Uma pequena folha de grama

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Em 2014 tomei meu caminho até Kathmandu para estudar no Rangjung Yeshe Institute, um centro de estudos budistas filiado à Kathmandu University e ao Ka-Nying Shedrub Ling. Chegar até lá não foi nada fácil. Mesmo não sendo minha primeira “carreira das Índias”, deixar tudo para trás e permanecer lá por cerca de um ano nos rigores do monastério foi uma das experiências mais exigentes (para dizer o mínimo) de toda a minha vida.

Estudantes do Rangjung Yeshe Institute durante o Seminário Anual de 2014 com as bençãos de Chokyi Nyima Rinpoche.

Ao regressar, já em meados de 2015, fugindo de um terremoto que matou quase nove mil pessoas, encontrei em Passo Fundo (RS) um local e alguns amigos para continuar os estudos do Darma.

O local foi a Casa Carino Corso, cedido gentilmente pela querida Ana Carina Schell Corso, e os amigos foram Pablo João da Costa e Candice Machado. Nossas reuniões buscavam emular o modelo de “Dharma House” proposto por Chokyi Nyima Rinpoche, meu querido professor e abade do monastério onde estudei no Nepal. Misturávamos estudos de textos clássicos e práticas de meditação, volta e meia organizando um ou outro retiro. Durante esse período estudamos textos como “A Revolução da Atenção” de Alan Wallace, um comentário sobre o Sutra do Coração Por S.E. Gyalwa Dokhampa e o comentário de Thich Nhat Hanh sobre o Satipatthana Sutta.

Primeiro retiro com Lama Jigme Lhawang, representante no Brasil da linhagem Drukpa do Budismo himalaico.

Os primeiros dois retiros promovidos pelo grupo (agora maior) no ano de 2016 foram com o grande amigo e professor Lama Jigme Lhawang que nos ofereceu uma introdução a meditação no Budismo Himalaico e também uma visão das Quatro Nobres Verdades. Foram mais de trezentas pessoas entre palestras pública e retiros!

Já em 2017, depois de diversos encontros e desencontros, convidamos a Monja Isshin, Sensei, do Jisui Zendô. O objetivo inicial, em meio à uma greve geral que parava o país, era fazer uma comparação entre as abordagens do Mindfulness e a meditação nos caminhos espirituais. A palestra pública atraiu cerca de 100 pessoas e o retiro mais de 30! Acredito que foi durante esse retiro que agimos realmente como Sanga, como um grupo.

Primeiro retiro com Isshin, Sensei, na Casa Carino Corso.

A “liga” que ocorreu com a Sensei e os membros foi algo impressionante, tanto que, logo em seguida, estávamos de caravana no casamento da própria monja. A cerimônia foi, por si só, um grande e emocionante ensinamento…

Caravana passofundense no casamento da Monja Isshin.

No final do ano tivemos um longo retiro com a Sensei durante o feriado de finados. O tema foi justamente a morte no Zen e, diferentemente do anterior, o número de participantes foi reduzido. Ainda assim, ao menos me parece, a mesma cumplicidade se repetiu durante a cerimônia de Obon promovida pela Sensei. Foi após isso tudo que solicitei, depois de muito refletir, minha ordenação monástica dentro da tradição Soto Zen do Budismo (Sōtōshu). Mas isso não vem ao caso, em outro momento gostaria de escrever sobre isso com mais profundidade… agora o que importa é algo bem maior.

Existe um Koan encontrado no Livro da Serenidade que narra o encontro de Buda com Indra, o senhor dos devas. Nesse episódio Buda afirmou “Este é um bom local para construir um santuário” é dito que Indra pegou uma folha de grama, fincou-a no chão e respondeu “O santuário foi construído” e o Iluminado sorriu. Após esses dois anos de história, um curto espaço de tempo em relação ao que realizamos, creio que temos nossa “folha de grama”.

Pensar na comunidade é pensar para além do tempo e para além de nós.

Assim o ano de 2018 inicia com a perspectiva da fundação (oficial) da Associação que será responsável por representar essa motivação inicial daqui em diante. Uma associação que prima pelo diálogo e pela diversidade de pensamento, mirando seu grande objetivo: estudar e praticar o autêntico ensinamento de Buda. Com a Associação (que manterá o nome inicial de “Shantideva”, outro tema que discutiremos em outro momento) surge também um Zendô e, quem sabe, o embrião de um templo.

Uma das diversas reuniões do grupo para estudar, meditar e assistir ensinamentos com Isshin, Sensei.

Muitas vezes temos a ilusão de controle, de escolha, quando, na verdade, o que nos dirige são forças que não podem ser cercadas pela razão. Nada é construído sozinho, é pela comunidade que nos iluminamos. Não sei como essa história se desenvolverá, em vários aspectos sinto um “frio na barriga” ao pensar na iminência da ida para o Japão, nas responsabilidades e no equilíbrio necessário para atravessar tudo isso. De qualquer forma, como diriam os estóicos, não importa aquilo que foge ao controle, por isso acredito que o sorriso de Buda frente ao ato de Indra pode ser interpretado como o contentamento de quem diz “isso é suficiente”… o templo já está construído!

Daniel Confortin (confortin@gmail.com)

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