rafaela?!
10 min readSep 27, 2022

A NOITE VAI TER METEORO: Mulheres de Areia, Não Olhe Para Cima e representações midiáticas do negacionismo

Em 21 de fevereiro de 1993, a Organização Mundial das Nações Unidas, em uma evidente manobra revolucionária que certamente resolveu pelo menos 30% dos problemas ambientais do planeta e garantiu saneamento básico a todos os países de terceiro mundo, determinou que, em 22 de março, seria comemorado anualmente o Dia Mundial da Água. Qual foi o impacto disso? Não faço a menor ideia e não estou com vontade de pesquisar mais a fundo. Lembro de fazer meia dúzia de cartazes no Ensino Fundamental, mas nada muito significativo. Mas não estou aqui para falar de organizações liberais performáticas lotadas de pelegos engravatados, e muito menos para discutir com quem acredita piamente na força transformadora desses mesmos pelegos. Estou aqui para falar de coisas importantes para a nossa cultura, sem nenhum compromisso ético-científico e apenas a minha opinião (ocasionalmente salpicada de fatos indistinguíveis dos achismos desta que aqui escreve) como norteadora da análise. Voltemos a fevereiro de ’93. No primeiro dia do mesmo mês, estreava, na TV Globo, o que talvez seja a magnum opus das histórias de trambique, intrigas familiares, negacionismo científico e traição. Escrita por Ivani Ribeiro e estrelada por Glória Pires na combinação de performances mais brilhante de sua carreira, a novela Mulheres de Areia mudou a televisão e o Brasil para sempre.

A trama central, protagonizada pela icônica Ruth, eternamente azucrinada pela ainda mais icônica irmã gêmea Raquel, gira em torno dos conflitos entre as duas, que se desentendem de vez quando Raquel arma um golpe para roubar o namorado de Ruth, o bunda mole Marcos (Guilherme Fontes), e se aproveitar da riqueza da família dele. Daí se desdobram sei lá quantas brigas, traições e confusões de quem é quem. Os versos “A noite vai ter lua cheia / Tudo pode acontecer”, entoados por Pepeu Gomes no tema de abertura da novela, são trilha sonora e também promessa. Acontece de tudo em Mulheres de Areia. Infelizmente, [hoje] não falarei do delicioso enredo de Ivani Ribeiro. O foco aqui é uma das tramas secundárias.

Qualquer telenovela que se preze precisa de um elenco de apoio carismático que renda suas próprias histórias, e com Mulheres de Areia não é diferente. Tonho da Lua, vivido por Marcos Frota, é tão icônico quanto a caricata vilã Raquel, e é impossível não torcer para que o coitado consiga tirar a irmã e a si mesmo das garras do seu odioso padrasto. O drama do prefeito Breno (Daniel Dantas) e de sua esposa Vera (Isadora Ribeiro), casal apaixonado, mas assombrado pelo ciúme dele e por um segredo do passado dela, também cativa a audiência, cujo coração se parte e se remenda junto com a relação conturbada dos dois. Contudo, o subplot mais importante, que acaba amarrando o elenco inteiro e diversas outras tramas, é o embate entre a ciência e o senso comum, a ética e a ganância, que ocorre quando a aldeia de pescadores de Pontal D’Areia, terra natal das gêmeas Glória Pires e cenário da maior parte da novela, recebe a notícia de que as águas da praia, único ponto turístico da cidadezinha, estão impróprias para banho. Aparente[e óbvia]mente, as obras de empreiteiras nos arredores contaminaram o mar com seus dejetos e o risco de contração de vírus e bactérias na “prainha” tornou-se alto demais para as autoridades sanitárias.

Os dois lados do conflito se consolidam nas figuras de Breno, prefeito dedicado e apaixonado pelo povo, que decide proibir o banho de mar até que seja limpa a praia, e o vilanesco Virgílio (Raul Cortez), seu cunhado, vice e dono do principal hotel da cidade, que decide sabotar o mandato do ingênuo irmão de sua esposa para evitar que a crise financeira que assola sua pousada piore. A cidade se divide entre quem não leva a sério as restrições, como o dono de quiosque Zé Pedro (Carlos Zara), a ambiciosa Maria Helena (Alexia Deschamps) e Raquel, e os fiéis apoiadores de Breno, como Ruth, o Doutor Munhoz (Edwin Luisi) e a lojista Tônia (Andrea Beltrão), o que acarretará em desentendimentos a nível político, profissional e pessoal. Tônia e Munhoz estão desesperados para proteger a saúde da população, enquanto que seus rivais se preocupam mais com o impacto a curto prazo das novas proibições na economia local. Ao final da novela, após brigas e tragédias, a praia é limpa e os banhistas podem voltar a nadar. Sabe-se que, no Brasil, a conscientização para fenômenos sociais e ambientais pode ser feita, de forma eficaz, por meio das telenovelas. Eu mesma me lembro de morrer de medo de arrumar emprego fora do Brasil e cair em uma rede internacional de tráfico sexual depois de ver uns quatro ou cinco capítulos de Salve Jorge (2012–2013). Então, trazer à tona uma discussão sobre a importância de se cuidar com a natureza e a saúde, contraposta à situação de crise econômica que os brasileiros enfrentavam junto aos personagens, é uma grande manobra midiática.

