A história do homem que nasceu e cresceu na universidade onde hoje é professor

Carlos Miguel Anjo
8 min readNov 10, 2022
Primeiros momentos de Marco como professor da Rural em 1999 no Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFRRJ

Por Miguel Anjo

Me programei a semana inteira para entrevistar meu personagem. Mas a vida está “no possível, no não planejado”. Quem me disse isso foi Marco Bauhaus, ao final da nossa entrevista. Mas ele não era meu primeiro personagem. Meu planejamento não havia dado certo. Então pensei em conversar com alguém próximo e contar uma história que eu já conhecia, a de uma professora. Entretanto, ela me apresentou ao Marco Antônio Ferreira, o professor do curso de administração da Universidade Rural. Em nossa conversa, ele conta como as imprevisibilidades da vida o trouxeram de volta à universidade onde cresceu, mas dessa vez como professor.

Marco Antônio ou Marco Bauhaus?

Marco foi criado dentro do campus da universidade em que hoje leciona. Seu pai era faxineiro dos alojamentos, e foi nos corredores dos abrigos dos estudantes que ele cresceu. Ali, seus poucos amigos eram os companheiros de trabalho de seu pai, e sua pipa, sua fiel companheira. Mesmo parecendo solitário, ele curtia a ideia de poder levantar a pipa sozinho, viajando pelo limpo céu ruralino.

Seus conhecimentos foram todos forjados nos arredores da Rural. Estudou na escolinha do Instituto de Zootecnia e terminou o ensino fundamental no Colégio Fernando Costa, e cursou o ensino médio no Colégio Técnico da própria universidade próximo ao campus. “Ir para o Ctur (Colégio Técnico da Universidade Rural) foi a melhor decisão que eu tomei na minha vida”, disse Marco. Lá ele fazia — integrado ao ensino médio — um curso técnico de agropecuária.

Mesmo tendo nascido num contexto rural, ele não tinha a menor vocação para o agro. Numa aula em que Marco teve que participar de um abate de um suíno, seu desconforto chamou a atenção do professor que, segundo Marco, disse: “você não tem nada a ver com isso, na próxima aula eu vou trazer um material que é a sua cara”. Na aula seguinte, Marco recebeu um recorte da revista Globo Rural que falava sobre marketing no agronegócio. Era a primeira vez que ele ouvia sobre o assunto, mas logo se encantou. Aos poucos foi se encaminhando para a parte de comercialização no agronegócio, chegando a vender boa parte das produções do colégio enquanto estudava.

Era 1988, quando começou os estudos no Ctur, no período da redemocratização do país. Marco relatou que nesse período passou por grandes transformações como pessoa “aquilo foi uma revolução pra mim, eu cresci muito no Ctur, eu fui saindo de uma pessoa de uma educação conservadora da roça, associada ao habitus e músicas caipiras, e fui direto pros Beatles, MPB, no contexto das diretas já, de revolução”. Marco contou que esse contexto mudou muito seus gostos, e com a sua chegada ao Ctur, se interessou mais pela leitura, pela filosofia, sociologia e psicologia.

Nesse contexto, ele conta de onde surgiu Marco Bauhaus, nome o qual se identifica e se apresenta. Devido a uma desavença com um professor, ele e seus colegas de classe criaram uma nova turma e passaram a assinar avaliações com nomes alternativos. Por indicação de um grande amigo, Oswaldo Racca, entusiasta da Escola de Bauhaus, ele adotou o nome, “eu estou no mundo de várias formas, como psicólogo, escritor, professor, e esse nome faz parte disso.”, explicou.

Em um teste vocacional, que lembra com muito carinho da indicação da professora Marília, o resultado foi de uma forte tendência à psicologia e à filosofia. Apesar de estar habituado com o marketing, devido a influência de seu outro professor, essas eram suas grandes paixões. No vestibular, foi aprovado em administração pública e de empresas na Rural. Sua paixão ainda era a psicologia, mas ele dizia “eu sou muito pragmático então eu pensava, já estou aqui, termina isso, um dia você faz psicologia, eu não parei o que estava fazendo para buscar o que eu realmente queria”. Seu laço com a Rural se estreitou à medida que o tempo passava e, depois de um ano de curso, começou a trabalhar como técnico de apoio na biblioteca da universidade. Sempre ao fim do expediente, sentava-se no salão e aproveitava o tempo lendo clássicos da psicologia, como Sigmund Freud e Erich Fromm.

