Carta da nova Carua
Fazem algumas semanas que eu estou Aqui, e somente agora eu tenho coragem de te escrever. Preciso começar dizendo que estávamos erradas. Quando decidimos nós congelar aguardando um futuro distópico iminente, por conta das inteligências artificiais, por conta das guerras… bem nada disso aconteceu.
Pelo contrário. É difícil dizer necessariamente como Caruaru chegou a ficar como ficou. Ainda não sai da cidade, que voltou a se Chamar Carua, estou primeiro me habituando a este novo mundo
Por onde eu começaria a te explicar o novo mundo? Bem, acho que é preciso dizer que não existem mais Carros. As longas rodovias de asfalto que cortavam e definiram os trajetos possíveis da cidade agora são estradas largas de calçamento.
O que antes eram Bairros agora são o que chamam de Círculos. Um microcosmo das cidades, os círculos são células de cidade autônomas, nelas há tudo! A energia é gerada, a comida é cultivada e distribuída, o Tecido é gerado… tudo é feito para que as pessoas, animais, plantas e fungos não precisem se deslocar. Os círculos são planejados com um centro, onde fica a única contrução verticalizada de todo esse microcosmo. Construída em concreto de Cânhamo, ladrilhado a Bambu e com pinturas que lembram uma mistura interessante de Arte ancestral indígena com Grafiti. Essa contrução é chamada de Pilar da floresta. É uma grande floresta vertical, onde são cultivadas todas as matérias vegetais em grande maioria. O prédio tem uma linda aparência averdejada devido a sua cobertura de Placas solares autônomas, que captam toda a energia necessária para que o Pilar possa se manter.
Só estive lá dentro poucas vezes, e é lindo! É um grandioso Jardim onde a Canabis, o Bambu, As algas, a Mandioca, o milho, a Batata, o Arroz, o Feijão, são todos cultivados, junto a redes de micélio. Diferente de nossos tempos em que largos campos eram lotados de uma única comodite, aqui o solo foi adaptado para que todos possam crescer e se fortalecer em pluralidade.
Seu Januário, que é quem estava cuidando do jardim nas horas em que eu estava lá me explicou que hoje as máquinas servem apenas para regular a temperatura, despejar a água na hora certa e medir as concentrações de nutrientes no solo. Mas logo no começo elas automatizavam tudo, do plantio a colheita! Porém, explicou ele, que com o passar do tempo o povo foi notando que o contato com a terra e os ciclos da Natureza eram necessários para a comunidade. Então, hoje o plantio, a manutenção dos adubos, a colheita são feitos e celebrados por todos, como parte da vida comum da comunidade.
Curioso como estava, logo na primeira vez que visitei o pilar, perguntei quem era o Dono, e a quanto tempo ele cuidava de lá. Ele me respondeu que nada nos ciclos tinha dono, que isso era uma ideia do meu tempo que havia sido superada. Lá, todos revezavam o trabalho a Ser feito, seja com a terra ou com as máquinas, seja na catalogação ou distribuição dos recursos, e principalmente na aferição das necessidades. Já que lá nada era produzido pra além do necessário, nem nada era colhido que não fosse ser comido.
O trabalho era comunitário, e cada um passava penas duas ou três horas ali. Não era necessário mais que isso.
Perguntei se não era incomodo trabalhar em algo tão chato…
Ele me sorriu um riso tão sincero e acalentador, me dizendo “oh, filho… aqui todo mundo trabalha com o que gosta e lhe dá prazer, e trabalha no tempo em que sabe fazer melhor “
Eu contei a ele que de onde eu vim, no Bairro da Rendeiras, nós estávamos acostumados a oito horas diárias, pegando as oito e largando as seis, por algo que mal dava para sobreviver…
Ele me olhou com um espanto que desfez seu sorriso.
Disse que era uma abominação fazer isso com a vida. Em seguida perguntou em que parte da comunidade eu trabalhava.
Quando respondi que em um mercado de uma grande rede nacional ele estranhou ainda mais. O conceito de mercados era algo que também já havia sido superado, assim como o conceito de dinheiro.
Ele me contou que todos os trabalhos eram feitos por afinidade, e conforme suas afinidades iam mudando, você ia aprendendo novas formas de trabalhar. E que todos os trabalhos necessários eram desenvolvidos de acordo com as necessidades, primeiro da comunidade, em segundo dos indivíduos. Caso o indivíduo não quisesse ou não pudesse trabalhar eles buscavam entender o porquê, buscar formas de engaja-lo em uma atividade que ele gostasse, e aí, torná-la útil ao círculo.
Ele me explicou que isso era Ergonomia
No nosso tempo ergonomia se tratava de adaptar máquinas a um funcionamento mais apropriado as musculaturas do corpo. Mas nesse tempo, me contou ele, o conceito havia evoluído para “Adaptar O feitio ao necessário para todos e para cada um” e está era a principal filosofia por trás de todo o desenvolvimento aqui. Desde os trabalhos, as roupas, os caminhos, a comida, os exercícios, as relações, a espiritualidade, a Arte, o estudo. Praticamente tudo o que vivenciei até então é desse forma. E todos parecem estar satisfeitos e Otimistas em relação a tudo isso.
