Análise de “Coringa” (2019) [COM SPOILERS]

Eduardo 'Cafeffiro'
7 min readOct 14, 2019

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Brilhando pelos cinemas do mundo todo, Joaquin Phoenix dá vida à um dos vilões mais queridos, imprevisíveis, transtornados e insanos — o Coringa. Dirigido por Todd Phillips, a obra nos leva para os acontecimentos que foram desencadeados na vida de Arthur Fleck para o surgimento do palhaço criminoso mais famoso da cultura pop.

A introdução à Arthur

Somos introduzidos ao protagonista já na primeira cena, tendo uma crise de risada patológica, conhecida como “afeto pseudobulbar” ou “labilidade emocional” — onde a pessoa que sofre desse distúrbio ri involuntariamente em situações que a deixam nervosa ou desconfortável. Essa condição médica, geralmente, é gerada após um AVC, falta de oxigenação no cérebro, doenças neurodegenerativas, ou a perca de tecidos cerebrais; que por sinal, foi o que aconteceu com Arthur, quando pequeno, por abusos de agressões de sua mãe adotiva, Penny Fleck. Essa condição o impede de conseguir se socializar; uma vez que, em situações sérias, ele perde o autocontrole e ri exacerbadamente, causando estranhamento e medo à quem está em sua volta.
Arthur trabalha como um palhaço de rua, fazendo propagandas de queima de estoque, tendo uma peruca com cabelo verde, pintura facial, roupas coloridas e sapatos gigantes, consigo carrega uma placa sobre a promoção da loja. É muito franzino, seus ossos nas costelas ficam à mostra, apresentando uma aparência muito debilitante, e Joaquin, mais uma vez, consegue entregar com maestria o olhar de uma pessoa com uma condição psicológica abalada, assim como o modo de se expressar também. O protagonista ainda consegue mostrar uma força imensa de ser feliz e de conseguir fazer sucesso nos palcos com suas piadas em shows de stand-up comedy, ao mesmo tempo em que trava uma batalha consigo mesmo, ao mesmo tempo em que é humilhado e zombado por brigões e colegas de trabalho, porém, sem sucesso, pois Arthur percebe que até seu senso de humor para piadas, além de serem autodepreciavas em um sentido nada saudável, são tristes e depressivamente sombrias, chegando a escrever anedotas sobre sua própria morte.

Uma das “piadas” de Arthur, onde ele escreve: “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não a tivesse.”

O lento desenvolvimento de Arthur até se tornar o Coringa

Quem vai para a sala do cinema, sabe o que esperar, mas, tanto Todd (diretor), quanto J. Phoenix, arrastam lentamente o enredo com situações cotidianas que já são corriqueiras para Arthur, mas que prendem a atenção dos telespectadores com indignações pelas humilhações sofridas ao protagonista, com anseio pelo momento em que Fleck irá “surtar” e tomar as rédeas do seu próprio “show de horrores”… O que não acontece com tanto impacto. Com cores muito sombrias e tristes, variando de amarelos à azuis mal tonalizados propositalmente, o filme acaba causando empatia e tristeza aos olhos de quem acompanha a trama, rendendo uma forte conexão com Arthur, e isso é muito importante, pois, após a metade do filme, a maioria de nós está pelo menos “conseguindo” entender o objetivo que o Coringa está visando.
Após sofrer um ataque de agressões no metrô vindo de três homens, Arthur se defende atirando em todos eles com uma arma que lhe foi dada pelo seu colega de trabalho, Randall (interpretado por Glenn Flesher). Em um primeiro momento, o protagonista foge assustado, sem saber ao certo o que tinha acabado de ter feito, mas após algum tempo, vemos que ele se sente aliviado por isso. É como se ele conseguisse colocar um fim na sua dor, mesmo que momentânea. Matar aqueles homens significou acabar com a dor e humilhação que ele sofrera, pelo menos por ora, e esse sentimento de “justiça” e de “paz” encharca a cabeça de Arthur, fazendo-o ficar mais insano… Ainda mais depois de ter seu acompanhamento terapêutico brecado pelo Governo de Gotham, que cortou verbas para todos os que se tratavam gratuitamente. Sem remédios, armado e psicótico: assim se acende o estopim para o surgimento do palhaço do crime.

