Um presente de Hermes

Cândida Schaedler
4 min readApr 25, 2023

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Dizer “sim” para uma história com prazo de validade foi uma transição interna importante

Eu sabia que terminaria logo. De sandálias aladas, como um bom Hermes, ele não cria raízes, mas transita entre os mundos, porque é o guardião do limiar entre o inconsciente profundo e o que é terreno, físico. Rápido na fala e na vida, articulado, interessante, comunicativo e encarnado no homem com quem dividi quatro meses de jornada, ele me apresentou a uma faceta que eu precisava integrar em mim: minha persona aventureira e leve (não tão aventureira quanto um nômade digital que vive sem endereço fixo há quase três anos, mas acho que vocês entenderam).

Conheci ele num bloco de carnaval porto-alegrense em que fui sem pretensão alguma, a não ser a que todos temos quando celebramos a mais típica festa brasileira: diversão. Bati o olho e sabia que queria ficar com ele, mas não era a hora para nenhum dos dois. Amigos em comum, sincronicidades, admiração mútua e quase três anos depois, a sabedoria dos caminhos da vida mostrou que era o momento. E foi incrível.

Vivi a experiência daquele match no presente, no mais absoluto significado que a palavra traz. Como Pablo Neruda escreveu: “vamos ali onde não espera nada / e achamos tudo o que está esperando”. Foi um presente concreto do destino, entregue como uma caixa embrulhada de forma singela, mas que contém diversas chaves. Eu sabia disso, desde o primeiro dia em que fui encontrá-lo em um bar, afoita, animada, feliz. Sempre foi diferente, em um nível que, até então, nem tinha sido verbalizado. Esse encontro foi na contramão de todas as minhas expectativas mentais; o coração é que sempre me guiou.

No entanto, a personalidade festiva e leve que o deus mercuriano encarna no arquétipo terreno também me escancarou limites: eu quero completude e entrega mútua, oras. E é tão difícil admitir isso como algo disponível para mim que a frase completa sai quase enguiçada. Pois, ao contrário dele neste momento, eu quero criar raízes. Fincar meus dois pés. E me mover, no mundo e no submundo do meu inconsciente ao lado de outra pessoa — não para sempre (o que é para sempre?), mas pelo tempo que a caminhada for para durar. Quero uma vida idílica para uma boa Deméter, e quero nutrir outras vidas, dentro e fora de mim (esse ponto é importantíssimo, inegociável).

A bem da verdade, eu disse “sim” para uma história que eu já sabia que chegaria ao fim, mas que foi uma transição importante.

De janeiro a abril, soube que tínhamos dias contados. Cada semana era riscada em um calendário gregoriano mental. Ao mesmo tempo em que tinha mais certeza das diferenças a cada encontro, também sofria com as semelhanças e com o encaixe, que me deleitava facilmente por horas. Minha melhor amiga percebeu, logo na primeira narração do que acontecia, o que pra mim já era nítido: desde que terminei um namoro de seis anos, eu nunca tinha me entregado assim de novo. Era diferente, era muito óbvio. Todas que escutaram relatos também intuitivamente bradaram: “tem uma coisa diferente aí”. E teve mesmo.

A questão que martelava em mim, porém, era: será que estou me entregando porque sei que vai terminar? Será que só por isso permiti que nos perdêssemos em estradas da serra gaúcha até chegarmos em uma colônia japonesa estranha, curiosa — e maravilhosa — para os dois? Será que só por isso compartilhamos confidências em um evento aleatório em outra cidade de colonização alemã, onde bandas locais enfileiravam sucessos dos anos 80 para uma plateia engajada e participativa?

Não aportamos no destino desejado. Choveu demais. Mas chegamos onde tínhamos que chegar, e o único combinado tácito era nos divertirmos no caminho.

Com asas sobre os sapatos para conferir agilidade e mobilidade a esse arquétipo, meu parceiro de jornada continuou seu caminho pelas estradas da América do Sul sozinho. Eu sabia, desde que nos escolhemos por um período, que seria assim, que tudo tinha prazo de validade, que o pacote para o qual disse “sim” veio com essa condição, com o “freio de mão puxado” para uma entrega verdadeira, de alma. Mas eu jamais entenderia isso se não tivesse — vejam só, que surpresa! — vivido. E jamais teria sentido uma sensação tão híbrida de alívio, felicidade e angústia vendo ele entrar no carro e sair da frente do meu prédio. Quando é a última vez?

Um dia após ele prosseguir viagem pelas estradas sul-americanas, sonhei que um cavalo negro me perseguia pelas ruas da minha cidade natal. Completamente horrorizada, eu não conseguia fazer meu carro avançar com velocidade. O automóvel ficava parado, mesmo que eu afundasse o pé no acelerador. O animal, enfurecido, mordia meu braço, porque o carro não tinha proteção nem vidros. Não doía, mas assustava muito. Quanto mais amedrontada, mais parada.

Escrevendo este texto, eu entendi: tenho que soltar o freio de mão.

Tenho que soltar o freio de mão. Agora faz sentido. Com o medo, esqueço do básico para colocar minha vida em andamento, para deixar o amor chegar da forma que eu tanto repito que desejo.

Escrever é sempre uma descoberta. Viver também — principalmente.

A condução dessas revelações entre o mundo terreno e o submundo do meu inconsciente foi intermediada por Hermes, em uma história que se estendeu o necessário para me fazer entender tudo isso — e para gozar umas tantas vezes.

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