Sopro de vida nova
De encontro comigo mesma — relatos de uma quarentena: DIA 11
Bom, mais um lado da rarefação dos meus escritos tem sido a falta de tempo. Não bastasse as aulas da faculdade terem retornado via Zoom, o que se mostra bom e ruim ao mesmo tempo, aqui em casa entramos numa correria doida pra encontrar um apartamento, porque o nosso foi alugado e o prazo de entrega é até o final do mês.
Parte dos dias foram rolar páginas e páginas de imobiliárias, ver foto atrás de foto, discutir pontos de vista, fazer visitas apuradas sob a iminência da covid, se entusiasmar com alguma possibilidade e se frustrar em seguida, por diversas razões que faziam a coisa minguar. Foram dias de muita angústia e nervos à flor da pele, com muitos desentendimentos dentro da família, sempre alguém descontando alguma coisa no outro. Até que resolvemos ir pra um Airbnb temporário, enfiar os setenta metro cúbicos de pertences num guarda móvel e esperar encontrar a casa que merecemos. Melhor decisão da vida! Na madrugada antes dessa decisão acontecer, à noite, minha mãe tinha resignadamente decidido se mudar pra um apartamento que ninguém tinha gostado muito, mas que era o que tínhamos. Quando ela me deu a notícia meu coração despedaçou — eu não conseguia vislumbrar a possibilidade de morar numa região central, com tantos prédios colados, sem respirar, sem ver árvores, sem sol, sem céu. Eu fiquei arrasada.
Eu venho num movimento de querer me aproximar da natureza, com o sonho de sair de São Paulo, e morar naquele apartamento, por mais transitório que fosse, ia na contramão. Pareceu desesperador. E entrei num luto profundo por deixar o nosso apartamento, todas as belezas que ele tem, todas as memórias. Me derramei em lágrimas, minha mãe arrasada de me ver assim, já infeliz com seu destino, as duas procurando aceitar e seguir em frente. Então eu fui deitar e tentar dormir, mas só chorava. Aí por volta da meia noite minha mãe entrou no quarto e me chamou pra falar com ela. Eu saí e ela toda fofa e feliz me deu a notícia, num abraço leve e a gostoso, que a tempos eu não sentia. Falou alguma besteira e a gente caiu numa gargalhada. Minha mãe tem um lado palhaça muito gostoso, mas que desaparece no nosso mundo tarefeiro, e quando ele reaparece, eu amo. E com ele ali, junto dessa decisão, junto da minha mãe, senti um sopro de liberdade. De seguir no fluxo da vida mesmo, sem pressa de alguma coisa, de deixar ela cuidar e levar. Me animei muito de ir morar num Airbnb eu, ela e o Manu. Nada como novos ares e deixar a vida se revelar. E sei como pra minha mãe foi difícil se jogar num lugar ainda de incerteza com relação ao destino final dela — se é que há um né. Admiro a sua coragem e fico feliz da leveza que isso trouxe, principalmente dela se possibilitar tamanha leveza.
E o nosso apartamento, é uma história longa de como chegamos a esse ponto. Há muitíssimos anos ele está a venda e/ou para alugar, às vezes um, às vezes outro, às vezes ambos, a depender da lógica que meu pai estabelece. Ele era o tipo de imóvel batido em todos os sites de imobiliárias, que ficou encalhado, e nunca achei que ia desencalhar, porque eram questões de inúmeras ordens para a concretização de algo, a não ser por um milagre. Pois não.
Começamos a morar aqui há uns 22 anos atrás, um tempão. Os meus pais o alugavam e em certo momento quiseram comprar, mas não sei porque, a proprietária não tinha interesse na venda. Até que um belo dia ela resolveu vender e então meus pais compraram, imagino que felizes da vida — eu infelizmente não me lembro deste dia. O azar, ou o karma, ou seja lá como a gente pode chamar isso, foi que pouco tempo depois meus pais se separaram e o imóvel ficou aí no meio deles.
Eu acho que é karma. E sempre pensava quando criança — eu tinha 12 anos quando eles se separaram — que eles eram uns burros de comprar quando estavam brigando. Eles não previam que o casamento podia se desfazer? Ou será que não queriam ver e deram esse passo numa doce ilusão de que tudo seria lindo na vida em família? Eu não sei. Mas passados 17 anos, essas perguntas ainda ecoam em mim. E acho que inconscientemente meus pais queriam permanecer vinculados mesmo, apesar de todo sofrimento e revolta que isso traz. Existe um conforto na codependência deles.
Como toda boa separação, eles começaram a brigar por causa de dinheiro e o apartamento seria a finda resolução desse pesadelo na divisão de bens entre as partes. Mas aí como eu falei, o apartamento encalhou: ninguém queria se liberar para seguir suas vidas em frente. E mais tarde, mais madura no meu processo terapêutico, pude investigar como isso chegava até mim. Como essa dinâmica se estende e no mais profundo toda a família se segurando uns aos outros em laços de apegos e dependências, para não crescer e não seguir a própria vida. Muito profundo mesmo. Percebi que muitas dificuldades que eu tinha em me encontrar profissionalmente, de ganhar meu próprio dinheiro, de dar conta da vida, vinham disso, de um querer eternamente não crescer e ficar junto deles. Percebo como esse medo é compartilhado e antigo também. Posso ver ele por muitos cantos da família estendida.
E nesse momento tão delicado que estamos vivendo, que nos impele a uma e muitas transformações, ser agraciados por esse fluxo de liberação é uma conquista tremenda. É vitória mesmo. Eu particularmente reconheço a minha vitória, eu vejo o fruto do que eu venho plantando há muito e muito tempo, de me liberar e seguir meu caminho. Eu vejo a possibilidade de, no amor e na amizade, nos apoiarmos para termos o que queremos, o que precisamos e merecemos, de cada um seguir a sua vida, seus sonhos, num lugar gostoso, no que é seu, mas podendo compartilhar tudo isso juntos. Estar de volta em casa justo nesse momento é construir tudo isso com meus pais e minhas irmãs, num sopro de liberdade e vida nova, que chega para todos, talvez mansa e timidamente, ou com receios, mas com muito ainda a nos agraciar. E eu desejo no mais profundo do meu coração que possamos seguir livremente nesse fluxo, que possamos ser livres e felizes cada um no que é seu, sempre juntos.