Eu quero virar uma planta

Cândida Schaedler
4 min readOct 3, 2023

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A integração da minha energia feminina tem sido o grande desafio do ano, evidente na estação da jornada — desconfortável — na qual me encontro

Disparei a frase do título, num desabafo raivoso, durante uma consulta com minha psicóloga, há dois anos e meio. Eu estava exausta, no sentido mais profundo da palavra. Cansada física e mentalmente, com os estoques de energia minguando há meses. Eu já tinha uma coleção de burnouts na estante — coisa da qual não me orgulho nem um pouco — , e não tinha nem 27 anos na época. Quando a crise chegava destruindo tudo, eu já a cumprimentava como velha conhecida. “Ah, mais uma. Ok, vamos lá.”

Mas claro que não aguentei. Em desespero, proferi em alto e bom som: “Eu quero virar uma plantaaaa!!!”.

Minha terapeuta retrucou, com um leve sorriso: “Fala de novo para tu ouvir bem.” Eu precisava repetir o desejo, confessado de forma exasperada, para compreendê-lo no âmago.

“Tô cansada de correr e fazer tanta coisa. Quero ficar parada, plantada, crescendo plena, quietinha”, completei.

Eu precisava puxar o freio. Parecia o papa-léguas maluco preso em um cubículo de 30 metros quadrados em plena pandemia — com o agravante de que o coiote também era eu.

Estava no auge (ou no fundo do poço?) da minha energia masculina, abraçada em complexos de insuficiência, produzindo coisas o tempo todo, equilibrando empreendedorismo e freelas e cursos e projetos paralelos em vários pratinhos que se espatifavam no chão com frequência. Meu corpo criou uma doença psicossomática pra me fazer reintegrar o feminino, o descanso, a soltura, mas nem assim eu parei. Nem assim! (Como nada é por acaso, ela só foi curada quando voltei da Argentina este ano, após duas semanas de férias — mas férias de verdade.)

Então, entendi que na integração da minha energia feminina está a resposta que neguei enxergar por anos, o que culminou em uma decisão que me faz devanear, quase todos os dias desde que a proferi, que virei uma doida varrida de vez.

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Quando comprei o livro “Jung e o Tarô: uma jornada arquetípica”, em meados de julho, resolvi tirar uma carta, a segunda da minha vida. Enquanto as embaralhava, o tarô “cuspiu” a Papisa, cujo significado não entendi de imediato — como quase sempre ocorre quando termino com um Arcano Maior entre as mãos.

Sempre digo que o Inconsciente prega peças — não no sentido ruim, mas para que possamos encaixá-las na trama da vida. Entendi o significado da carta três meses depois, quando contei a uma amiga que verbalizei, naquela tarde, a decisão difícil tomada há muitos meses dentro de mim: segui minha intuição e soltei algo aparentemente estável, mas que não me contemplava mais. Genuinamente animada com minha coragem, ela me parabenizou e perguntou como eu estava me sentindo. “Triste e louca”, cravei.

Então — sem saber da minha história com a Papisa — , ela enumerou todas as características da carta e completou: “Agora é hora de tu sustentar o desconforto, voltar pra tua energia feminina. O mundo, na lógica masculina, não entende. Ainda parece insano seguir a nossa intuição.”

A Papisa é uma autoridade que governa pelos princípios femininos. Representa a energia primária do yin, personificando divindades como Ísis, Ishtar e Astarte — todas deusas que reinaram sobre os mistérios das mulheres. Reflete a paciência, o amor e a lenta persistência. O topo da carta estampa o número dois, que é sagrado para as divindades femininas, porque significa a dualidade, a necessidade de caminhar-se com integração para formar um todo.

Quando colocada em perspectiva com as cartas que a precede e a sucede — O Mago e a Imperatriz, respectivamente — , ela também simboliza a gestação, o silêncio, a introspecção e o conhecimento gradual por meio da — apenas aparente — solidão. Evoca, enfim, a integração do princípio feminino que habita todos os seres humanos — e essa integração entre masculino e feminino liberta um mundo dominado e adoecido pela lógica patriarcal.

A Papisa me lembra a imponência sutil, a calma e o silêncio das plantas. A completude em simplesmente ser e estar.

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Tenho a teoria de que enchemos nossos apartamentos de plantas durante o isolamento social porque elas gentilmente nos recordam que, na aparente imobilidade, há muita coisa acontecendo. Entender como a natureza reage, funciona e avança nos torna mais resilientes.

Hoje, quando escrevo que quero virar uma planta, penso em tudo o que esse desejo carrega, para além do que um desabafo exaurido queria expressar, há dois anos e meio.

Eu quero respeitar a minha natureza. Eu quero respeitar os meus ciclos. Eu quero respeitar quem eu sou. Eu quero honrar a minha alma.

E o que eu sou para além de tudo o que faço? Como me sinto quando estou despida de todas as camadas sociais que uso para forjar uma identidade? Como reajo sustentando o desconforto da transição? O que habita o meu vazio? O que permito ser gestado?

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“Pra onde tu vai?” é, de longe, a pergunta que mais me fazem há uma semana. Dou uma resposta vaga. Eu sei o que quero, sei o que mereço, sei como quero me sentir: feliz, potente, com energia. Mas só digo: “ainda não sei”, o que é uma verdade apenas parcial.

A réplica verdadeira é uma reverência profunda à estação da Papisa na minha jornada:

“Vou voltar pra mim”.

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