O ISCARIOTE

Mensagem de Allan Kardec, por Zilda Gama, “Diario dos Invisiveis”, 1929

Caliban Kalitz
10 min readAug 16, 2023

17 — VI — 1923.

Parte I

Muitas controversias têm havido referentes ao Iscariote, accusado implacavelmente por todos os que verberam o seu proceder, considerado de precito. Transcorridos tantos seculos após a perpetração de seu delicto nefando, quasi todos ainda o julgam nas gehenas, ao passo que outros individuos o consideram um predestinado para cumprir uma missão execravel, indigitado pela Providencia para o fazer, escoimando-o de toda a responsabilidade de seu acto, pois o suppõem coagido a effectual-o, não podendo desvencilhar-se do trama do destino, se o quizesse…

O catholicismo e o lutheranismo condemnam-o, irremediavelmente, ás torturas infernaes perpetuas. Os scepticos, porém, ao inverso, não acreditam em sua culpabilidade e julgam-no victima de um fado cruel, o que comporta uma duvida sobre a rectidão da Justiça divina e de seus decretos supremos. Estes, porém, são fundados no mais imparcial Direito que existe em todo o Universo — exercido pelo Magistrado incorrupto, que é a synthese da integridade e da Omnisciencia e que, portanto, não póde possuir um atomo de imperfeição, e tel-a-ia quem compelisse alguem á pratica de um crime execrando e depois o punisse, inexoravelmente, por uma eternidade!

O Espiritismo, que vem elucidar as paginas obscuras dos Evangelhos, assim define a traição do Iscariote: era elle um transviado do carreiro do Bem, ganancioso, versatil, falso, ignorante das Leis divinas. Não comprehendia a sublimidade dos ensinos do Christo — de Quem se sentia remordido de despeito, reconhecendo-lhe a elevação espiritual que o amesquinhava e perturbava, invejando-lhe a belleza resplandecente, que lhe causava zelos. Vencendo impulsos de rebeldia e ciume, apparentou humildade e cobiçou a honra de ser um de seus discipulos, sem ter sido escolhido por Elle.

Quiz incorporar-se áquelles satellites do celeste Emissario, para ser, quanto elles, egualmente acclamado pelas multidões. Se Jesus fosse proclamado Rei do povo judaico elle podia tornar-se principe!

Desejava tambem auferir gosos ineffaveis quando morresse, patrocinado pelo Nazareno.

Era insensivel ás predicas do fulgido Mestre, mas insistiu para que fosse admittido como discipulo, afim de galgar supremacia sobre seus compatricios, para ser admirado e applaudido por elles. Vaidoso e ambicionando as glorias mundanas e extra-terrenas, emquanto viu Jesus victoriado pelos que o seguiam maravilhados pelas curas que Elle fazia, no apogeu do triumpho popular, exultou, porque delle estava compartilhando.

Quando, porém, observou que Elle começava a ser odiado pelos sacerdotes e magnatas de Jerusalém, sabendo-o exposto á ferocidade das turbas amotinadas e á vindicta cruel dos autocratas romanos, ao rancor dos escribas e phariseus, todo o seu enthusiasmo arrefeceu de subito, acovardou-se e ficou temeroso por sua vida…

Conjecturou que, preso e condemnado o Mestre, seria elle e seus companheiros egualmente justiçados.

Receioso das leis que, então, opprimiam a plebe, quiz a todo transe, salvar a sua situação, isentar-se de qualquer culpabilidade ou punição. Dominava-o um pavor indefinivel ao lembrar-se de que, consoante o costume d’aquella éra, seria crucificado como os bandidos.

Por algumas horas esteve indeciso, perplexo, inactivo, cogitando o que faria para innocentar-se perante os despotas da Judéa, eximir-se de qualquer responsabilidade como discipulo de Jesus.

Por fim, influenciado por espiritos reveis e perversos — attrahidos por seus pensamentos tenebrosos — deixou avolumar-se em sua mente uma idéa que, a principio, nella bruxoleou timidamente, tão hedionda se lhe afigurou — denunciar e entregar o Rabbi á sanha de seus adversarios!

