Um a menos, um a mais

Camila Laguzzi
5 min readAug 10, 2016

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Menos uma. Restam agora quatro meninas à minha frente, concentrando todas suas forças em controlar a euforia e os trajes de banho em seus corpos miúdos. Ainda assim, vez ou outra, escapa um pulo, um riso, um grito e até uma nádega.

Esticando-se o máximo que podem, elas se apoiam apenas na ponta dos pés para conseguir ver além das barreiras. Eu, de maiô nadador fluorescente, enxergo com tranquilidade por cima de suas cabeças, apesar de termos a mesma idade. Vejo a piscina e, mais adiante, o toboágua. Mas nem isso distrai minhas mãos. Prisioneiras uma da outra, elas se espremem, entrelaçadas próximo ao coração, suadas e frias.

Conto a respiração.

Conto os azulejos na parede.

Conto as meninas na minha fila. Apenas as que estão à minha frente. Atrás? Tanto faz.

Menos uma menina que foi e mais uma que ficou impedida, por alguma razão, de entrar na área da piscina. Restam duas.

Sinto um incômodo na barriga e aperto o bumbum. O menino hiperativo da outra fila grita:

— Suco de bunda!

O amigo-sombra complementa:

— Bunda de Jeca!

Ambos apontam em direção ao meu traseiro. Minhas mãos ficam ainda mais coladas e minha respiração acelera. Quase peidei.

Não foi fácil vestir o maiô nadador no conforto do cubículo do vestiário lotado. A ideia de ter que retirá-lo agora, com todo esse suor nos ombros, esperando para enroscar a lycra na pele, só não me assombra mais que a cara amassada da tia imperativa encarregada de inspecionar as meninas na minha fila. As tetas penduradas quase tocam o umbigo. Não fosse pelo elástico improvisado, feito com uma tira de meia calça cor de pele, mantendo as alças do maiô amarradas juntas nas costas, tenho a certeza de que essas tetas tocariam o chão. Ou pior…

— Bota o pé pra cima. Abre os dedos. O outro. Abre os dedos. As mãos. Atrás das orelhas. Vira de costas. Levanta o cabelo. Abre a boca. Cospe o chiclete. Liberada. Pode ir.

Menos uma. Mas outra menina irritantemente feliz ainda me separa do êxtase do pulo na piscina. Mais um minuto de terror.

— Pé pra cima. Abre os dedos. O outro. Pode parar. Deus é pai! Maria das Dores, venha cá. Mais uma com frieira. Leva logo pra lá. Vai com a Maria, meu bem. Desse jeito não dá pra entrar na piscina.

O tempo parou naquela palavra sombria de quatro sílabas, cuspida com desgosto pra fora da boca de fumaça e dentes amarelos da tia do imperativo. Confrieira, a terrível hidra que vive em nossos pés, transformando um problema em dois, envenenando a diversão e fazendo-a escorrer, literalmente, por entre os dedos.

— Próxima!

Tudo o que vi e ouvi depois foi dor. A dor no berro ardido, no medo, na frustração e na timidez. A dor nas lágrimas em bica. A dor em todo aquele chilique irritantemente inconsolável.

— Próxima!!!

Eu ainda seguia o drama da menina com os olhos e nervos em terror, quando o menino hiperativo da outra fila e seu amigo-sombra me empurraram em sincronia. Cada um com uma mão estirada num estalo maldoso em cada asa das minhas costas.

— Vai, bunda de Jeca!

Franzi a testa e lancei meu olhar mais criminoso para eles. Quando girei o pescoço de volta pra frente… o trauma: uma teta murcha tocou a minha cara, encaixando-se perfeitamente acima da bochecha e dentro do meu olho direito. Senti o bico dela na minha pupila. Recuei com ânsia e arregacei o colo do maiô, esfregando-o com força por todo o meu rosto.

— Vem logo, menina! Pé pra cima. — Ordenou a tia do imperativo, puxando-me pelo braço e me posicionando com firmeza diante dela.

— Calma! Você está me machucando.

— Vai, pé pra cima e abre logo os dedos.

— Eu vou cair.

— Agora o outro. Abre os dedos.

Se a hidra “Confrieira” também vive em meu pé, não posso deixar que seja vista. Por isso, puxei os dedos rapidamente, como se tocasse as teclas de um piano de uma ponta a outra. Já que era agilidade que ela buscava, foi o que eu lhe dei.

— Vai. Pode seguir.

As pernas demoraram alguns segundos para responder, mas o sorriso foi imediato. Ergui a cabeça e dei início à caminhada da vitória. Cinco passos me separam da libertação do túnel das aflições para um mundo doce de sol, piscina e Coca-Cola. Já posso sentir a água a minha volta, lavando todo o meu suor e agonia.

Menos um. Restam quatro passos.

Que barulho é esse? Não havia notado nada, até agora. Será que todo esse burburinho já estava aqui desde o princípio. Foco. Falta pouco. Reforce o gingado confiante dos braços, o passo firme, o queixo erguido e vá em frente.

Menos dois. Restam três passos.

O burburinho começou a ganhar nitidez e se transformou em um emaranhado de vozes entre ruídos. Já consigo diferenciar o som da água jorrando pra fora da piscina quando um salto torto culmina em uma esplendorosa barrigada na superfície da água, das bolas de plástico quicando entre poças, cadeiras de sol e madames acomodadas de bruços em suas esteiras de vime esticadas num vão seco do chão. Enquanto algumas desamarram o cordão do biquíni para não marcar o bronzeado, a maioria segue à moda da tia do imperativo.

No toboágua, um menino desliza eufórico e mal percebe o outro logo abaixo. Os dois afundam e eu... eu nem quero ver o final. Abro um olho de cada vez, mas já não consigo identifica-los no meio de tanta gente.

Menos três. Esse passo já foi bem mais lento e curto que os anteriores.

Restam dois passos.

No trecho final do túnel o sol forte já toca o piso, que está tão quente que me faz transformar o próximo passo em um pulo.

Menos quatro. Resta um passo.

Splash! Aterrissei dentro de um buraco retangular. A água dentro dele está morna. Olho pra baixo e vejo fiapos de grama e fios de cabelo flutuando junto a um pé direito de um chinelo da Barbie. Que bom que não é o Rider azul marinho, que está salvo na sacola da minha mãe que está… Cadê ela?

Aí está ele novamente! O incômodo na barriga. Apertei o bumbum e quis tirar os pés imediatamente de dentro daquele buraco, mas a lembrança do piso em brasa ainda é recente e não há sinal de sombra nas proximidades. Vou ficar aqui.

— Sai pra lá, bicho nojento.

Uma libélula é arremessada num tapa violento e risca faísca em minha testa. Não consegui segurar o pum dessa vez. Levei uma das mãos fechadas em direção à boca e tossi três vezes. Foi o suficiente pra disfarçar o som, mas não o cheiro. Saí correndo pela primeira brecha que se fez entre a multidão até ser freada pelos braços de papai.

— Onde você pensa que vai? Se pular na água agora fica com a cara torta. Senta na cadeira e fica quieta enquanto eu vou dar uma nadada. É só por meia hora. Depois vamos embora.

Encolhi os pés pra cima da cadeira e silenciei. Piso quente, pulos, gritos, bolas, tetas, tudo exceto água fresca e Coca-Cola, que não é permitida na área da piscina.

Um minuto a menos. Vinte e nove minutos pra tudo acontecer…

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