Carla Rodrigues
3 min readMar 21, 2020

Breves anotações sobre trauma

Carla Rodrigues

Durante o ano e meio que vivi em situação de contingência, acompanhando o tratamento oncológico do meu companheiro, aprendi muita coisa. A maioria, com o dr. Roberto Bueno de Paiva, que tem a delicadeza (e a paciência) de pensar em como os pacientes e seus familiares estão se sentindo naquele turbilhão. Uma doença, qualquer uma, e mais ainda as que podem ser fatais, é um trauma, no sentido mais estrito definido por Freud: uma descarga de energia maior e mais violenta do que o aparelho psíquico pode absorver. As reações ao trauma são as mais diversas. Todos vimos os memes que tentam convencer os idosos a ficar em casa (aqui, o psicanalista Christian Dunker explica por que é tão difícil). Nem todos estão “em negação”. Mas talvez, quanto mais velhos, mais precisem de tempo para absorver o trauma.

Uma pandemia, como a anunciada pela OMS dia 12 de março de 2020, é um trauma mundial. Há quem lide com o trauma tentando colocar as coisas sob controle de novo, o que é impossível. Mas há quem não suporte a sensação de impotência e comece a tomar providências, que servem para dar a sensação, ainda que imaginária, de estar no controle das coisas (eu mesma reagi assim muitas vezes, hoje já sou capaz de pelo menos tentar evitar esse caminho). Há quem acabe aprendendo que, se nada está sob controle, o melhor a fazer é acreditar no clichê de que é preciso viver um dia de cada vez. Num plano de contingência isso é totalmente verdadeiro.

A constatação de modo algum significa não fazer planos, mas aceitar que todo plano é uma promessa. E, como tantas vezes escreveu Jacques Derrida, sobretudo em resposta às acusações de ser um filósofo messiânico, vivemos numa estrutura de fé e promessa. Esta estrutura é necessária e não tem nada a ver com religião. Seja quando digo “até amanhã”, seja quando planejo uma viagem de férias ou para participar de um congresso, estou nessa estrutura de fé e promessa. Foi essa estrutura que se rompeu desde que a OMS declarou a pandemia e nos obrigou a cancelar as rotinas mais básicas nas quais nos apoiamos para confiar que haverá futuro. Esta estrutura de promessa é o que nos faz acreditar — por fé — que haverá futuro. Talvez por isso muitas amigas e amigos ainda acreditem que dá para se isolar do real na sua pequena bolha de felicidade e privilégio. Não dá, por que a estrutura está abalada (ontem eu tentava explicar a minha filha que não, não há ainda uma vacina nem uma promessa de cura, como mostra essa reportagem).

Tem sido bonito ver um monte de gente se mobilizando para oferecer atividades culturais, compras para idosos, psicanálise online, cursos à distância, shows, livros, músicas…enfim, para além da marquetagem, tem iniciativas incríveis vindo de todos os lados. Muita coisa não vai se sustentar no tempo, mas isso não é importante avaliar agora. Se pelo menos os próximos seis meses serão duros, muito duros, e se a pandemia está apenas começando, cada um de nós vai precisar aprender a lidar, no tempo, com esse excesso de energia descarregada sobre os nossos aparelhos psíquicos, a nos lembrar, todos os dias, que nada nunca está sob controle.

Na sexta-feira, 13 de março, eram 98 casos registrados. Hoje, sábado, 21 de março, já são 1.128 casos registrados pelo Ministério da Saúde.