Seria isso a sua salvação, a prova maxima de sua innocencia. Apresentou-se, pois, no templo em que se achavam reunidos os sacerdotes irritados, que discutiam o meio de livrar-se do Christo, que lhes roubara a paz de espirito, affrontava-os com uma superioridade que os esmagava, verberando contra seus ensinos erroneos, mas que elles julgavam infalliveis. Vendo-os, o Iscariote estremeceu e quiz fugir-lhes aos olhares de falcão, mas elles — como se os penetrassem em sua fronte e lessem os impuros pensamentos que fervilhavam em seu amago — não o deixaram retirar-se.

Fizeram-lhe habeis interrogações, atemorisaram-no com ameaças de supplicios terriveis, se persistisse em seguir o Nazareno.

Vendo-o acovardado, pusilanime, aterrorisado pelos castigos que lhe seriam infligidos se cahisse prisioneiro, cobiçoso do ouro que lhe offereceram, para que fugisse de Jerusalém, triumpharam elles de seus vagos escrupulos e Judas não reluctou mais em satisfazer-lhes os desejos sinistros e ultrizes.

Aprazou com os adversarios do Rabbi que lhes entregaria a victima appetecida naquella mesma noite, se o quizessem.

Foi a seu encontro, mas assim d’Elle se approximou para dissimular o que projectára, tomou attitude respeitosa, e, para que não desconfiasse Elle de seus planos macabros — suppondo illudir-lhe á radiosa percepção psychica, — apparentou cordialidade e maculou-lhe a fronte de neve com um osculo sacrilego que, até a presente éra, ainda é o symbolo da mais repellente traição…

Judas, pois, não foi um predestinado pelo Alto para cumprir uma missão eivada de perfidia.

Praticou um delicto consciente, preconcebido, deliberado intimamente, com pleno conhecimento de causa, impulsionado por seus sentimentos malsãos, assediado pela covardia e pela ambição. E, se assim não fôra, se a sua responsabilidade houvesse sido annulada por uma força indomita e superior á sua, não sentiria atroz compuncção pelo acto vil commettido, como jamais vergastou a consciencia humana!

É certo que o Christo baixou á Terra não só para instruir os povos nas verdades transcendentes como para lhes dar o exemplo vivo de que o soffrimento moral ou physico, representado pelas calumnias, pelos ultrages, pelo madeiro que o fazia vergar de peso e angustia até o depôr no cimo do Golgotha, isto é, o termino de todas as provas, — é a Via Crucis que a Humanidade tem de transitar para conseguir a sua redempção. Tinha de ser Elle prisioneiro e condemnado ignominiosamente ao supplicio inesquecivel que lhe foi applicado. Sabia que os beneficiados se revoltariam contra Elle, mas, não havia ninguem inculcado pelas Leis supremas para o entregar ás mãos dos phariseus como Judas o fez — por meio de um osculo impuro e falso! Jesus, porém, nunca se illudiu com o Iscariote, devassando-lhe a alma denegrida com o seu lucido olhar psychico, qual verdadeira projecção electrica.

Não ignorava que seria trahido por elle desde que lhe decifrou os tetricos pensamentos, que se agitavam no cerebro tenebroso como serpes acossadas pelas chammas vorazes de um incendio devastando florestas…

Não houve, porém, predestinação no acto do mercenario apostolo. Ninguem o compelliu com arbitrariedade para o commetter. Foi apenas seduzido pelos sacerdotes, mas já estava de accordo com elles, senão teria repellido suas indignas propostas. Praticou um acto voluntario, depois de longa reflexão, e a idéa de o denunciar beijando-o hypocritamente foi exclusivamente sua.

