A importância de chamar-se Paul

Bryan Axt
15 min readOct 30, 2017

--

Entrevista concedida a Dolores Curia (05 jun. 2015).
Traduzido por Bryan Axt.
Versão original em Espanhol aqui.
Acesse também o grupo brasileiro de discussões e compartilhamento de pesquisas em Paul B. Preciado nesse link.

Foto original por Sébastien Dolidon. Recorte da capa do suplemento Soy, do diário argentino Página12.

Em sua primeira visita à Argentina, Paul B. Preciado, uma das vozes (espanholas e francesas) fundamentais da Teoria Queer. Convidado pelo MALBA e pelo Centro Cultural da Espanha em Buenos Aires, este filósofo e curador de arte, conhecido como Beatriz Preciado até pouco tempo atrás, expõe a sua decisão de habitar a masculinidade e o gozo político que isso implica. A letra “B” persiste em seu nome como um rastro da sua história pessoal que inclui, sem dúvida, o compromisso com os feminismos. Para a pergunta: “qual é o desafio hoje?”, responde que pela inclusão das políticas sexuais dentro de um movimento de emancipação mais amplo: “a revolução que está por vir será a partir de alianças transversais com outros coletivos desmerecidos e desconsiderados, ou não será”.

Paul B. Preciado converte em carne a crítica. É em si mesmo a encarnação dos mesmos questionamentos ao regime biopolítico que desenvolve em seus livros. Isso é ser autocobaia. Disso se trata o chamado à intoxicação voluntária que propõe em seu famosíssimo Testo Yonqui: micropolíticas bioterroristas, auto-experimentação, exercícios de reprogramação do gênero. Assim como fez Benjamin com o haxixe, Freud com a cocaína ou Micheaux com a mescalina, emoldurados em toda uma tradição de pensadores que usaram substâncias psicoativas para produzir conhecimento, Preciado viu na testosterona uma droga política, uma arma química com o potencial de fazer explodir o sistema sexo/gênero de dentro para fora. Em seus textos, e também pessoalmente, denunciou os protocolos de reatribuição sexual (regulados pelas instituições médicas e jurídicas) como meios para normalizar a plasticidade sexual: “não quero o gênero feminino que me foi atribuído no nascimento. Tampouco quero o gênero masculino que a medicina transexual me promete e que o Estado me acabará outorgando se eu bem me comportar”. A heterossexualidade e a homossexualidade não existem, são ficções políticas, diz. Do mesmo modo que ser homem ou ser mulher são construções produzidas “por um conjunto de tecnologias de domesticação do corpo”. Mais do que lutas identitárias — explica Preciado no Manifesto Contrassexual, livro catalogado como uma das propostas mais influentes e provocadoras da filosofia contemporânea — “o que me interessa é que as técnicas de produção de verdade, corpo e da subjetividade não sejam capturadas pelo neoliberalismo, pela elite sexual, pelo monolinguismo, mas que estejam abertas ao múltiplo: não se trata de ser um funcionário homossexual, mas um revolucionário total”. Paul B. Preciado, agitador de mentes e corpos, é professor na Universidade Paris VIII, doutor em Teoria da Arquitetura em Princeton, mestre em Filosofia Contemporânea e Teoria de gênero na New School for Social Research de Nova Iorque, onde teve como professores a Agnes Heller e o Jacques Derrida. São diversos títulos que, segundo ele mesmo esclarece, não servem para nada se não se colocam ao serviço do desarme da dimensão técnica de tudo aquilo que se apresenta como “natural”.

