Resenha: E não sou eu uma mulher? A narrativa de Sojourner Truth

“Verdade Peregrina” é o nome que Isabella Van Wagener escolheu para si buscando fugir da condição de cativa.

Carla Maria
3 min readMay 17, 2024

E não sou eu uma mulher? A narrativa de Sojourner Truth é um livro de memórias contadas por Sojourner à Olive Gilbert. A primeira edição brasileira foi lançada em 2020 pela editora Ímã Editorial, enquanto a primeira edição norte-americana foi publicada em 1850 e está disponível online pela University of Pennsylvania.

Publicada durante a efervescente disputa política do início do século XIX pela abolição da escravatura, a primeira edição do livro, com sua linguagem abolicionista, reforçava o fim da escravidão. É perceptível essa intenção no prefácio pelos editores em sensibilizar os leitores para o sofrimento das populações de cor no contexto histórico da escravidão, inspirando esforços pela libertação de todos aqueles ainda sob cativeiro no solo americano.

Já a edição brasileira conta com um belíssimo texto de Eliana Alves Cruz, que traça uma linha espiral do passado da escravidão ao cativeiro moderno, onde a violência contra o sujeito negro não é exceção, mas sim a regra na ordem da experiência humana.

E é precedida por uma apresentação dos editores brasileiros, que discutem o famoso discurso de Sojourner Truth, conhecido especialmente pelo movimento do Feminismo Negro. O livro apresenta duas versões do discurso improvisado na Convenção dos Direitos da Mulher, em Akron, em 1851. Uma feita pelo secretário da Convenção, Marius Robinson, e outra pela ativista Frances Dana Barker Gage, publicada 12 anos depois, onde aparece a pergunta retórica:

“Ain’t I a Woman?”

O livro traça a biografia de Isabella Van Wagener (1799?-1883), uma mulher negra ex-escravizada, cujas memórias revelam suas intensas tentativas de liberdade e a busca pela reconstituição familiar durante e após o cativeiro.

Os 31 capítulos do livro perpassam pela vida de Isabella/Sojourner, revelando, através da voz da narradora, as memórias da protagonista. A leitura é contagiada pelos sonhos, angústias e esperanças de uma mulher determinada à vida melhor e livre do cativeiro. O livro expõe as condições de sobrevivência precária das pessoas escravizadas em várias idades, tratadas como objetos sem qualquer senso de dignidade ou compaixão. Essa desumanização é veementemente criticada pela narradora abolicionista.

O livro também explora as relações familiares e a rede de apoio de Isabella/Sojourner, incluindo a memória vívida do porão onde seus pais e outras pessoas escravizadas viviam. É importante destacar que cenas como essas são extremamente dolorosas no momento da leitura. Talvez reproduzidas justamente pelo discurso sensibilizante da época.

“Vou ter meu filho de volta”

Logo após casar com Thomas, com quem teve pouca convivência devido à escravidão, Sojourner teve cinco filhos: Diana, Thomas, Peter, Elizabeth e Sofia. Uma das maiores “provações” de sua vida foi a luta para recuperar seu filho Peter, vendido fraudulentamente por seu antigo senhor e enviado para o Alabama. Em 1828, ela se tornou a primeira mulher negra nos registros históricos a vencer um processo judicial contra um homem branco, forçando-o a pagar pela ilegalidade da venda de seu filho para fora do estado de Nova York.

O livro retrata as tensas relações de Sojourner com seus senhores, bem como as raras “benevolências” de outros, destacando as (im)possibilidades de uma vida condenada à morte. Mesmo com as mãos atadas, Sojourner nunca se curvou àqueles que pretendiam definir sua identidade.

A narrativa também aborda a experiência religiosa de Sojourner Truth e suas relações com líderes religiosos, vistas como uma rota de fuga e entendimento contínuo de luta e superação. Próxima à velhice, insatisfeita com um fim semelhante ao de seus pais, ela busca afastar-se do passado escravista, rejeitando seu nome de cativa e criando um nome que define sua trajetória.

Este é um livro envolvente, com cenas fortes das agruras vividas por uma mulher negra cuja realidade não está tão distante da atualidade. Parafraseando Elisa Lucinda, vivemos em uma escravidão moderna. Aqueles que não se colocam como “abolicionistas modernos” reafirmam um passado que persiste.

O poder do livro, ou melhor, o poder das palavras de Sojourner Truth, reside na sua maestria em constranger congressistas conservadores e encorajar pesquisas, como a minha, que questionam a academia e as balizas que legitimam a noção de intelectualidade. É um livro para quem deseja entender mais sobre a mulher cuja voz atravessa fronteiras e ressoa em cada uma de nós que busca respeito, dignidade e justiça, assim como para aqueles que anseiam compreender o momento histórico pós-Abolição.

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Carla Maria
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mulher negra em diáspora, historiadora, pesquisadora e desbravando o mundo da escrita