Ebulição, secura e medo

Camila Leite
3 min readMar 20, 2020

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De encontro comigo mesma — relatos de uma quarentena: DIA 2

Enquanto o mundo borbulha lá fora, ele borbulha aqui dentro. Eu sinto uma fenda se abrindo, pra gente cair e pra gente subir. Ao mesmo tempo. Quando eu to na caída, é medo, é angústia, é querer sem fim sair desse lugar. Eu percebo minha feição enrijecendo, meu corpo secando. Literalmente. Esses dias senti uma secura interna, que dá-lhe água e óleo, pela boca, pela pele, nas narinas, nas orelhas, até nos olhos, e nada. Na Ayurveda é distúrbio de vata. Vata agravado pelo medo.

Mas quando eu to na subida, é relaxamento, é alegria sem causa. É uma vozinha dentro de mim que diz que vem algo muito bom pela frente. É a sensação de um sonho que pode se tornar realidade, de reconstruir a forma como vivemos nesse mundo.

Eu lembro que quando pequena eu tinha um pensamento recorrente, que era: e se a gente criasse um dia em que o dinheiro deixasse de existir e todo mundo pudesse entrar na loja que quiser e pegar o que quiser? Eu imaginava um certo caos e desespero das pessoas para garantir o que queriam, mas sentia um prazer imenso pela possibilidade de cada um poder conseguir o que queria.

É o mesmo prazer que sinto agora percebendo o caos que chega mas que depois há de dar algum conforto. É uma lógica ilógica que começa a se desfazer, e o dinheiro dando espaço para a vida de verdade. A gente vem recebendo chamados constantes pra refazer essa lógica, com muita gente e ecossistemas já há muito adoecendo. Mas precisou de um grito forte e alto, num adoecimento em escala exponencial. A que ponto chegamos, não é mesmo?

Mas aqui nem tudo são flores. O que escrevi agora é um lugar de confiança e conforto que acesso com menos frequência do que gostaria. É um portal, que preciso encontrar a porta, a chave, abrir, entrar e ficar. Mas não tenho podido ficar. Eu vejo, eu sinto, eu vou embora com o grito do desespero e do caos que ressoam por todos os lados em que vou no mundo digital — a minha única ponte com aquilo que não é minha casa, que não é eu mesma e minha angústia. Esse escape é também a minha possibilidade de protagonismo, de engajamento e de ação para alguma transformação. Onde sou tragada é também onde tenho a fina esperança de cumprir algum papel, de ser autora de reflexões e de sensibilização para a vida. Num momento tão delicado, parece que eu nunca poderia ser tão necessária. Eu quero me sentir necessária.

Há sem dúvidas um quê de romantismo nisso tudo. Por trás, um buraco dentro de mim. Um buraco fundo, fundo. Que eu tento tapar à toda custa. Ele encontra com os buracos que se abrem no mundo e em cada uma das pessoas que nele habita e me leva cada vez mais fundo dentro deles. E eu já não sei em qual buraco estou, se é o meu, se é o da minha mãe, se é o do mundo. É tudo isso que me faz secar, e realmente não adianta água nem óleo nenhum. É um medo tremendo da escassez. Um medo ancestral, e eu diria global, da falta. Que me chama pra cair para poder subir. Sem mais escapatória, é isso.

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