O QUE UM NOME DIZ

Desde dezembro de 2014, a pessoa que escreveu o Manifesto Contrassexual, Testo Yonqui e Pornotopía, dentre outras grandes contribuições para a teoria queer, decidiu intensificar um processo de masculinização que começou em 2005, com a experiência de administrar em si mesmo a testosterona de modo experimental, mas que agora, com doses mais altas, mudou de modalidade. Entre muitos outros efeitos — “a minha voz e o meu corpo estão mudando” — há um linguístico: Preciado hoje leva o nome masculino, segundo as suas palavras, como mais uma máscara, que por sua vez atua como “uma variável discursiva tremendamente importante para modular o meu gênero”. Quase não há fotos desta etapa além das que se poder ver aqui, pois Preciado não quis documentar este processo com imagens, mas com palavras. “Anoto compulsivamente todas as sensações que experimento com a mudança de nome e com esta nova transição. O nome novo é uma ficção igual à anterior. Pedir às pessoas a cumplicidade para que te chamem por outro nome, mesmo um em que a princípio você não se reconhece, é um acordo coletivo muito bonito. Um exercício para desidentificar-me. Vivo isso com um enorme gozo político. A cada vez que alguém me chama ‘Paul’, resiste comigo contra aquilo que o gênero normativo quis fazer de mim. Tenho 44 anos e me sinto como um menino, experienciando todas as coisas novamente”.

Dolores Curia: Como você decidiu mudar de modalidade?

Paul B. Preciado: Falar de uma transição lenta ou rápida é uma modulação política. A transsexualidade, como a homossexualidade, é uma noção inventada pela medicina. Na maioria dos países europeus, se você quiser mudar de sexo, terá que reconhecer-se com disforia e iniciar uma “terapia” para passar de F (de feminino) ao M (de masculino) ou ao contrário. Quando se pensa em si mesmo como um dissidente do sistema sexo/gênero, a questão de mudar de um lugar para outro, uma vez que ambos são ficções, ‘não me desce’. Em meu caso é difícil falar de algo assim como “um ponto de inflexão”. A suposta mudança rápida e legal teria sido entrar no protocolo, me administrando 250ml de testosterona por semana, até que um comitê médico me permita mudar de nome. A transição em meu ritmo foi uma forma de mediar com a minha própria tradição feminista, de me reapropriar estrategicamente da masculinidade sem ocupar uma posição normativa. Acho difícil pensar o motivo a partir do qual alguém escolheria um único gênero para a vida toda. Não vejo a minha situação como excepcional; o excepcional é a imobilidade do gênero no resto das pessoas. Estou mudando agora, mas talvez ao final da minha vida eu queira mudar para outra coisa.

DC: Ademais, o “B” persiste…

PBP: Durante muito tempo eu quis afirmar a posição das mulheres como minoria na Filosofia, mas, ao final, tive que renunciar e eu acabei de reconhecer o meu próprio desejo, que politicamente é muito importante. Me conheceram como Beatriz e, bom, agora vão ter que re-conhecer. Esse “B” está aí como o rastro de temporalidade política, de luta feminista. Eu estou envelhecendo. A minha própria temporalidade quase é como a história do feminismo do século XX e XXI. Vivi em uma ditadura e nos anos 70 me atribuíram o sexo feminino. Aos cinco anos alguém me chama de sapatão e eu me construo a partir da resistência a essa injúria, então logo vou aos Estados Unidos e lá eu me dou conta de que não sou homossexual, mas queer. Eu acesso à testosterona, sem ver diferença entre ela e a Filosofia.

DC: Por que não há diferença?

PBP: Ambas são técnicas de produção de subjetividade, assim como o xamanismo e a ayahuasca. Há muitos rituais de transformação da subjetividade. Eu tenho acesso a alguns que também não são uma maravilha. Mas há que se sobreviver com o que se tem. A transexualidade para mim não é como voltar a uma origem, mas a uma deriva. Claro que você não transforma a sua subjetividade e o seu corpo sozinho, pois há um coletivo ao redor. Pude acessar a testosterona que estou tomando agora, pois sou professor da Universidade de Nova Iorque e com o sistema médico pude ir a uma clínica nada tradicional, especializada em minorias sexuais. Aqueles historicamente patologizados, aos que foram negados ao acesso às técnicas de produção de subjetividade, de repente encontramos um lugar para articular nossas próprias linguagens com as nossas próprias técnicas e ressignificar-nos politicamente. Quando cheguei a esta clínica, eu disse: “esta é a minha casa, estão são meus pares”.

