Adelina Gomes: Metamorfoses

Caio Melo
7 min readApr 23, 2018

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A figura masculina tenta alcançar a figura feminina, cujas vestes verdes apontam para uma metamorfose em vegetal. Óleo sobre papel, 48 x 33 cm, 1961.

Metamorfose no dicionário é apresentado como transformação, geralmente rápida e intensa, que ocorre na forma, na estrutura e nos hábitos de certos animais durante seu ciclo de vida. Ou alteração de aparência, comportamento, caráter etc.; avatar. Por fim, mudança radical de uma pessoa ou coisa. Qual a principal mudança de Adelina Gomes? Nada tem de transmutação física. Adelina dissipa-se através da arte no ateliê. Solta-se, voa por entre formas, cores e vivências. Com sua forte expressão, Adelina desencadeia uma nova proposta crítica em relação a arte: nada de primitiva, pura,
virgem ou bruta, pelo contrário, singular, moderna e sem vícios ou referenciais europeus vigentes da época.

Com uma produção de aproximadamente de 17.500 obras, Adelina não é referenciada como artista, e sim como projeto. Sempre que mencionada, o teor de seu conteúdo é sobre seu diagnóstico e não sua trajetória artística, desvalorizando toda a sua reprodutibilidade técnica. Dedicando-se à escultura, pintura, confecção de flores de papel e aos trabalhos de crochê, Adelina era múltipla. Adentrou o Ateliê de Pintura e Modelagem do Centro Psiquiátrico D. Pedro II, localizado no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro em 1937. Do viés terapêutico, o seu fazer artístico resgataria profundezas de um universo desconexo e inconsciente de si e de outros pacientes ali inseridos.

Em contraste de seu período de inatividade e alheamento fora dos ateliês, a tímida moça do interior do Rio de Janeiro, obediente aos pais, principalmente afeiçoada e submissa à mãe, transforma-se em incontáveis trajetos de estado do ser, tendo sua principal metamorfose, do estado vegetal cheio de maneirismos, negativismo, e grande agressividade para o presente ativo, e em inúmeros relatos, afetivos.

Aos 18 anos, Adelina apaixona-se por um homem não aceito por sua mãe. Por conta deste impedimento, a artista torna-se cada vez mais retraída, até que em um surto psicótico acaba estrangulando a gata de estimação da família. Após este episódio, Adelina é diagnosticada com esquizofrenia e internada em 1937, aos 21 anos. De acordo com a psicologia analítica junguiana, o episódio vivido por Adelina levou a perda de sua função feminina afetando o aspecto de sua identidade que permitia a sua vivência enquanto mulher. O próprio ato contra a gata, segundo Nise de Silveira em meio aos estudos junto a Jung, simbolicamente retrata o extermínio dos próprios instintos, aquilo que a levava ao feminino.

Adelina junto a Nise no ateliê.

Adelina dá formas a suas imagens internas, e concomitantemente, representa a si mesma, pois aquilo que está criando é algo ativo dentro dela própria. O que é ativo dentro dela, não é outra coisa se não ela mesmo, conforme escreve Nise em seu texto Desenhos e pinturas como meio de pesquisa e tratamento da esquizofrenia, de 1976. Delírios, fantasias e sonhos se misturavam, e no caso de Adelina, o simbolismo pode ser visualizado como forma de defesa as suas experiências mais íntimas.

Em Van Gogh sua certeza de sanidade estava na pintura. Já para Arthur Bispo do Rosário, que ao pressentir “o muro desabar” se recolhia e com muitos materiais produzia, de forma muito próxima, Adelina começa a criar. É no Ateliê de Pintura e Modelagem que a artista experiencia o fazer em modelagens em barro. Suas construções figurativas chamavam atenção pela semelhança com imagens do período neolítico. Sua assimilação como “primitiva” vem de imagens arquetípicas femininas históricas, como as deusas gregas e a Virgem Maria, possíveis de identificação e de atmosferas fantasiosas de suas tramas.

Outro contraponto é a fragmentação de partes do corpo nas representações de figuras humanas: nenhuma delas estão ali por acaso. Sua consciência após um período de desinteresse, agora, novamente estimulada numa simbiose de tempos distintos, porém de histórias iguais, se manifesta simultaneamente com os seus desejos e sentimentos. Essa fragmentação ocorre no início das atividades no ateliê e segue por mais alguns anos, tendo sua conversão com o tempo até seu desaparecimento total, ao vermos o todo retratado nas figuras que a artista compõe.

esq. Cópia em gesso de modelagem em barro, 20 x 34 x 24 cm, d. 1950 — dir. Cópia em gesso de modelagem em barro, 20 x 34 x 24 cm, sem data

Por longo do seu período produtivo, sua evolução entre altos e baixos como qualquer produção artística é notável uma estruturação de imagens compatíveis com sua realidade. A figura do gato aparece hora com mais força, no início de forma metamorfoseada com mulher, depois cada elemento separado, reforçando seu desprendimento de sua própria história, e sua continuidade de progressão e outras resoluções possíveis de seus enredos. Figuras de flores, mãe/filha e homem/mulher também são temas narrativos constantes por entre suas obras.