Como todos com mais de 25 anos de idade ou compreensão básica da história do país estão carecas de saber, os anos 90 no Brasil foram uma época… Complicada. Também não vou entrar em muitos detalhes a respeito, porque se fosse para fornecer contexto histórico de qualidade eu estava fazendo trabalho da faculdade e não comparando filmes medíocres com novelas da Globo. No entanto, gostaria de levantar algumas coisas que aconteceram no ano de 1993, para fins de argumentação. Um plebiscito nacional deixou que os cidadãos brasileiros decidissem a forma de governo do país (10% da população votou a favor da monarquia. Não emitirei opinião a respeito por motivos jurídicos). A hiperinflação atingiu o seu auge, chegando a alarmantes 2500%. O Cruzeiro virou Cruzeiro Real. O São Paulo foi bicampeão mundial. E, em meio a tanto caos, tanta desgraça, o povo pôde contar com o conforto de uma obra prima no horário das seis na TV aberta. Enquanto se comprava leite parcelado e se esperava um possível apocalipse de proporções bíblicas, Glória Pires entretinha o público de forma magistral. Mulheres de Areia não foi só novela, mas o frescor do sopro da esperança nos rostos dos brasileiros desiludidos, desempregados e desesperados. Prova disso é que, quando se fala em Ruth ou Raquel, todos se lembram das icônicas gêmeas de Pontal d’Areia. O nome de Tonho da Lua virou sinônimo de maluco (o que, em casos como o da comparação com o execrável Carlos Bolsonaro, é uma injustiça com o personagem, cujos transtornos neuropsiquiátricos acompanham um bom coração) no país inteiro.

Quase duas décadas depois, em 2020, o mundo entra em uma pandemia. Eu não vou explicar o contexto da Covid-19 porque, assim como Tonho da Lua, sofro de psicopatologias e tomo remédios controlados. Não posso me aborrecer. Além disso, a não ser que você tenha acabado de sair de uma comunidade Amish ou acordado de um coma nos últimos meses, sabe muito bem o que foi. Continuando meu raciocínio, assim como nos anos 90, estamos em um período de uma horrorosa recessão econômica (o Brasil geralmente está, mas pra países de primeiro mundo acho que deve ser meio novidade). Adicione um vírus mortal e inédito, que força as pessoas a ficarem trancadas dentro de casa por sabe-se lá quanto tempo, e o mundo entra em desespero. A solução, ainda que temporária, parece óbvia. Ficar em casa, usar máscara quando sair e, quando estiver disponível, tomar a vacina. Também não preciso explicar o que aconteceu. Nesse contexto, o cineasta ianque Adam McKay, conhecido por The Big Short (2015) e Vice (2018), lança, em dezembro de 2021, o longa-metragem Don’t Look Up, traduzido, no Brasil, para Não Olhe Para Cima.

É claro que um filme de pouco mais de duas horas não pode ter uma trama tão densa e ramificada quanto uma telenovela de duzentos e poucos capítulos. O filme de McKay vai direto ao ponto em seu enredo: acompanhamos dois astrônomos, vividos por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence, em uma tentativa desesperada de, por meio de aparições na grande mídia e diálogo com autoridades, conscientizar a população sobre um asteroide que colidirá com a Terra, destruindo tudo e matando todos, em questão de dias. Ignorados e desprezados pelos magnatas da tecnologia, pelo governo estadunidense e pela mídia tradicional, cada um dos cientistas vai entrando na sua respectiva espiral de desespero e insanidade, até que se reúnem novamente em uma recriação suburbana da Última Ceia para viver seus últimos momentos antes do inevitável desastre.

O filme foi criado e escrito antes da pandemia, então não, não é uma alegoria do Coronavírus. Segundo o diretor, roteirista e produtor Adam McKay (pelo visto não há mais terceirizados em Hollywood), a obra é uma sátira política que busca criticar a posição negligente das autoridades e dos bilionários diante das mudanças climáticas. Na verdade, ele não precisava ter explicado isso, porque ficou bem claro no filme. Claro demais, para uma produção cinematográfica que chegou a ser indicada a uns quantos Oscar™, mas isso não surpreende. É um filme de gringo. Feito por gringo pra gringo ver. Culturalmente, não precisa de muita sutileza. É literalmente na cara do espectador. É um meteoro atingindo a sua televisão. E distribuído pela Netflix.