DC: Quais outras mudanças você trouxe para a sua vida diária a partir desta forma de habitar a masculinidade?

PBP: Estou em um momento em que já não posso entrar nem nos banheiros dos homens, nem no das mulheres, nem nas lojas masculinas, nem nas femininas. Eles me expulsam de todos os lugares! Tomo ainda mais consciência das violências e das constantes fronteiras de gênero. O espaço público e o suposto espaço privado estão absolutamente segmentados em termos de gênero. Está tão hipercodificado que o simples fato de que poderia haver mulheres com barba seria um escândalo. E parece uma estupidez. Falar das mulheres com barba deveria nos dar vergonha: se eu soubesse que estudaria filosofia por anos para terminar falando sobre depilação a laser … (risos). Mas realmente é assim: a depilação a laser é uma técnica de normalização necessária para a estabilidade do sistema. Então sinto muito pela banalidade…

Galeria de imagens do Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (2015).

O QUE UM ROSTO DIZ

Toda arquitetura corporal é política. Preciado sabe disso desde a infância, quando viu de perto o dispositivo médico, ao reconstruir o seu próprio rosto. “Nasci com uma deformação na mandíbula. Durante anos não tive fotografias pessoais, somente as médicas. Em casa não fazíamos fotos porque eu era disforme”. Passou por duas cirurgias de mandíbula, aos sete e aos 18 anos. Com tudo cicatrizado escutou por todos os lados: “está fantástica”, aí foi quando se deu conta de que “a minha imagem e a que os outros viam não coincidiam e nem nunca vão coincidir”. É o rosto o reflexo da alma? Preciado responde que não: que o seu rosto é o espelho da medicina plástica, muito pouco sofisticada, da Espanha dos anos oitenta. “No Manifesto Contrassexual pensava a sexualidade a partir da prótese e não do órgão. Os movimentos que melhor responderam a esse livro foram os da diversidade funcional: tinham a necessidade de pensar a prótese politicamente. Não sou de falar muito disso, mas eu venho daí, venho dessa deformação congênita de mandíbula, pois passei toda a infância em contato com o sistema médico em uma redefinição constante do que era o meu rosto. Ademais, tive dificuldades no colégio, acabei em um grupo de educação especial para oito estudantes com problemas de autismo e de adaptação ao meio escolar. A minha infância se deu na tensão entre a diferença e a normalização, e me deu uma relação particular com o discurso científico e médico ao que me dirijo quase como um padre, no pior sentido da palavra”.

GARGANTA PROFUNDA

Ao poder hoje não se obedece, mas se traga. Em forma de cápsulas, pela boca ou se absorve pelos poros. É líquido, viscoso, aspirável e injetável. Às vezes, transparente. Sempre disposto a fluir. Para Preciado — e ao redor dessa ideia, entre outras, que gira Testo Yonqui — o poder já não produz coisas, mas estados da alma, tecidos vivos, desejos, reações químicas, que também são moeda de troca no mercado. O poder já não submete alguém ao seu poder de fora, como em um dispositivo ortodôntico, mas se faz uno com o corpo. Se consome, também, através do olhar, a cada vez que a tela indica como há que gozar, como consumir e consumar. A verdade do sexo toma a forma de um imperativo visual. Paul B. Preciado chama a este momento, ao qual o poder já não é nem vigilante e nem castigador, exclusivamente, como a era farmacopornográfica. Em Testo Yonqui, o seu diário íntimo de intoxicação voluntária, um manifesto que é tão pessoal como é político para expandir o mal exemplo, onde o autor demanda que o Estado tire os seus números dos seus genitais, Preciado respondeu perguntas como: o que terá a ver o sexo com a economia? Por que a heterossexualidade produz mais-valia através da divisão do trabalho sexual? Por que ser homem, mulher, heterossexual, homossexual, não são mais do que etiquetas? “Nunca foi pensado como um texto documental”, diz ele, “as interpretações literais do que conto lá não vão ser porque não há pretensões de verdade, mas de ficção política”.