A temperatura é sempre Agradável, maioria das estradas são cobertas com um conjunto de Guarda-Sois que se abrem automaticamente quando a temperatura se eleva, ou o nível de Radiação UV. Achei fantástico a primeira vez que os vi abrir. É sempre lindo! Os filtros translúcidos (que também absorvem e geram energia através da luz solar) nem sempre foram assim. Dona Neide (a gentil senhorinha que me acolheu junto a sua câmara enquanto eu passo esse tempo aqui) me contou que logo no começo, inspirado em outros países, os Guarda-Sois eram brancos, para refletir toda a luz do sol; porém isto confundiam e prejudicam a visão das Aves, o que levou muitas a morte. E não é ergonômico se faz mal a população de animais local. Ela me contou também que por este motivo as Janelas do Pilar parecem foscas do lado de fora, mas deixam a luz solar entrar no lado de dentro. Para que as aves não batam contra o vidro translúcido.
Acho tão sensível como aqui eles pensam em todos os seres!
Como eu te falei, aqui as pessoas vivem em Câmaras também construídas a Cânhamo e Bambú. Construir uma é bem simples e não leva tempo. Todas parecem com as casas antigas de Caruaru, sabe? Aquelas que descendem da arquitetura portuguesa e holandesa. Por serem de Rápida construção, as Câmaras muitas vezes são feitas com a possibilidade de serem unidas umas as outras por cômodos extras. É feito quando pequenas teias de afeto decidem Coabitar ( o que é comum, mas é sempre também uma escolha passível de ser revista)
O paisagismo é outra coisa que me chamou atenção e me enche os olhos! São tantas flores, tantas árvores fazendo parte comum das estradas, próximas as câmaras e ambientes comuns. Não há distinção entre urbano e eco. (Isso leva precisarmos tomar alguns cuidados com insetos de vez em quando, mas eles fazem parte do bioma, e são controlados por seus predadores naturais. Faz parte do equilíbrio) o Ar bucólico, simples e Calmo trás uma paz que parece inesgotável. E o cantar dos pássaros e som das folhas só é interrompido pelo trem elétrico, que passa a cada meia hora. Ele liga os círculos entre si (embora também existam estradas excelentes para andar de bicicleta, segundo dona Neide).
Me contaram que os círculos foram feitos para um grupo pequeno de pessoas, não mais que 10 mil habitantes. Como forma de decrescer, de desacelerar. Assim cada ciclo poderia ser auto suficiente em todos os recursos, e temos sempre a liberdade de visitar outros ciclos sempre que quisermos.
Em todo circulo também há escolas, universidades, bibliotecas, ateliês, cinemas, anfiteatros, praças…
Cada uma dessas coisas funciona de uma maneira tão diferente dos nossos tempos. Levaria pelo menos algumas cartas para explicar tudo (até por que eu ainda estou visitando e aprendendo sobre tudo aqui)
Acho que dá para dizer, sobre todas essas coisas, que as pessoas voltaram a conviver sem as telas. E isto é lindo ( e eu me pergunto como aconteceu)
Eu noto que eles possuem uma relação muito diferente da nossa com o conhecimento, e com a arte. Nos nossos tempos, a arte servia como um paliativo a monotonia ou um refúgio contra o Caos do mundo. Já o conhecimento era uma ferramenta técnica imoral utilizada para erguer egos énormes e geralmente quando ele mudava o mundo era de maneira bélica (isso quando não era sumariamente ignorado)
Pelo pouco que presenciei, outro dia indo a biblioteca, é que aqui o conhecimento é tratado como uma extensão do espírito coletivo dos seres. Ao mesmo tempo uma preservação da história, das memórias do povo que foi, ao mesmo tempo um busca por compreender o mundo que será. Todo o conhecimento buscado é sempre no sentido de tornar tudo ainda mais harmônico e equilibrado. E cada nova descoberta é compartilhada com o mundo inteiro! É fascinante!
Já a arte, também como uma extensão desse espírito coletivo, parece ser uma celebração dá potência dos afetos. Todos aqui são artistas. Não é preciso aprender a técnica (embora todos aprendam, já que tem tempo para isso, e ótimos professores)
Todos cantam, tocam, dançam, escrevem, esculpem sobre como celebram a vida, a morte, as transições, suas teias de afeto, seus próprios corpos em êxtase. E todos são livres para mostrar isto publicamente, e incentivados a isso!
Apesar de poucas semanas aqui. Esse mundo novo tem sido pra mim a descoberta de um sentimento, algo que meu peito havia esquecido o compasso com o qual bater. Tem sido lindo poder sentir esperança.
Ass: Com muito fascínio, Saturno.
Ps: espero que você acorde logo. Quero passear de bicicleta com você.