Alquimia
Mas não é tudo uma grande viagem na maionese?
Era fevereiro, mas fazia frio. Em uma noite estrelada numa cidade pequena do extremo austral, ele tentou me mostrar a constelação de Sagitário no céu.
“Aquelas três estrelas ali do lado direito, tá vendo? Elas formam a ponta do arco.”
“Aham…”
“E aqueles três pontos ali embaixo, tá vendo? São as patas do centauro.”
“Hum…”
“Tá vendo mesmo?”
“Mais ou menos…”
Eu tentei, apertei os olhos, recorri à imaginação, me forcei a visualizar o que pude. Mas não vi nada. Só pontos brilhantes esparsos, sem nenhuma ordem definida.
“Tá difícil de ver.”
“Deixa eu te mostrar a foto no celular.”
Ele digitou rapidamente no buscador e abriu a imagem. Ainda assim, não fui capaz de estabelecer qualquer relação entre aquelas estrelas aleatoriamente distribuídas no espaço-tempo. Como povos antigos visualizaram não só essa, mas milhares de outras constelações e imagens?
Depois de uns minutos, me resignei à impossibilidade do aprendizado ancestral de contemplar o céu. Não compreendi a mensagem dos astros. Ficamos em silêncio, ignorando o frio, enquanto eu disfarçava a frustração.
“Tu não acha muito louco a gente literalmente enxergar o passado quando olha para o céu?”, perguntei, abruptamente empolgada.
“Acho”, ele respondeu, bastante contemplativo. Eu soube imediatamente que nunca esqueceria a feição de admiração e espanto dele olhando o céu naquela hora.
Sempre gostei como qualquer pergunta aleatória que eu fizesse nunca era um problema — ele embarcava em todas as conversas sem fio condutor algum que eu puxava. Como um bom viajante hermético aberto às surpresas, cada uma era uma nova possibilidade de aprendizado e reflexão, entregue como a única oportunidade possível naquele momento. “Boa pergunta, quero falar mais sobre isso”, ele dizia, e eu sabia que tinha inquirido a coisa certa.
Incapazes de continuar ignorando o vento, entramos na cabana em seguida, sabendo que o relógio cronológico corria contra a viagem de final de semana em que escapamos de uma metrópole. Acima de tudo, sabíamos que Cronos limitava a duração do que tentávamos desenhar entre a gente, que o prazo de validade aproximava-se da expiração nessa linha do tempo finita.
Enquanto isso, fingíamos que não havia um fantasma que nos acompanhava no café da manhã e agíamos como se não fosse estranho alcançar o bule àquele intruso. “Quem o chamou?”, eu me perguntava. “Achei que já o tivesse enterrado há anos…”, ruminava, sem proferir nada em voz alta. Mas o defunto dormia no quarto ao lado e sorria amarelo, muito encabulado, quando me via escovando os dentes pela manhã.
Não surpreende que as reticências fossem parte de todas as nossas frases, em uma incapacidade dolorida de entrega mútua, na decisão nem sequer proferida de não usarmos rótulos.
Como quem liga pontos imaginários e não vislumbra qualquer ordem no caos do Universo, perdi mensagens importantes naqueles meses, encarcerada em um calendário gregoriano rígido. Muitas mensagens não encontraram eco. Quase todas, na verdade. É que primeiro a gente vive. Depois, a gente compreende (e também nem sempre).
No dia da nossa despedida, quando ele seguiu o próprio caminho por estradas latinas, fui à minha primeira aula de skate. Saí de um portal e entrei em outro, juntando os cacos de vários “e se” enfileirados e terminando com um grande entusiasmo momentâneo pela vida nas mãos.
A filosofia hermética postula: “assim em cima como embaixo”. Meu próprio Hermes, projetado em outra pessoa, sabe inconscientemente — e segue essa lei sem espernear. Quando terminei com a carta “A Estrela” do Tarot de Marselha em mãos, após uma leitura sobre minha vida, as tendências arquetípicas que apontavam para o futuro já me alertavam: coragem e confiança em um plano maior. Paciência, serenidade, devoção ao desconhecido. Há projetos maiores, mas há que se manter em reverência ao que não podemos nomear. É preciso alquimia nessa jornada do herói individual. (Mais alquimia? Já não foi o suficiente? Esperneei.)
Ainda hoje, porém, vislumbrar uma constelação no meio desses pontos esparsos é difícil, sobretudo quando o salto no vazio exige coragem profunda, quando tudo o que não é ofusca o que é. Mas enumero sincronicidades, tentando estabelecer que não sou só um amontoado de células perdida no Universo. E pergunto retoricamente: não foi estranho eu tatuar uma arqueira no braço direito meses depois, não foi uma coincidência hermética o suficiente estar envolvida com um homem encarnado no arquétipo de Hermes, não é muito óbvio ele comprar um arco e uma flecha antes de sair viajando de novo, não permanece absolutamente incontestável aquilo naquele momento naquele dia naquela noite naquele final de fevereiro frio em pleno verão? O que me diz Sagitário? Como confiar que assim em cima como embaixo haverá uma ordem? Não é tudo somente uma grande viagem na maionese?
Dizem que a mudança nem sempre vem acompanhada de trompetes, fogos de artifício ou serpentina. Quase sempre é de um silêncio estrondoso, confusão mental e uma sirene esparsa ecoando ao fundo. Talvez por isso eu tente ler os astros, esboce uma ordem caótica para ordenar o caos e contemple as estrelas com uma fé arranhada. Até porque não me restam muitas outras opções e a vida concreta que me impelem a seguir também não me contempla.
Posso não ver a constelação, mas ela está lá — viram antes de mim, verão depois. Aos trancos e barrancos, sou obrigada a deixar o arco e a flecha de lado, ao menos por ora, executando mais e mais alquimia. Espero o momento oportuno de ação, disfarçando a falta de paciência, enquanto derramo um jarro de água na terra e outro de volta ao rio, sendo guardada por milhares de estrelas e, com uma frustração quase infantil, não enxergando tramas em nenhuma.