DC: Em Testo Yonqui você se define como um pirata de gênero em oposição ao ativista legalista. O que acontece quando tudo passa a entrar na legalidade?

PBP: Não se trata de privilegiar algumas lutas sobre outras, nem de pensar que a batalha pelo matrimônio e a adoção, etc., não é o caminho. Há uma multiplicidade de estratégias que operam em distintos níveis. Todas necessárias. O problema é quando uma delas se converte em finalidade última do ativismo, que é o que ocorreu com o casamento. Me interessa descrever as políticas sexuais dentro de um movimento de emancipação mais amplo que inclui as minorias raciais, colonizadas e os movimentos feministas. Há uma luta, em absoluto acabada, pela redefinição do espaço democrático. Sabemos que o espaço democrático da modernidade, que supostamente se abre com a Revolução Francesa, que tanto fazemos alarde e costumamos ter como um espaço exemplar, em realidade, é excludente. Deixa de fora um conjunto de sujeitos que não são reconhecidos como cidadãos de direito. Desde o século XVIII assistimos a um conjunto de lutas pela redefinição desse espaço.

DC: Você disse alguma vez que, mais do que lutar pelo acesso equânime ao matrimônio, seria interessante lutar também pela sua abolição.

PBP: Na medida em que, por exemplo, há uma relação entre matrimônio e acesso à nacionalidade, como na maioria dos países, o casamento homossexual é uma forma de reconhecimento do sujeito. Mas isso não deve evitar que hajam outras estratégias de luta, mais revolucionárias, de transformação das técnicas de governo. O questionamento central é acerca de quem possui o direito para definir quem nos governa e como nós queremos nos governar. Historicamente, as mulheres, os homossexuais, os descapacitados, os viciados e todos os etceteras de uma lista que é quase a totalidade da população, porque aí também entram as crianças e os idosos, ficaram de fora do “importante”. Se prestarmos atenção, o espaço democrático está vazio! As minorias inventaram culturas de resistência e essa é a utopia de espaço democrático, outras formas de relação, outros modos de vida, como relações múltiplas ou uma filiação que não é necessariamente biológica. A beleza dos nossos movimentos minoritários é que, no entanto, mesmo não tendo sido considerados como sujeitos de direito, nós temos a capacidade de inventar as nossas próprias técnicas de governo. É um grande paradoxo.

Paul B. Preciado

A fundo e à esquerda

Todos os que alguma vez foram considerados como os impensáveis do feminismo apareceram no Manifesto Contrassexual, seu primeiro livro: os brinquedos sexuais, a sexualidade anal, a atribuição de sexo aos bebês intersexo, a cultura BDSM. Preciado os convoca como os proletários desviados de uma revolução corporal. Fala para “a butch, a caminhoneira, para as piadas ontológicas, as imposturas orgânicas, para as mutações prostéticas”. Um grito para as massas queer, para recrutar aos invertidos do mundo, mas não somente a eles: “a coisa vai além de constituir aos LGBTTTQI+ como sujeitos políticos. E a diversidade funcional, e a infância, a animalidade, a Terra? As propostas políticas radicais devem entrar nessa linha, do conjunto de alianças transversais”.

DC: Quais são as dificuldades do movimento para criar alianças transversais com outros coletivos?