Se houvesse predestinação elle seria apenas um instrumento da Justiça divina, que não o faria expiar um delicto involuntario, forçado por circumstancias superiores ao seu livre arbitrio. Mas, assim não succedeu, pois o Iscariote nunca foi sincero e fiel a Jesus; tinha zelos de sua belleza e superioridade psychica, desejava partilhar de sua gloria para se ver acclamado pelas multidões, e, quando o viu em perigo imminente quiz desvencilhar-se d’Elle para evitar identico supplicio, ao que lhe estava reservado. Praticou, pois, um acto reflectido e consciente. Nunca aspirou melhorar suas condições psychicas e deixava se dominar pelos instinctos inferiores. Tinha a alma eivada de sentimentos nocivos de cobiça, inveja, insidia. Só conheceu toda a extensão de sua perfidia quando, entregue o impolluto Nazareno á odiosidade do povo ignaro e á barbaridade das autoridades romanas, a consciencia implacavel, — desperta pelos tormentos da corrupção, que nada mais é do que a voz dos austeros arautos sideraes, que vibra no imo dos delinquentes como um clarim estridulo, exprobando-lhes o crime perpetrado, — açoitado por lategos de chammas, insurgiu-se contra a hedionda acção que elle commetteu…

Que conceito far-se-ia da equidade do Summo Juiz se este impellisse as creaturas á pratica de uma iniquidade e depois as punisse severamente?

Não é assim que pensam os que acreditam no dominio de Satanaz e seus sequazes?

Ó vós que assim imaginaes, aboli de vossas mentes essas idéas erroneas, pois, conservando-as, fazeis um juizo ultrajante a respeito da integridade do mais justo e incorruptivel Magistrado do Universo — Deus!

Na éra da corrupção em que Jesus desceu a este planeta, o Eterno não ignorava — na sua presciencia infinita — que o seu fulgido Embaixador teria de soffrer atrozmente, ser martyrisado, vilipendiado, trahido, crucificado; que as imperfeitas leis humanas teriam de attingil-o immerecidamente, mas não predestinou quem quer que fosse para praticar uma vileza, qual o fez o Iscariote. Sobre este, pois, recahiu a maior responsabilidade dos tormentos por que passou o Pastor celestial, visto que a offensa é sempre muito grave quando effectuada com escarneo e attinge algum bemfeitor. Judas possuia o livre arbitrio — como todos os seres que não se acham com as faculdades mentaes obliteradas pela loucura ou pela barbarie, — portanto a sua acção foi espontanea, responsavel, passivel do Direito divino.

A traição é punida severamente pelas Leis sideraes. Repugna, pois, ás almas integras e confiantes na Justiça celestial o imaginar que o Deus escolhesse determinada creatura para atraiçoar o seu proprio Enviado, entregal-o ao furor do populacho sanguinario e, cumprido o seu cruel destino, — para o qual fora impulsionado rudemente, — ser entregue aos abutres do remorso e das torturas perpetuas!

O Iscariote, nesse caso, seria a victima e não o réu e o Direito deifico não passaria de um mytho…

Não, não ha predestinados para o Mal. O acto que elle commetteu foi espontaneo e imprevisto por seus mentores espirituaes até que o concebeu.

Não foi compellido a effectual-o por alguma sina fatal e implacavel — o que seria a negação do livre arbitrio e da Equidade divina. Realisou-o dominado pela inveja e pelo temor de ser condemnado juntamente com o lucido Mestre. Para evitar o que receava foi que elle o trahiu. Suppoz innocentar-se perante o impolluto Rabbi e poder gozar, longe de Jerusalém, o fructo de sua aleivosia e iniquidade, pois não contava com o arrependimento e remorso que são o começo da Justiça suprema. Fustigaram-lhe, porém, a consciencia maculada, os invisiveis azorragens, que não o deixavam mais fruir sequer um atomo de tranquillidade, buscando no suicidio — outro abominavel crime — o esquecimento á sua incommensuravel culpa, que só lhe deu treguas quando, em seculos de expiação, foi cabalmente reparada.

Eis como deveis interpretar o feito do Iscariote, não accusando, nunca, a Providencia — o emblema da rectidão indescriptivel — e que jamais constrangeu alguem a delinquir para depois o sentenciar em nome do Summo Juiz.