Roteiro ok, direção nada especial, personagens nada memoráveis. Não Olhe Para Cima funciona como oscar bait e assunto pra colunista da Folha de São Paulo e meia dúzia de grupos de WhatsApp. Os diálogos e o enredo são tão óbvios, tão escancarados que não sobra espaço para nuance ou subtexto. Isso, para mim, não funciona em sátira política. Quanto menos mastigado e com gosto de filme do Homem de Ferro for, melhor. O que, infelizmente, não é o caso. Assim como acontece com a maioria das produções da Marvel hoje em dia, senti que os 138 minutos de duração se arrastaram. Sempre tem alguma coisa acontecendo no filme, mas é tudo tão simplório que fica chato (e não, o problema não é minha suposta incapacidade de concentração pra ver coisa comprida. Meu filme favorito é literalmente a versão do diretor de A Criada, do Park Chan-wook). As atuações são boas, mas nem de longe as melhores do elenco abarrotado de atores A-list de Hollywood. Não me lembro do nome de um único personagem, porque são todos arquétipos vazios. O cientista corrompido pela fama. A mulher da ciência vista como histérica. A figura política cuja ganância a impede de fazer o melhor pelo povo que a elegeu como representante. Acho que a coisa mais marcante em termos de caracterização foi o corte de cabelo feito com uma tesoura de unha cega em um banheiro de rodoviária da Jennifer Lawrence. O cachê dessa gente deve ter saído tão caro que, por um tempo, pensei que esse filme pudesse ser lavagem de dinheiro. Depois de assistir, não acho que seja o caso. Só é… Meh.

Comparando o enredo secundário de Mulheres de Areia com o filme Não Olhe Para Cima, levanto o seguinte questionamento: uma obra mainstream que busca ser socialmente engajada (mesmo que de forma rasa) cumpre seu papel quando ninguém fala dela no dia-a-dia? Eu acho que não. Principalmente se o objetivo central da produção é criticar algum fenômeno da nossa realidade. Não estou dizendo que tem que virar a Bíblia em termos de impacto, mas uma sátira política apocalíptica, como é descrita na Wikipédia, que custou 75 milhões de dólares, podia ter sido um pouco mais memorável. A longevidade é outro fator que anda de mãos dadas com a relevância cultural. Quase 20 anos depois, o Brasil inteiro se lembra de vários aspectos de Mulheres de Areia. Os personagens tornaram-se parte do vocabulário, do imaginário popular. Menos de um ano depois do lançamento de Não Olhe Para Cima, ninguém lembra de quase nada. Ah, sim, o tal do meteoro. O DiCaprio de oclinhos. A franja horrorosa da Jennifer Lawrence. Você pode dizer, agora, o nome de dois personagens desse filme? É claro que não. Você não lembra.

Uma sátira política (pelo menos da magnitude que Não Olhe Para Cima parece querer ter) precisa ser memorável. Precisa estar enfurnada na mente do povo, no repertório cultural da sociedade. Pegar Hot 100 na Billboard, conseguir PAK nos charts do consciente coletivo. García Márquez eternizou o caos e as intrigas da terra fictícia de Macondo. Chaplin personificou o nazifascismo e o autoritarismo europeu em O Ditador. O próprio McKay, em Succession, quando permite que diretores e roteiristas mais competentes trabalhem na parte criativa, traz uma crítica muito mais sutil e eficaz aos poderosos, com as tramoias e os dramas freudianos da família Roy.

Minha hipótese é que os personagens e a trama de Não Olhe Para Cima sejam muito artificiais. Muito longe das pessoas reais. Astrônomos geniais, com acesso a recursos milionários, autoridades governamentais, bilionários da tecnologia e âncoras dos maiores noticiários do mundo estão muito longe do nosso cotidiano. Sim, as outras obras que citei lidam com figuras distantes. Mas, com exceção de Chaplin, que confia no próprio carisma escrachado enquanto comediante, os personagens de Gabo e os Roy têm sua psique muito mais explorada, humanizando tanto a si quanto às questões com as quais precisam lidar, do que os do filme de 2021. Embora os personagens de DiCaprio e Lawrence ganhem um pouco de história e família, é tudo muito engessado. Parece que todo o contexto está lá para encher linguiça e não para trazer seus dramas para mais perto do público. O que Mulheres de Areia faz com louvor. Uma comunidade de trabalhadores litorâneos em conflito sobre a liberação do banho em um mar contaminado, preocupados com os negócios que sustentam suas famílias, está muito mais próximo da realidade de 90% do planeta do que um bando de gente rica discutindo o que fazer a respeito de um asteroide em contagem regressiva para explodir a Terra.

Enfim. Eu não sou crítica de cinema, muito menos astrônoma e nem cineasta. Sou só uma chata. Se você discorda, eu não quero saber. Se concorda, talvez eu queira. Acho que novela é muito divertido e que o Adam McKay devia investir em uma cozinha dos terceirizados pra roteiristas, porque ele não é bom nisso. Talvez eu volte com mais comentários sobre mídia que ninguém pediu. Talvez eu seja a Raquel em um remake de Mulheres de Areia escrito por intermédio de um tabuleiro Ouija para falar com Ivani Ribeiro no Além. A noite vai ter lua cheia. Ou será que vai ter meteoro? Tudo pode acontecer.

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Written by rafaela?!

escrevo pra evitar as minhas obrigações (que geralmente são escrever outras coisas). eu diria que espero que gostem, mas na verdade não me importo.

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