PBP: Eu não vejo tantas dificuldades, pelo menos na Europa, que é o contexto que eu mais conheço. Acabo de chegar dos Estados Unidos na Espanha a tempo para as eleições municipais. A esquerda obteve posições muito boas. Há um tremendo entusiasmo popular. Aqui, os anos ’80 e ’90 foram de muita despolitização, exceto pelas lutas contra a AIDS e a emergência dos movimentos trans e intersexo. Apareciam como muito periféricos, mas colocavam em cena um corpo vulnerável às estratégias de normalização da indústria farmacológica e da gestão neoliberal. Depois, a gestão neoliberal, farmacológica, etc., foi estendida ao resto da população. Em seguida vem a crise de 2008, com uma enorme precarização das classes médias da Europa, fazendo-os se sentir vulneráveis. Então se abriram novas estratégias e aparece uma nova transversalidade, com os temas que vinham das lutas contra a AIDS ou ao escrache argentino. Todas com muita visibilidade performativa no espaço público. Esse novo corpo vulnerável tomou forma a partir de 2008 e permitiu que emergissem novas alianças entre, por exemplo, trabalhadoras sexuais e os sem teto.

DC: Quer dizer que as estratégias LGBTTTQI+ acabam nutrindo aos outros coletivos?

PBP: Na Europa houve uma emergência fascinante dos movimentos de diversidade funcional e cognitiva, o que antes chamávamos discapacidade, que está tomando modelos de ação das políticas queer. O mesmo com a questão racial, anticolonial e de migração. Agora mesmo essa fronteira líquida que é o Mediterrâneo, que divide a Europa da África, se converteu em necropolítica, um lugar de morte massiva. Isso gerou uma nova consciência: temos a fronteira política da Europa. Já não se trata tanto da identidade, se somos gays, lésbicas, trans ou o que seja. O conjunto de tecnologias que nos normalizam são transversais, nos atravessam a todos. Em vez de seguir distraindo-nos com as nossas pequenas lutas identitárias, pensemos quais são as técnicas de produção da vida com as que queremos nos construir coletivamente. A identidade, ao fim, é outra das ficções com as quais o neoliberalismo se serve para evitar que possamos realizar uma luta global.

DC: Estas novas alianças poderiam ser as novas multidões queer?

PBP: O interesse que eu tive, há vários anos, em inventar a noção de “multidões queer” era estabelecer um diálogo entre a esquerda radical e os movimentos feministas e queer. Historicamente houve uma ruptura entre essas duas tradições, o que provavelmente explica o fracasso de ambas. Nós também devíamos poder pensar sobre essas multidões da classe radical da esquerda a partir da sexualidade, questões de raças e do colonialismo. As massas revolucionárias foram para uma esquerda descorporalizada ou então encarnada por um corpo masculino heroico. Eu queria colocar no centro um corpo não masculino, vulnerável, bicha, indígena. Creio que a esquerda não me prestou muita atenção nesse momento (risos), mas essa noção me parece ser muito eficaz hoje. A tradição da esquerda foi muito cúmplice do patriarcado. Agora é tempo de pensar juntos o que é a esquerda hoje.

DC: “No princípio era o dildo”, quais são hoje as tecnologias que te interessam?

PBP: Quando comecei a trabalhar sobre dildos, era como uma piada. Um objeto impuro e invisibilizado. Ele estava presente na cultura lésbica, mas você não podia falar sobre ele porque surgiam os fantasmas de que o dildo era um elemento patriarcal. Eu estava fazendo um doutorado na teoria arquitetônica e decidi olhar para os dildos do ponto de vista da história da tecnologia. As tecnologias do corpo, como a testosterona, a pílula, etc., são produtoras de subjetividade. Nesse sentido, hoje estou interessado nos meios de comunicação, nas redes sociais, a informática. Como aparelhos de produção da consciência coletiva, eles oferecem possibilidades de normalização e resistência. Penso as tecnologias em um sentido amplo, não são apenas máquinas: o casamento é uma técnica, a família também é. Estou prestando atenção ao que acontece nos Estados Unidos com o Truvada. Acredita-se que evitará a disseminação da AIDS. O governo e os laboratórios planejam distribuí-lo massivamente aos supostos “grupos de risco”. Então, para as biomulheres, temos a pílula e, agora, as “masculinidades de risco” (minorias raciais, etc.) que seriam tratadas com Truvada. O resultado: uma sexualidade totalmente mediada por técnicas farmacológicas.

