O que eu quero para o café da manhã?

Cândida Schaedler
3 min readNov 24, 2023

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Carregando muitas malas em um lugar de transição, hesito em responder à pergunta com medo de desapontar outras pessoas

Foi em um sonho, como costumam ser as minhas revelações há alguns anos. Um homem mais velho me perguntou, gentilmente: “O que tu quer comer no café da manhã de domingo?”. Em um espaço de transição similar a uma rodoviária, cheia de malas em volta e com medo de esquecer uma delas, hesito em respondê-lo. “Vou perguntar às gurias”, digo. Seriam outras partes minhas? “O que elas quiserem está bom”, completo.

Não fui sincera. Eu sei o que desejo no café da manhã de domingo. Não preciso perguntar a ninguém. E a resposta é surpreendente até para mim, porque ela vem acompanhada, ainda, de uma série de ataques ao meu ego — essa parte que tem sofrido tanto este ano, obrigada a ser cada vez mais reduzida ao que de fato é: uma ilusão. Socado em malas que mal fecham de tanta tralha, meu ego é destrambelhado, embora tudo que ele queira seja somente agradar aos outros.

Esse sonho refletiu uma cena da qual, volta e meia, recordo com carinho e espanto. Era outubro de 2018, quinta-feira de manhã, um sol forte entrava pela janela do crush, eu estava mais apaixonada do que queria admitir pra mim àquela altura, não tinha levantado da cama nem aberto os olhos direito, e ele disparou, à queima-roupa: “O que tu quer muito fazer e não fez ainda?”

Fiquei em silêncio, atordoada. Nunca tinha pensado nisso. Nunca tinham me perguntado isso. Respondi, do alto da minha imaturidade disfarçada de inocência: “n-não sei…” E ele: “pensa, e vamos fazer juntos.”

O romance meteórico não durou o suficiente para eu repassar a lista a ele. A pergunta, porém, ressoou por anos, junto com o choque de alguém tê-la feito.

O que eu quero muito fazer e não fiz ainda?

É uma pergunta linda, que nos aponta muitos caminhos. Mas ela vem acompanhada de uma armadilha na qual tenho caído com muita frequência — com mais frequência do que gostaria — e que tem deixado minhas pernas cheias de hematomas: a armadilha do ego. Este ano, o coitado está sendo escorraçado, levando todos os “nãos” que guardaram há anos. A alma tem sido polida, admito, mas é difícil. Levanto sempre meio tonta e desorientada, tentando entender o que aconteceu.

Então, o que tenho investigado no meu dia a dia, com curiosidade, é a diferença entre o que é meu desejo de alma e o que é desejo do meu ego. Como separar os dois?

O que tem aparecido são as seguintes distinções:

- o que me gera ansiedade diz respeito ao ego; o que me deixa em paz é a alma;

- o que me deixa eufórica é ego; o que me deixa entusiasmada é alma (há uma diferença crucial entre euforia e entusiasmo);

- o que empaca é ego; o que flui é alma.

No sonho, uma Cândida insegura achava que havia outras partes que precisavam participar da decisão sobre o cardápio matinal de domingo; mas será mesmo que precisam? E será que elas sabem o que eu realmente quero? Ou estou, de novo, negociando meus reais anseios para agradar a outras pessoas? Por que ainda carrego malas tão cheias na rodoviária? Não dá pra escolher melhor as roupas que vou usar?

Tudo o que vem à tona é surpreendente porque é simples. Preciso escrever essa história, preciso aliviar as malas, preciso aprender a pedir. O que eu realmente quiser será servido.

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