O que eu sei de verdade?

Cândida Schaedler
5 min readJan 2, 2024

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2023 desmontou várias certezas forjadas pelo ego, mas lapidou poucas e boas sustentadas pela alma

Escolho os livros que levo junto comigo em viagens como a peça mais importante da mala. Contudo, quando fui confirmada na maior conferência sobre mudanças climáticas do mundo, a COP28, apenas dois dias antes de embarcar a Dubai, só deu tempo de colocar Harry Potter e a Pedra Filosofal na bolsa, obra que eu relia naquela semana. Revisitar as páginas da minha obra infanto-juvenil favorita estava sendo nada menos do que mágico — e não foi uma escolha descolada da confirmação em cima da hora em um evento do qual eu queria muito participar. Ainda assim, não era a obra da viagem, se é que vocês me entendem.

Naqueles dias, então, fiz o inverso: encontrei o livro certo na volta, no Aeroporto Internacional de Dubai. Já próxima ao portão de embarque, pós-controle de passaporte e tudo, topei com uma livraria bem modesta — ao contrário de tudo em Dubai, que é megalomaníaco — e entrei. Estava com tempo, o que me deu a vantagem de poder me esgueirar calmamente entre as poucas prateleiras. Quase na última, em meio a revistas do mundo todo, avistei “What I Know For Sure”, da Oprah Winfrey. Gostei na hora — e levei comigo.

Ainda completamente zonza com a imensidão da experiência dos cinco dias anteriores, abri a obra e comecei a ler no portão de embarque, rumo ao primeiro voo da jornada de retorno. E foi mais uma prova de que nada é por acaso.

Admiro muito a Oprah. Acho que ela é nada menos do que a expressão viva de uma alma sendo exatamente quem veio ser, e por isso ela brilha tanto. Essa obra, em que ela compartilha as poucas certezas que amealhou ao longo da vida, é uma dose generosa de inspiração que reforçou só uma certeza que eu tenho: que o caminho da nossa vida é apenas nos tornarmos, cada vez mais, quem realmente somos. Jung chama isso de individuação.

Recuperar essa autenticidade é difícil. Nos ensinam o contrário em todos os espaços que frequentamos, desde criança. As máscaras que costuramos com tanto afinco, aflição e medo precisam ser descosturadas, ponto a ponto, para revelar a nossa verdadeira pele, sem maquiagem, imperfeita. Nesse processo, que leva a vida toda (não tem mágica para avançar etapas), cada nozinho que abrimos é uma descoberta que nos deixa em espanto, em aflição e, quase sempre, de joelhos.

Quando Oprah foi confrontada, em 1998, com a pergunta que originou o título da obra, ela hesitou: “o que você sabe de verdade, Oprah?”. Era preciso pensar melhor e empreender uma investigação curiosa no próprio cotidiano, o que ela fez. Oprah escreve, na introdução do livro, que “você vive e, se estiver aberto ao mundo, aprende”. Meu exemplar está todo rabiscado e marcado, não porque me ensinou algo novo, mas porque tudo o que está escrito é o que acredito e vivenciei em 2023. A minha própria ida a Dubai, confirmada em cima da hora, foi sinal de que, quando soltamos o controle, nossos desejos mais profundos são, sim, atendidos — e cabe a nós honrar aquela bênção que aponta para o caminho da nossa alma.

Não me entendam mal, mas a melhor sala de aula é a combinação nossa vida + um coração curioso. Não há sabedoria guardada em livros que seja capaz de esquadrinhar a imensidão dos aprendizados que cada um pode adquirir e ampliar com base nas suas vivências. Livros são como se fossem mapas, mas o caminho a gente vai percorrendo (e desenhando) por si mesmo — e o que aparece no meio da jornada também é surpresa. Isso me alenta, porque não gosto de spoilers.

Está tudo na obra de Oprah, baseada no que ela aprendeu: ouvir o coração, tomar decisões com coragem (e não paralisar no medo), aprender a dizer “não”, investigar de que lugar vem o “sim” que proferimos, manter-se conectada ao que nosso coração realmente deseja, descansar o corpo e a mente, observar os milagres cotidianos com gratidão e como uma prova de que existe uma ordem maior que nós podemos compreender em algum lugar, ressignificar a relação com o dinheiro e a abundância…

Fiquei pensando, ao longo das páginas do livro, nas poucas certezas que eu tenho — cabem em uma mão — e nas ilusões que eu tinha e foram sendo desmontadas, uma a uma, em 2023. Agora estou tranquila com todas as retaliações para sair do caminho apontado pelo ego, mas, na hora das quedas, os roxos aparentes são um ataque doloroso. É como se todo mundo pudesse ver as marcas da derrota no nosso corpo, como uma prova da guerra na qual fomos lutar — pra início de conversa — pelos motivos errados. Minhas pernas estão cheias de hematomas, e não me surpreendo mais quando deparo com um novo. Investigo, curiosa, se é resquício do tombo andando de skate ou da pancada do ego (mais provável que sejam os dois).

Uma das buscas dos alquimistas antigos era a pedra filosofal — que J. K. Rowling colocou no título da primeira obra de Harry Potter. (Inclusive, aos desavisados, a autora é iniciada em todos esses rituais e sabia muito bem do que estava falando.) De acordo com o que os alquimistas preconizavam, a pedra filosofal transformaria qualquer metal em ouro e poderia produzir o elixir da vida, eternizando quem dele bebesse. Também se discute que a pedra filosofal não existe como conceito físico, mas espiritual: ou seja, está à disposição de cada um de nós, mas do lado de dentro. A alquimia era, no fim das contas, um caminho espiritual de ascensão, e os alquimistas buscavam, trabalhando metais e transformando chumbo em ouro, trabalhar a si mesmos.

Na primeira obra de Harry Potter, o protagonista encontra a pedra filosofal durante uma batalha com Lord Voldemort, o bruxo maligno que busca retomar o poder e que tentou matar o herói quando este era um bebê. Mas Harry só obtém a pedra porque — spoiler! — o feitiço que a protegia fez a preciosidade aparecer para quem não tivesse interesses sombrios no uso dela. Quando Harry mirou aquele grande desejo puro do seu coração — e não do ego -, pá: a pedra filosofal aparece no bolso dele. Ah, o ego…

O que eu sei de verdade é que o único caminho rumo à felicidade genuína — e para longe do barulho egóico — envolve autenticidade e lapidação. E que quem não vê magia na vida é trouxa.

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