O que eu espero de mim?

Cândida Schaedler
3 min readOct 20, 2023

--

Subverter a lógica de atender às expectativas alheias e escutar os meus reais anseios abriu espaço para a vivência de um roteiro mais autêntico; mas, céus!, como é horrível improvisar

Lenu e Lila, protagonistas da Tetralogia Napolitana, série de livros da italiana Elena Ferrante, vivem uma amizade-espelho. Lenu é brilhante, genial, inteligente, educada. Lila não tem modos, é respondona, briguenta, sem educação. Lenu fala o italiano corretamente. Lila usa um dialeto cheio de palavrões. Lenu é passiva. Lila é impetuosa.

Esperam muito de Lenu. Não esperam quase nada de Lila. No entanto, quem é a amiga genial que dá nome ao primeiro livro da série? Quem leu as obras sabe que a questão fica no ar: Lenu não teria sido Lenu sem Lila; e vice-versa.

Quando li a tetralogia pela primeira vez, lembro de ficar quase sem fôlego acompanhando os rompantes de subversão de Lila. Como eu queria ser ela! Mas eu era Lenu, uma covarde, presa no roteiro que me deram para interpretar.

(Como pregadora da palavra de Elena Ferrante, sei que há muitas leituras possíveis para essa amizade entre a dupla que protagoniza a tetralogia, o que também faz parte da genialidade da obra. Aqui, vou priorizar a minha interpretação, porque bem… é um texto sobre subversão de expectativas alheias.)

Vivi muito tempo como Lenu, presa no roteiro que uma sociedade doente me alcançou e eu seguia à risca. Repetia todas as falas, obediente, profissional. Encenava tudo, ovacionada por aplausos intermitentes, enquanto domava uma fera que implorava pela libertação. Mas eu temia assustar a plateia com o rompante daquele animal. O que será que iam pensar? Esperavam tanto de mim!

Porém, como um prédio fadado ao desmoronamento porque estava cheio de rachaduras, tudo foi ruindo aos poucos — e a luz entrou por esses buracos na estrutura. Entendi que nunca fui feliz trilhando aquela estrada pronta. Sempre que segui o caminho que me apontavam, ele se mostrava como uma grande armadilha que até feriu essa corça interior que carrego, mas nunca conseguiu derrotá-la. Só subvertendo a lógica de trilhar o que esperavam de mim é que integrei o arquétipo que tanto ficou adormecido: Ártemis.

Nessa grande Obra que é minha vida (e a vida de todas as pessoas), passei a interpretar o roteiro que eu mesma estou escrevendo. Troquei o mote todo da peça. Em vez de agradar à plateia, quero agradar à protagonista. Inverti a pergunta norteadora e questiono: o que eu espero de mim?

As cenas têm sido viscerais. Caio de bunda, caio de joelhos. Fico com vontade de chorar, atordoada, mas levanto. Peço demissão. Deixo a estabilidade, confiando em sei lá que força do Universo, puramente seguindo o coração (Ártemis, né). Pratico exercício físico cinco vezes por semana. Escrevo. Perco prazos. Deixo o choro vir, ainda atordoada e confusa e receosa e me achando uma louca. Faço alquimia com minhas sombras e meus medos (enormes). Falo o que penso (sem esquecer os bons modos da Lenu, porque a régua não precisa ir para o outro extremo). Faço o que eu quero. Negocio. Preparo minha comida, escolhendo cuidadosamente os ingredientes. Danço.

Nesse ato, a protagonista amadora (eu) está desajeitada e nervosa, porque a peça tem se mostrado uma grande improvisação (logo eu, que tenho horror à improvisação!). Mas estou mais autêntica do que no papel anterior. Arrisco dizer que estou mais confortável no desconforto, aprendendo a me divertir com escorregões na fala, talvez decepcionando a plateia que projeta algo que não é meu em mim.

É agora, nesse salto de fé no vazio que estou dando, que Ártemis se mostra mais importante — seja para me guiar nessa floresta ainda escura, apenas iluminada pela Lua, ou para me salvar com seu arco e flecha de outros animais selvagens que surgem no caminho. Estamos correndo juntas, preparando nosso alimento, em vez de aceitar os pratos prontos do menu.

É isso o que eu espero de mim.

--

--