A rotina como técnico de apoio acabou por deixá-lo insatisfeito e decidiu, então, mergulhar no mercado. Após se graduar em marketing, na Escola Superior de Propaganda e Marketing, e cursar um MBA, conseguiu vaga numa grande empresa do ramo de gás, para trabalhar com marketing. Mesmo não sendo sua responsabilidade, começou a discutir questões de logística de transporte e entrega dos produtos. Entretanto, novamente, resolveu se desligar da empresa, pois já não se identificava mais.

Um dia, em um ônibus a caminho de Seropédica, encontrou um grande amigo da faculdade. O rapaz estava fazendo mestrado em engenharia de transportes, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, exatamente o tema do último projeto que Marco havia elaborado antes de sair da empresa. Ao saber que Marco estava sem ocupação, o amigo o incentivou a fazer o mestrado, pois as inscrições iriam fechar em breve. Como bom apreciador do momento, Marco não pensou muito e se inscreveu, e poucos dias depois recebeu a resposta: foi aceito.

“Foi uma loucura essa experiência”. Sua orientadora morreu poucos dias depois do fim do processo seletivo, e outros professores não se interessavam pelo seu projeto, até que surgiu alguém querendo falar sobre Marketing nos transportes, “deu match” disse. Enquanto fazia o mestrado, recebeu um convite para dar aulas de marketing em uma instituição privada, então, seguindo seu pragmatismo, aceitou.

Marco não ficaria muito tempo longe das terras ruralinas. Durante o mestrado, a Rural abriu um concurso para professores substitutos. Assim, se tornou professor substituto na universidade, enquanto terminava a graduação. Mas, aos poucos, sentiu-se incomodado por estar se afastando cada vez mais da psicologia. Ao final do mestrado, se efetivou como professor na Rural, e ainda aqui, pensou “preciso me doutorar” e concluiu um doutoramento em ciências sociais.

Em 2011 lançou seu primeiro livro, sobre comportamento dos consumidores. Neste livro, sete capítulos foram sobre a psicologia, segundo Marco, “esse namoro precisava fechar”. Então, decidiu prestar alguns vestibulares para realizar esse sonho. Estudando com a sua filha, e depois de algumas frustrações, foi aprovado no curso de psicologia na própria Rural, em 2015.

Agora, ele era aluno e professor no mesmo lugar, “O curso de psicologia da Rural é muito muito bom mesmo” disse com carinho. Se ver ou se perceber no lugar dos seus alunos era motivo de muito orgulho. Mas também causava muitas reflexões sobre a ética da aprendizagem.

Marco contou sobre os acontecimentos da sua vida, explicitando que tudo que o transformou parecia ter sido fruto do “de repente”. E assim surge o filósofo: “Eu fui aprendendo que a estratégia é emergente, não é pensada a priori, ela emerge no calor do momento, durante a ação a vida é imanente, é agora, é já. Essa arte do possível, do agora, fala sobre o ser sendo, de viver no calor das reações, da força da intuição sobre o planejamento.”, disse.

Ao ser questionado sobre como é ser professor ele responde: “esse lugar é muito doido, porque eu não queria ser professor, algumas pessoas diziam que eu tinha que ser professor, mas eu neguei cristo aí 23 vezes”. Entretanto, ele fala desse lugar de professor muito entusiasmado. “O que transforma a gente são as relações, o professor está num lugar que ele pode ser central na viabilização das relações e da transformação das pessoas”, diz sobre o lugar de professor ter mudado completamente sua vida. Perguntei sobre qual era a sensação de estar de volta onde cresceu e foi formado, e agora forma pessoas, e ele respondeu “me faz pensar muito sobre o circuito da vida, olhar, se afetar e sentir a vida”.

