Entrevista sobre “plataformas online”- revista Minas Faz Ciência (2019)

Carlos d'Andréa
8 min readNov 4, 2019

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Reprodução da entrevista concedida ao jornalista Maurício Guilherme Silva Jr. e publicada na revista Minas Faz Ciência, da Fapemig.

A íntegra da revista jun/jul/ago de 2019 pode ser lida e baixada aqui.

Faça chuva ou sol, lá estão eles, cidadãos do século XXI, a consumir o mundo segundo… a telinha. Para além de objeto capaz de registrar a vida e transmitir informações, smartphones conectados à internet servem, hoje, de símbolo (e alimento) aos novos traços de comunicação e sociabilidade — da política à economia; da cultura à religião; dos afetos às negociações

Há décadas, tal complexo cenário povoa o cotidiano de estudos do professor Carlos Frederico de Brito d’Andréa, do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Estudos Linguísticos, pela UFMG, e pós-doutor em “Estudos de Mídia” (Universidade de Amsterdam), o pesquisador coordena, na instituição mineira, o recém-fundado grupo R-EST — estudos de redes sociotécnicas –, além de integrar o Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (NucCon).

Nesta entrevista a MINAS FAZ CIÊNCIA, ele analisa momentos e conceitos importantes ao desenvolvimento da internet e das mídias

Quais as principais fases de desenvolvimento da web?
As transformações da WWW ao longo de 30 anos resultam de combinações
entre tecnologias, práticas, políticas etc. Para evitarmos olhares ultrapassados, presenteístas ou futuristas, de fato, é fundamental as entendermos em perspectiva temporal. É sedutora a ideia de adotarmos
termos como web 1.0, 2.0 ou 3.0, mas penso que, para além de fases, revoluções ou rupturas, seja mais interessante estarmos atentos aos processos de continuidades e tensões deste intenso processo. É evidente que a WWW, proposta por Tim Berners-Lee, nos anos 1990, perdeu muito de sua utopia original, então baseada numa mistura das culturas acadêmica e da
contracultura hippie — com financiamento militar, é bom lembrarmos.

As mudanças são, ao mesmo tempo, de ordem técnica (protocolos abertos deixaram de ser o padrão), econômica (há notória concentração
de capital, em especial nas chamadas Big Five — Alphabet-Google, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft) e política (aumento das censuras por diversos países, por exemplo). Simultaneamente, práticas antigas de resistência, como o uso de pseudônimos, as diferentes formas de ativismos online e a busca pelo anonimato ganham novas configurações quando associadas à fragmentação da web (deep web), às políticas de governança de plataformas como
WhatsApp e o Twitter, às prioridades dos usuários em variados contextos, às visões de mundo que eles constroem junto às tecnologias… Há muitas webs funcionando e sendo reinventadas ao mesmo tempo.

Como definir, na atualidade, as chamadas “redes sociais”? A terminologia ainda se aplica a tais ambientes de convívio virtual e/ou digital?

O termo “rede” ainda é uma metáfora curinga para explicarmos tudo que nos
remete a relações descentralizadas, menos hierárquicas, mais permeáveis e abertas que os modelos tradicionais ou institucionalizados. Já “rede social” enfatiza a existência de conexões entre pessoas em diferentes situações — das relações familiares ou de vizinhança às “amizades” em ambientes digitais. Parece-me que, quando adotamos a expressão “redes sociais” para nomear artefatos complexos, e bastante diferentes entre si - como Facebook,
Tinder ou o finado Orkut –, tendemos a esvaziar as dimensões materiais, políticas e comerciais que moldam nossas conexões na atualidade.

Tudo que o Vale do Silício deseja é que continuemos a ver seus produtos como “redes sociais”, que, de modo neutro e “desintermediado”, ajudariam a
conectar pessoas, romper fronteiras, tornar desnecessárias quaisquer mediações institucionais. Ao propor o uso do termo “plataforma”, certo conjunto de pesquisadores busca ressaltar que estamos nos conectando, uns aos outros, a partir de grandes infraestruturas baseadas em dados, mediações algorítmicas, interesses econômicos, políticas de governança e outras variáveis. Também como metáfora, o termo “plataforma” ressalta e esconde aspectos, mas, na atualidade, me parece o conceito mais adequado para caracterizarmos as mídias sociais e outros serviços online.