Paul B. Preciado

Bestiário

Em março do ano de 2015, no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA), no mesmo dia da inauguração, foi suspensa a exposição “A besta e o soberano”, na qual havia mais de um ano e meio que vinham trabalhando como curadores o Paul B. Preciado e o historiador de arte, Valentín Roma (ambos da equipe do museu), junto dos alemães Hans D. Christ e Iris Dressler. O diretor do museu, Bartomeu Marí, declarou no último minuto que descobriu uma peça inapropriada e exigiu a sua retirada. Diante disso, os curadores decidiram suspender a amostra. A obra “degenerada” é uma escultura da austríaca Inés Doujak, que não é nova: já havia participado da 31ª Bienal de São Paulo, no ano passado. A obra mostra o rei Juan Carlos I sendo penetrado pela ativista feminista boliviana Domitila Barrios de Chúngara. Não é um pequeno detalhe que a presidente de honra do patrocínio do MACBA seja a rainha Sofia, esposa de Juan Carlos I. Finalmente, a obra de Doujak foi exibida (e a venda dos bilhetes de entrada do museu aumentou 50 por cento), e o diretor do museu renunciou, mas antes demitiu ao Valentín Roma e ao Paul B. Preciado. “Valentín e eu”, diz Preciado, “sempre imaginamos que em algum momento as autoridades iriam querer nos enforcar pelas propostas que tínhamos, mas nunca pensei que sairíamos de lá de maneira tão grotesca!”

DC: Qual é a sua reflexão sobre este episódio de censura agora que alguns meses se passaram?

PBP: Estamos na justiça contra o museu e, por enquanto, não posso me estender muito sobre isso. Mas eu não acho que isso deveria ser lido em termos de censura, mas de controle institucional. O diretor do MACBA estava ciente de tudo, conhecia a obra de Inés Doujak. Mas quando a escultura chega ao museu e o diretor lhe presta verdadeira atenção, ele entra em um colapso epistêmico. Ele diz que não pode expor porque a fundação MACBA, cujo presidente é Leopoldo Rodés Castañé, um amigo pessoal do rei, iria o demitir. Isso mostra que o museu público é controlado pela fundação que é proprietária das obras e tem relações oligárquicas com a casa real. A questão é como estamos definindo o museu público, é um espaço de representação do poder ou um espaço de debate? O governo da cidade de Barcelona vinha observando a programação que fazíamos com Valentín. Foi-me dito que eu não programava para o “público”, mas para os sudocas, os imigrantes, os deficientes, as lésbicas, que era uma programação de extrema esquerda. Basicamente, o que aconteceu nas últimas eleições (em muitas posições, os governos de direita foram substituídos pela esquerda) foi algo que eles viram chegar e ficaram aterrorizados.

OBRAS PUBLICADAS:

Manifesto Contrassexual (Éditions Balland, 2000; Opera Prima, 2002; n-1 edições, 2014);

Testo Yonqui (Espasa, 2008; n-1 edições, 2018);

Epílogo “Terror Anal” (Melusina, 2009);

Pornotopía (Anagrama, 2010);

Un appartement sur Uranus: chroniques de la traversée (Grasset, 2019; Anagrama, 2019);

Je suis un monstre qui vous parle. Rapport pour une académie de psychanalystes (Grasset, 2020).

--

--

Bryan Axt
Bryan Axt

Written by Bryan Axt

Mestre em Filosofia e pesquisador dos estudos de gênero, com ênfase na teoria-prática de Paul B. Preciado.