Reencontros marcados

Como seu projeto mais recente Marco quer se firmar como escritor, dessa vez se lançando no mundo da ficção. Em 2017, ele decidiu que queria ser um escritor. Nessa época o também professor da Rural José Bozzetti, estava lançando um livro, então Marco resolve visitar os lançamentos dessa obra em busca de inspirações.

Durante essas visitas, se hospedou na Lapa, e foi lá que conheceu o personagem que seria central neste livro. Na primeira noite, a procura de um bom jantar resolveu entrar em mais um dos tantos barzinhos que habitam o bairro, lá havia somente ele e mais um homem, que não parava de encarar o professor. Depois de estranhar muito as trocas de olhares, Marco percebe que eles estão usando exatamente a mesma roupa. No dia seguinte, tomando café no hotel, o episódio se repte, mas dessa vez o homem misterioso resolve enviar o garçom para perguntar sobre quem era Marco. Durante a conversa, o professor descobre que o rapaz era um cafetão respeitado no local.

Marco partiu, então, para o bairro de Botafogo para acompanhar o lançamento do livro de Bozzetti. Chegando próximo ao local, na praça Nelson Mandela, se surpreende com um rapaz tocando lindamente um clarinete, mas junto a ele havia um grupo de religiosos disputando os ouvidos de quem passaeava por ali. Ao fim da apresentação, resolveu elogiar o rapaz pela linda batalha musical travada, mas foi surpreendido com a resposta do homem “isso não foi nenhuma batalha, eu porto um clarinete, não uma arma. Eu uso isso daqui pra modificar as pessoas, isso é arte. E você, qual a sua missão?”, o indagou. Imediatamente Marco disse “eu quero ser escritor”, e como quem incentiva, o rapaz respondeu que o fato de querer já fazia dele um escritor. No calor do momento Marco fez promessas de escrever um conto e lhe enviar. Porém, nem se quer terminou de escrever o conto.

No esboço do conto, ele escreveu sobre um cafetão ex-dono de livraria, um aspirante a escritor apaixonado pela literatura, que quebrou com a crise de 2009 e teve que mudar o rumo de sua vida, e um grande amigo seu era um tocador de clarinete. Era a sua experiência transcendida na ficção.

Três anos depois, Marco recebe uma ligação estranha em uma rede social: era o homem do Clarinete. Assustado o rapaz pergunta quem estava do outro lado da linha e, assolado pela solidão dos tempos de isolamento na pandemia, buscava por alguém para passar um tempo. Ao estranhar o nome “Marco Bauhaus” em seus contatos, resolveu ligar. No início da prosa, o questionamento “porque você não perseverou no seu desejo de ser escritor?”. Bastou uma frase para que o professor voltasse a ser atravessado pela arte do possível e terminar de realizar um de seus sonhos. Reecontros marcados é o nome da obra que será lançada em breve, para sacramentar Bauhaus como escritor.

“Eu sou feito de pessoas que fizeram escolhas muito marcantes.” Bauhaus, Marco.

Um tempo depois de nossa entrevista, recebi uma mensagem do professor, uma espécie de carta, que parecia ser escrita do fundo do coração, como um resumo da sua arte de viver a vida.

“Miguel, costumamos pensar que temos que planejar para que as coisas aconteçam nas nossas vidas. Entretanto, às vezes não dá para parar, começar a planejar, pensar numa estratégia para depois aplicar e fazer acontecer. A vida é agora — no possível, não no desejado — , e nela as estratégias vão emergindo conforme lutamos para agir no mundo, ter os encontros e aplicar a nossa potência de viver. As escolhas às vezes são feitas sem muitas chances de avaliação e aí emerge a arte do possível. A arte é uma medida do que você sabe, quer e pode naquele instante. O possível é uma medida em si, o que está ao seu dispor em termos de recursos, gente e lugar.” E é assim que o professor, psicólogo e escritor Marco Bauhaus, segue transformando a vida.

--

--

Carlos Miguel Anjo

Um carioca de 21 anos que em algum momento estudou jornalismo