Alucinações e primeiros movimentos como Coringa

Arthur, junto de sua mãe, são moradores de um conjunto habitacional muito simples e têm como uma de suas vizinhas; Sophie. Arthur se encontra com a garota no elevador e após algumas palavras trocadas, eles seguem em direções diferentes pelo corredor… É o suficiente para Arthur se apaixonar pela jovem. Após Fleck ‘abraçar de vez’ a loucura depois do crime cometido contra os três homens no metrô, ele corre como nunca, chegando até a porta de Sophie, assim roubando um beijo da moça. É uma cena impactante, por algum momento, chegamos a pensar que Sophie pode ser um soro contraposto à insanidade de Arthur como Coringa, mas isso é quebrado a partir do momento em que vemos que o personagem de Joaquin Phoenix idealizou todos os momentos juntos da moça em sua mente, e o que realmente aconteceu foi exatamente o que mais nos deixaria chocados diante da tela do cinema… Mesmo inexplicitamente, o roteiro nos mostra que Arthur invadiu o apartamento de sua amada e a matou, assim como o mesmo mata sua própria mãe adotiva, Penny, sufocada com um travesseiro, que estava internada em um hospital após sofrer um infarto, sendo achada por dois policiais que foram lhe perguntar sobre seu filho Arthur, que estava sendo investigado pelo tiroteio fatal no metrô, e assim como matou brutalmente seu colega de trabalho Randall, que lhe dera o revólver para proteção pessoal, em seu próprio apartamento, deixando ir seu outro colega de trabalho que acompanhou Randall até a casa de Arthur, que por sinal é um anão. O mesmo não alcança a fechadura da porta, pedindo para Arthur que está ensanguentado com o sangue do seu ex-colega Randall, abrir a porta, gerando um pequeno alívio cômico na sala do cinema.
Após mergulhar de cabeça em sua loucura e ver que seus atos estavam gerando manifestações e apoio sobre sua pessoa até por ora “irrelevante” para Gotham, o falho humorista decide colocar sua cara à tapa indo no programa de Murry Franklin após o apresentador ‘viralizar’ um vídeo de uma apresentação humorística de Arthur em um bar da cidade, ridicularizando Fleck em rede nacional; e isso foi a gota d’água para o perturbado protagonista.

Arthur no camarim do programa de Murray, pedindo para ser apresentado ao público como “Coringa”.

O “Coringa” (assim apresentado literalmente), entra em rede nacional pela primeira vez após ser humilhado por um dos grandes nomes da comédia do país, e não corresponde à altura para o público: assumindo a autoria dos assassinatos no metrô após ler uma piada com alto teor de maldade. Todos ficam chocados em um primeiro momento, até que o palhaço atropela as falas de Murray contando sua última “piada” no programa, que resulta em um tiro na cabeça do apresentador após o fim da anedota. Após manchar sua imagem para todo o país, não satisfeito, Coringa pega a câmera do estúdio e diz algumas palavras, e logo a transmissão é cortada. Essa cena da câmera nos lembra uma referência à “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, onde Coringa profere palavras contra Bruce Wayne e ameaça Gotham enquanto segura uma câmera.
Sendo preso, Coringa observa o caos que seus atos geraram em toda a cidade que queima caótica com protestos, roubos, agressões, carros e lojas em chamas, e se sente perfeitamente bem. Pela primeira vez em toda a trama, vemos Arthur sorrindo de forma sincera, mesmo que não exista mais “humanidade” em sua pessoa, ali, vemos que o protagonista deixou o Coringa adentrar cem por cento de sua personalidade e vida, como se fosse uma espécie de entidade. Ainda há espaço para o assassinato dos pais de Bruce Wayne em meio ao cenário destrutivo, mas isso não interfere no protagonismo da cena que é totalmente voltada para Coringa se sentindo o rei de Gotham. Após ser resgatado por criminosos fanáticos, uma das cenas mais memoráveis do filme nos é apresentada: Arthur, totalmente orgulhoso de si pelos seus feitos, coloca as mãos na boca ensaguentada pelo acidente que causou seu resgate e passa ao redor dos lábios, indo no sentido ao meio da bochecha; causando assim, o famoso sorriso icônico do maior vilão do homem-morcego.

Conclusão

“Joker” é um filme baseado na origem de um personagem, portanto, o enredo pode parecer lento para a maioria das pessoas que estão acostumadas com filmes sobre o universo de heróis e vilões mais agitados, com mais intensidade. A trama envolve bons atores, ótimas atuações e entregas de emoções que dão gosto para um drama com um toque de suspense bem elaborado. Joaquin Phoenix sempre se dedicou muito para atuar em papéis, e em Joker não poderia ser diferente. Estudando a labilidade emocional para reproduzir as medonhas risadas involuntárias, perdendo muito peso e se entregando totalmente à Arthur Fleck, o ator merece todas as premiações que lhe forem indicadas.
A trilha sonora é um ponto-chave do filme, Hildur Guðnadóttir conseguiu com maestria orquestrar momentos com uma tonalidade tão densa que nos faz perder o ar com tamanha meticulosidade ao escolher os momentos certos para cada música.
Além de belas escolhas em falas, o desenrolar do filme nos faz entender melhor como a mente de uma pessoa traumatizada que possui problemas sociais e psicológicos, que por muitas vezes é confundido com “empatia pelo criminoso”, o que é totalmente diferente. Ninguém em sã consciência apoiaria as atitudes do Coringa, mas o filme nos entrega o propósito de entendermos o que o originou, os passos, os traumas e as humilhações que fizeram um homem com um sonho, se tornar um completo tirano maníaco e compulsivo por desastres. Conseguimos ver o lado artístico de uma pessoa que está tão perdida em si e no modo sobre como as coisas acontecem ao seu redor que já não consegue mais diferenciar o certo do errado, conseguimos ver a sensação de um homem que passou por um processo de total transformação, considerando-se um deus, após viver como um “verme” por tanto tempo.

“Coringa” está em exibição nos cinemas de todo o país.

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Eduardo 'Cafeffiro'

22, amante de hip-hop, pseudo-filósofo. Escrevo sobre basquete, rap e algumas coisas da cultura pop.