Nas metamorfoses de Adelina, as representações e misturas de características vegetais ou animalescas trazem a possibilidade de interpretação de traços antropomorfológicos. Sendo ainda possível pela mesma perspectiva de suas modelagens, atribuir contextos arqueológicos em sua produção, constantemente associados a universos de rituais, a criação, ao tempo, e a relação do homem com ele mesmo e a natureza que o circunscreve. Diante de toda essa complexidade, Adelina se desvinculava a cada novo episódio, de seus mitos e lendas, deixando chegar na representação daquilo que se copia, de materiais que a artista mesmo colhe no jardim do hospital. “Pela primeira vez, de um galho saiu uma flor e não uma mulher”, diz Elza Tavares, a monitora do ateliê de pintura, em meados de abril de 1962, sobre o trabalho de Adelina, progredido de forma intensa e se desvinculando de suas variações formais.

Vestindo o que forma uma corola é possível identificar a cabeça e um busto no cálice da flor. Guache sobre papel, 48 x 33 cm, 1959.

A artista participa de inúmeras mostras, no Salão Nobre da Câmara Municipal (1949), Museu de Arte Moderna (1950), Museu da Etnografia na Suiça (1955), Galeria Vila Rica (1963), chegando a apresentar seu trabalho na 16ª Bienal internacional de São Paulo, na Fundação Bienal (1981). Após seu falecimento, seu trabalho é apresentado no Paço Imperial (1987), Parque Ibirapuera (2000) e novamente no Paço Imperial (2000). Quase todas, se não em sua totalidade, na modalidade de sua particularidade. No Museu de Arte de São Paulo, até recentemente, a tipologia de algumas obras foram reclassificadas como “arte do Brasil”, em diferença ao tema anterior “arte dos alienados”.

Na certa, o debate na história da arte não fora raso ou inexistente. Mario Pedrosa apresentou o conceito de arte virgem, Walter Zanini integrou uma seção chamada Arte incomum na 16ª Bienal de São Paulo (1981) e na Mostra do redescobrimento (2000) integrava-se a exposição Imagens do inconsciente. Outro marco neste tema está na doação da produção dos pacientes de Osório César ao Museu de Arte de São Paulo, em 1974. Osório foi médico no Hospital Psiquiátrico do Juquery, e junto a Nise de Silveira, foi um do grandes nomes no trabalho com arte e psicologia. Ainda assim, existia muitas ressalvas para as obras destes artistas, chegando a avaliações como a de Quirino Campofiorito cuja opinião se opunha fielmente ao conceito de arte nestes trabalhos e na convicção de que o único mérito destas obras eram de oferecer meios para estudos científicos sobre a saúde mental.

Quantos trabalhos de Adelina integram os acervos de instituições cuja missão é a representação da história da arte brasileira? E se integram, como é feita essa classificação? A opinião de Quirino, não vingou na época, mas, de certa forma, quais as possibilidades atuais das artes de pacientes estarem em exposição apenas como obra de arte, equivalendo-se de seu conteúdo estético/visual e menos de sua compreensão de trabalhos psicopatológicos? Não se vê políticas para o resguardo desta memória, e nem, a atenção e recursos são dados para a recuperação dessas múltiplas histórias da arte,
suas especificidades e sobreposições.

O termo loucura já foi apresentado como êxtase e liberdade em Histórias da Loucura de Michel Foucault… em que momento nos afastamos deste ensaio? A obra de Adelina, sempre flexível e em processo, prova que suas expressões artísticas nada possuem de bruta por suas características espontâneas e intensas, mas sim, de uma nova linguagem necessária de pesquisa, reflexão, divulgação e salvaguarda como todas as obras e movimentos artísticos presentes na história.

Adelina não se transformou unicamente. A artista ainda está em constante metamorfose. Sua mutação do interior ao exterior, formou sua liberdade e a experimentação de seu eu reconstruído, das quais, suas condições subjetivamente vividas passaram a serem visíveis a todos. Sua obra viva, infelizmente não apresentada, atua ainda com seu poder grandioso de experiência criativa e comunicadora através da sensibilidade da artista em exteriorizar o seus mundos interiores pela arte. Que seja possível ver seu feito por aí, não apenas entre paredes, mas de forma em que seu trabalho ecoe e modifique onde possa se instalar, liberto de considerações já fabricadas e com um imenso espaço para novas disposições.

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