Parte II

Não era meu intento referir-me a este doloroso assumpto — o delicto maximo do Iscariote, — desejando que o véu do olvido o envolvesse, mas não podia silenciar neste momento, porque não devemos permittir — paladinos que somos da Verdade e da Justiça — que a Magestade impolluta seja accusada sem fundamento, pelos que ignoram a integridade de seus decretos imparciaes e admiraveis.

Não devo, outrosim, depois de patenteada a culpabilidade do mercenario Judas, negar-lhe a defesa a que tem jus, pois elle já expiou, em muitos seculos de rispidas provas, as consequencias de sua inesquecivel falta. Tantos annos decorridos após a tragedia do Golgotha, o seu delicto — para muitos imperdoavel — acha-se de todo reparado. O execravel trahidor dos tempos idos é, presentemente, um espirito evoluido, acrysolado pela dor, um dos Emissarios do Creador e aqui já desempenhou meritoria missão de devotamento, submissão ás Leis sideraes, resignação, tendo padecido quasi todos os martyrios infligidos a Jesus, pois que escolheu provas identicas ás d’Elle, para abreviar a sua redempção…

Vós o conhecestes com o nome de Joanna d’Arc, a heroina de Orleans, a suppliciada de Ruão, cuja existencia e cujos padecimentos têm notaveis semelhanças com os do Nazareno. Comparemol-os. Ambos foram libertadores, um de almas, outro, de povos.

Ambos conheceram a ephemera gloria terrena e, logo após, tremendas decepções.

Um, teve entrada triumphante em Jerusalém, outro, em Orleans.

Ambos foram trahidos, abandonados, em transe afflictivo, pelos que beneficiaram, julgados cavilosamente, vilipendiados, vendidos, terminando suas missões terrenas com atrozes tormentos… Não estranheis, pois, que o Iscariote seja a mesma alma redimida de Joanna d’Arc. Sabeis como finalisou ella sua dolorosa existencia planetaria na França, tendo escolhido, volutariamente, acerbas penas para resgate completo de suas culpas.

Desde o instante em que a consciencia de Judas foi flagellada no pelourinho do remorso, e ao passo que ascendia espiritualmente, melhor comprehendeu a vastidão do delicto que commettera contra Jesus e quiz reparal-o do modo heroico por que o fez….

Foram essas as derradeiras provas solicitadas pelo falso discipulo do celeste Enviado, — já então um espirito affeito ao Bem e á Virtude, o da Pucella de Domremy, — e, por isso, antes de as consummar, as vozes de seus amigos invisiveis — quasi todos constituidos por seus companheiros da Palestina, — prometteram-lhe uma esplendida victoria, que não era da Terra, como suppuzeram seus sarcasticos algozes, mas do Empyreo, isto é, dos mundos radiosos onde se abrigam os evoluidos.

No transcurso de quasi dois milennios occorreram as duas tragedias — a do Golgotha e a de Ruão — e é tempo de dizer-vos:

“ — Perdão e esquecimento para os crimes de Iscariote, gloria á heroina de Domremy, a mesma alma transfigurada, redimida, illuminada, em dois corpos diversos!”

Todos, nós, irmãos, como o Iscariote, temos tido as nossas quedas tremendas, os nossos desvios tenebrosos da senda da Virtude; o Senhor do Universo, porém, na sua generosidade incommensuravel, não nos recusa os meios de redempção. Tambem os concedeu ao trahidor do Rabbi — que lhe estendeu a mão fraterna, tirando-o do torvelinho dos erros e do remorso e elevando-o ás alturas radiosas da Creação e retribuiu o beijo da perfidia pelo osculo santo do perdão. Redimido, acrysolado seu espirito pelos embates da dor e pela pratica dos mais penosos deveres, é elle, ha muito, uma das mais rutilas glorias da humanidade e um dos mais brilhantes servos da Magestade suprema!

Allan Kardec.

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Caliban Kalitz

"No Man, when he has lighted a candle, cover it with a vessel, or put it under a bed; but set it on a candlestick, that they which enter in may see the light."