Resenha do filme “Bicho de sete cabeças” (2000)

Caio Carvalho Ribeiro
4 min readMar 19, 2023

O filme “Bicho de sete cabeças” (2000), produzido pela cineasta Laís Bodanzky, foi inspirado na obra de Austregésilo Carrano Bueno, Canto dos Malditos (1990). Nessa autobiografia, Carrano relata os horrores e abusos vividos em clínicas de reabilitação nos anos 70. Impressionada com a narrativa, Bodanzky convidou o roteirista Luiz Bolognesi para adaptar a obra para o cinema.

O longa que foi produzido em parceria das produtoras brasileiras Buriti Filmes, Dezenove Som e Imagens Produções Ltda. e Gullane Filmes, juntamente com a participação da brasileira RioFilme e da italiana Fabrica Cinema, com distribuição da Columbia TriStar, conta a história de Neto (Rodrigo Santoro), um jovem que é internado compulsoriamente a mando de seu pai Sr Wilson (Othon Bastos).

A diretora aborda uma temática difícil ao analisar corajosamente a cultura da violência implantada nas instituições brasileiras. Trata de assuntos tabus como a família, as drogas e o sistema manicomial. Temas sérios tratados com a sensibilidade necessária fazem parte dessa narrativa forte e direta. Bodanzky consegue fazer com que o filme ganhe reconhecimento no Festival de Brasília, Recife, além de conquistar premiações na Mostra de Cinema do Rio de Janeiro recebendo o prêmio de melhor direção, melhor ator e melhor atriz.

Voltando ao enredo do filme, Neto, que já vive uma relação conflitante com os pais, vê seu mundo virar de cabeça para baixo quando seu pai encontra um cigarro de maconha em sua jaqueta. O fato é suficiente para fazer com que seu pai decida o internar em uma instituição manicomial, visando o “tratamento” adequado para filho. Internado à revelia de sua vontade, Neto passa a vivenciar a corrupção e negligência médica que permeia a realidade dessas instituições no Brasil, o jovem sofre tortura, é sedado, preso e quase morre devido aos maus tratos sofridos durante o praticamente cárcere.

Tal realidade faz parte da vida de muitos jovens no Brasil, que, por preconceito e ignorância dos pais e da sociedade, acabam por sofrer os efeitos colaterais de uma política antidrogas que falha em cuidar da saúde e bem estar do usuário ao declarar um caráter bélico contra as drogas, estimulando o aumento de violência. Durante a internação, ao serem expostos aos mais desumanos tratamentos, e ao ser administrado doses de fortes medicamentos, é natural que esse jovem, que por exemplo, era um simples usuário de maconha, passa a sofrer de traumas muito mais prejudiciais do que a substancia psicoativa poderia lhe causar, devido aos abusos sofridos durante o período de internação. No longa, ao finalmente se libertar de seus algozes, Neto se torna um militante da questão anti-manicomial e escreve uma cartão endereçada ao seu pai onde ele relata todo os males sofridos, acusando-o de ser o principal agente desse trauma.

A diretora Bodanzky coloca na mira do debate publico as instituições sociais ao expor o preconceito em relação ao interno e o autoritarismo dos profissionais. Também, não podemos deixar de citar a crítica à família tradicional brasileira de classe média que trata o statuos-quo acima das relações sentimentais entre seus entes, a figura do pai de Neto é um exemplo clássico do chefe de família que não mantém um diálogo ou boa relação com os filhos, onde a solução para um problema como esse é fechar os olhos e “varrer a sujeira pra debaixo do tapete”.

Embora existam ordenamentos jurídicos que permitam a internação compulsória de dependentes químicos ou pessoas com transtornos mentais, como a Lei No 10.216, de 6 de abril de 2001, não podemos criar a concepção de que todo usuário de drogas deve ser imediatamente retirado do convívio da sociedade de isolado em uma “clínica”, o próprio texto da lei dispõe no artigo 2º inciso II, o tratamento com humanidade e respeito para com o paciente, visando exclusivamente seu bem estar e promoção da saúde, trazendo pra si o foco em alcançar a recuperação pela inserção no ambiente famíliar, no trabalho e na comunidade, devolvendo os estímulos sociais adequados.

Se tratando de bem-estar e saúde, cabe salientar a importância do apoio e participação da família durante o processo, no caso do filme aqui descrito, uma boa relação pai e filho resolveriam as diferenças entre os indivíduos e evitaria tamanho trauma sofrido pelo jovem. O preconceito e ignorância foi, como sempre, um agente primordial no processo a qual o jovem Neto foi submetido, tendo vista que, de acordo com o descrito no artigo 4º da lei 10.216,” a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”. No caso narrado pelo filme, fica claro a desnecessidade da internação sofrida por Neto.

Sendo assim, Bodanzky conseguiu externalizar muito bem a realidade posta por Carrano nos anos 70, de uma maneira atual para a época em que fora gravado mostrando como o problema do preconceito, descaso e corrupção é atemporal. Conseguindo transmitir a angústia de muitas vítimas do sistema manicomial, o filme que é um clássico na carreia de Rodrigo Santoro e na história do cinema brasileiro, choca ao apresentar uma realidade perturbadora e muito presente na vida de milhões de brasileiros, a qual a sociedade muitas vezes ainda fecha os olhos.

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