É tudo Puta e Vadia
Porque esses xingamentos só reforçam a política patriarcal a que somos submetidas.
Hoje, volto aqui para falar mais uma vez sobre o corpo feminino — sim, esse aí que você pensa que é seu — e também para falar sobre uma coisa que precisa acabar: mulher ofendendo mulher.
Incrível, mas isso ainda existe.
Tudo começou lá atrás, no final da Idade Média, quando as mulheres começaram a perder os direitos sobre os seus corpos, trabalho, vida social, poder de decisão sobre as suas próprias vidas e até a sororidade — até então, as mulheres se ajudavam, trabalhavam juntas, sustentavam umas as outras e seus filhos.
Política Sexual
No final do século XV, a Europa era só desgraça. Com mais da metade da sua população dizimada pela Peste Negra, o sistema feudal em crise, as revoltas dos trabalhadores que perderam suas terras e em meio a tantos outros motivos políticos e econômicos que levaram a burguesia e a nobreza ao desespero; as autoridades lançaram uma maliciosa política sexual para abafar o caos. A ideia era distrair os jovens e rebeldes com sexo gratuito, transformando os conflitos de classe em hostilidade contra as mulheres.
Na França, temos a descriminalização do estupro nos casos em que as vítimas eram meninas pobres que trabalhavam como criadas e lavadeiras, criando um clima misógino que insensibilizou a população diante à violência praticada contra as mulheres. Porém, era um preço bem baixo a se pagar diante dos prejuízos causados por uma revolta. Além disso, a Europa não podia matar mais ninguém, já que a Peste Negra e as revoltas anteriores já tinham matado gente demais.
Já as mulheres que sofriam a violência, pagavam o preço dessa política com sua reputação. Uma vez estupradas, eram excluídas da sociedade e tinham suas vidas arruinadas, tendo que mudar de cidade ou se render a prostituição para se sustentar.
Com tanta puta disponível e o sucesso em dissolver os protestos dos trabalhadores com a política sexual, a solução foi institucionalizar a prostituição. "Assim, entre 1350 e 1450, em cada cidade e aldeia da Itália e da França foram abertos bordéis geridos publicamente e financiados por impostos". (FEDERICI, 2017, p.105)
Sim, a prostituição era vista como um serviço público e até mesmo a Igreja chegou a legitimar a atividade. A essa altura, a Igreja estava disposta a tudo pra conseguir manter a sua soberania, né?!
Desvalorização do Trabalho Feminino
Entre 1620 e 1630, com o ápice da crise populacional na Europa e em suas colônias, temos a primeira crise econômica internacional. Em O Calibã e a A Bruxa, a autora Silvia Federici sustenta que a crise populacional dos séculos XVI e XVII tenha transformado a reprodução e o crescimento populacional em assuntos de Estado e objetos principais do discurso intelectual. Ela ainda vai além, dizendo que esta crise intensificou a perseguição às “bruxas” e também os novos métodos disciplinares que o Estado adotou nesse período, com a finalidade de regular a procriação e quebrar o controle das mulheres sobre a reprodução. É nesse momento que uma nova política ganha espaço, o Biopoder.
Nesse momento, temos o controle do Estado sobre a vida sexual e os corpos dos indíviduos, a Reforma Protestante e o desenvolvimento do mercantilismo levando todas as mulheres à total degradação. Com a máxima de que um Estado rico é um Estado populoso, o mercantilismo se desenvolvia em alta velocidade para aumentar a força de trabalho e o exército.
Para sustentar essa política, todos os governos europeus intensificaram as formas de vigilância sobre as mulheres grávidas e as penas para contracepção, aborto e infanticídio ficaram mais severas. Nesse mesmo período, as parteiras começaram a ser marginalizadas e foram substituídas por médicos homens.
Na França e na Alemanha, as parteiras tinham que se tornar espiãs do Estado se quisessem continuar com a prática. Esperava-se delas que informassem sobre todos os novos nascimentos, que descobrissem os pais de crianças nascidas fora do casamento e que examinassem as mulheres suspeitas de ter dado à luz em segredo. […] O mesmo tipo de colaboração era exigida de parentes e vizinhos. Nos países e nas cidades protestantes, esperava-se que os vizinhos espiassem as mulheres e informassem sobre todos os detalhes sexuais relevantes: se uma mulher recebia um homem quando o marido estava ausente, ou se entrava numa casa com um homem e fechava a porta. Na Alemanha, a cruzada pró-natalista atingiu tal ponto que as mulheres eram castigadas se não faziam esforço suficiente durante o parto, ou se demonstravam pouco entusiasmo por suas crias. (FEDERICI, 2017, p.178)
Na nova divisão sexual do trabalho, as mulheres foram escravizadas, tendo seus úteros transformados em territórios políticos e a procriação à serviço do capitalismo.
Agora, as mulheres se tornaram totalmente dependentes de um casamento e de um homem para sobreviver. Elas perderam os trabalhos que exerciam antes, sobrando apenas o serviço doméstico não remunerado e quando faziam esse trabalho fora de casa, não ganhavam o suficiente para se sustentar.
As mulheres solteiras eram expulsas dos vilarejos e era ilegal abrigá-las. A perda de poder com relação ao trabalho assalariado junto com a perda das terras, deixaram as mulheres sem recursos e mais uma vez, foram levadas à prostituição.
Assim que a prostituição passou a ser a principal fonte subsitência para as mulheres excluídas, a política em relação a atividade mudou e a prostituição passou a ser ilegal.
"Aquelas que ousaram trabalhar fora do lar, em um espaço público e para o mercado, foram representadas como megeras sexualmente agressivas ou até mesmo como putas ou bruxas." (FEDERICI, 2017, p.190)
Pega Essa Visão
Olha quanta coisa está por trás de um xingamento como "puta", "vadia" ou "bruxa"?! Olha quanto preconceito a gente carrega até hoje por conta de motivos que desconhecemos, ou que não são nossos, só porque não paramos para pensar. Por ignorância.
Quando você denuncia um nude no Instagram, esculacha a mina que ficou com teu boy, ou xinga a miga que está a vontade para exibir seu corpo; você está reproduzindo sem noção esse comportamento patriarcal e misógino que desgraçou a vida de milhares de mulheres, como vimos.
Essa vigilância e exploração em cima do corpo feminino que não cabe na construção dessa nova proposta de mundo que estamos construindo, essa falta de união que só nos enfraquece politicamente, o reforço da figura da esposa perfeita que cuida da casa por amor, a submissão e infantilização da mulher, "a puta que dorme com um monte de gente", "a vadia que não tem marido e filhos"…
Gente, chega dessa merda.
Depois desse resumo, podemos concluir que: puta, bruxa e vagabunda são mulheres rebeldes que não serviam ao Estado, que encontravam maneiras de se sustentar sem precisar de um homem. Que lutavam pra existir sem se escravizar para um homem. Resistência.
Sendo assim, sejamos todas putas e vadias.
Para este texto usei como referência apenas o livro O Calibã e a Bruxa — Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva (Ed. Elefante), de Silvia Federici. Esse livro é muito bom e recomendo como literatura feminista básica. Você vai se surpreender com as coisas ela vai te ensinar sobre o papel fundamental que as mulheres exerceram na formação do capitalismo.
Federici também inspirou a artista argentina Ailen Possamay, que começou a pintar mensagens de protesto pelas ruas — “ISSO QUE CHAMAM DE AMOR É TRABALHO NÃO REMUNERADO”. Usei uma das suas imagens aqui no post.
A Marcha das Vadias acontece no Brasil desde 2011 e luta pelo fim da violência de gênero e da culpabilização da vítima.