessoas soubessem como a ciência é feita, e não apenas o que ela produz, talvez os pesquisadores fossem finalmente valorizados pelo quê são: trabalhadores.

Um relato de estudo de campo, um equipamento de laboratório que por si só é fascinante, testes que dão certo e os que falham — há muita coisa que pode virar boas histórias sobre cientistas.

Duendes de papai-Noel

Não sei hoje em dia, mas na minha época de criança diziam que os presentes que o Papai-Noel entregava eram feitos por duendes no Pólo Norte. Também diziam que as crianças eram entregues aos pais por cegonhas vindas do céu. Essas e outras fantasias eram contadas para livrar os pais de darem explicações complexas para os filhos e, por tabela, estimular a imaginação na infância.

O processo de amadurecimento consiste basicamente em substituir as fantasias pela realidade. Os brinquedos são feitos em fábricas por funcionários que vendem sua força de trabalho e sustentam o lucro do empresário — isso quando não são produzidos em países extremamente pobres por pessoas em situação de semi-escravidão. E os bebês não são trazidos por cegonhas, etc. e tal. Alguns adultos, por questões que os psicanalistas podem explicar melhor, permanecem infantilizados, mas isso é outra história.

O fato é que, mesmo adultos, não sabemos como todas as coisas são fabricadas ou desenvolvidas. É amplamente difundido que produtos presentes no cotidiano de bilhões de pessoas, como computadores, smartphones, medicamentos, aviões e alimentos transgênicos, são fruto do trabalho direto ou indireto de cientistas.

Nos últimos tempos, os ataques sofridos pela comunidade científica por parte de setores retrógrados da sociedade levou pesquisadores a colocar em prática atividades de divulgação científica baseadas na seguinte estratégia: mostrar ao máximo para a sociedade a importância da ciência na vida das pessoas.

Vemos universidades informando que tal medicamento é fruto de pesquisa feita em seu campus. Que a ideia de criar determinado aplicativo surgiu de ex-alunos de engenharia de tal faculdade. Vincular os avanços da ciência a produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo é uma saída interessante, mas insuficiente. Porque a via do consumo é anti-democrática por natureza. Nem todos têm acesso ao medicamento, ao celular, ao aplicativo, ao avião etc.

Além disso, por mais que se tente explicar como um aparelho celular funciona ou como o conhecimento científico foi aplicado para se chegar ao iPhone, dificilmente a população vincula o produto final que carrega no bolso com a pesquisa feita em universidades públicas — 88% dos brasileiros não foram capazes de dizer onde se faz pesquisa científica no país, segundo dados do estudo de Percepção Pública da C&T no Brasil, divulgado em julho pelo CGEE [Centro de Gestão e Estudos Estratégicos].

Meu palpite é que antes de não saber onde se faz pesquisa no país, a população não sabe o que faz um pesquisador. Dizemos ao público: “isso existe graças à ciência”, como se a ciência fosse a cegonha que lança bebês bonitos, limpos e cheirosos aos braços dos pais.

Há hoje cientistas e divulgadores de ciência preocupados em não infantilizar o público e fazendo trabalhos interessantes que buscam entregar não apenas a obra acabada da pesquisa (os resultados), mas também explicar processos envolvidos no trabalho dos pesquisadores. Um exemplo é o podcast 37 graus, que conta histórias sobre pesquisas valorizando o relato do trabalho executados pelos cientistas — com o tempo, indicarei outros casos por aqui.

Há urgência em mobilizar toda a sociedade em defesa da ciência brasileira. E o momento é propício para que pesquisadores e divulgadores abram os olhos e estejam dispostos a dialogar com outras formas de conhecimento. A capacidade que alguns artistas contemporâneos têm de arrebatar o público, sensibilizar as pessoas para causas importantes e suscitar reflexões mais profundas sobre os modos de vida em nossa sociedade pode inspirar cientistas a falar de seus trabalhos de maneira mais “profana”, nos termos do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942-).

Isso significa aprender a fazer novos usos do que se vivencia em laboratórios, universidades e centros de pesquisa, a fim de estabelecer contato com diferentes setores da sociedade que se beneficiam das pesquisas científicas, mas pouco sabem de seus “operários”.

Bruno de Pierro — jornalista pela PUC-SP e mestre em divulgação científica pela Unicamp.

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