No capítulo introdutório de seu novo livro, a ser lançado em breve, você destaca que, hoje, “parece não haver mais espaço para leituras inocentes ou desinteressadas sobre as dimensões tecnopolíticas das mídias sociais”. Poderia comentar tal expressão, com ênfase na discussão em torno dos principais objetivos das novas investigações acerca da internet e da cibercultura?

Durante, ao menos, uma década –ou, mais especificamente, a partir da popularização da ideia de web 2.0, em 2005–, nos deixamos seduzir por uma retórica baseada em ideias como “cultura da participação” e “inteligência coletiva”. Mesmo que sem negar as dimensões empresariais das iniciativas em curso, em geral, os pesquisadores em internet e cibercultura compraram, com mais entusiasmo do que crítica, as tendências tecnológicas que, enfim, pareciam concretizar os ideais de colaboração e troca com as quais a internet se popularizou. Nos últimos anos, muita coisa mudou. De modo geral, nota-se intensa guinada política nas abordagens de pesquisa em Humanidades e Ciências Sociais — no Brasil, isso acontece, em especial, após 2013. De forma definitiva, vieram, para o centro do debate, as abordagens críticas e contemporâneas, por exemplo, dos estudos de gênero e de urbanismo. No entanto, ao falarmos de estudos sobre a web, mídias sociais etc., nota-se, ainda, em geral, um olhar analítico esvaziado, pouco cuidadoso.

As discussões oscilam entre um fascínio tardio com a “cultura da participação” e uma abordagem excessivamente pessimista ou apocalíptica, que atribui a empresas como Google e Amazon um poder quase absoluto de manipulação. Nessa polarização acadêmica, os chamados estudos críticos em internet
se apresentam como ótimo meio-termo. Criticar, neste caso, não significa julgar ou condenar, mas buscar compreender os fenômenos em suas singularidades, e a partir dos jogos de poder que envolvem grandes empresas e usuários comuns.

Uma de suas frentes de trabalho diz respeito aos “estudos de plataformas” e aos “métodos digitais”. O que caracteriza tais
procedimentos teórico-metodológicos?

Os métodos digitais são uma perspectiva teórico-metodológica que buscam
compreender e tensionar o modus operandi dos ambientes midiáticos estudados. Já no livro fundador desta perspectiva (Digital Methods, 2013), Richard Rogers falava da importância de “seguir os meios”, isto é, de compreender as lógicas sociotécnicas de uma plataforma, como suas maneiras de classificar e apresentar informações, o modo como os usuários são incentivados a construir seus perfis, como a interface é pensada para se coletar mais dados etc.

Trata-se do desafio não só de pesquisar os meios, mas “com” eles. É preciso pensar o modo como diferentes práticas, como ativismos, manifestações políticas e mobilizações de fãs de artistas ou esportes, se dão a alinhadas às características sociotécnicas de plataformas como Facebook e Twitter. Mais do que torcer ou militar em uma plataforma, agimos com elas, a partir de sua tecnogramática (dando likes, compartilhando) e das práticas compartilhadas
(uso de hashtags etc.). Há entrelaçamento entre as plataformas e as temáticas que nela se (re)constituem. Um olhar analítico mais sofisticado deve mirar esta coprodução. Um dos caminhos metodológicos - mas não o único! - é nos apropriarmos, de modo crítico e criativo, dos dados fornecidos pelas próprias plataformas, por meio de suas APIs [Application Program Interfaces - ou “Interfaces do Programa de Aplicação”].

Como definir a complexidade do termo “plataforma”?

Proposta inicialmente nos estudos de games, plataforma é uma metáfora
adotada, pelo menos desde 2010, por autores dos chamados estudos críticos em internet. O termo já fazia parte da estratégia retórica de empresas como a Google, que buscavam se posicionar como meras facilitadoras no crescente processo de “Broadcast Yourself” (para lembrar o slogan do YouTube). O pesquisador estadunidense Tarleton Gillespie (no artigo Politics of Platforms, 2010) foi um dos primeiros a propor o uso crítico do termo. Assim como
as próprias plataformas, o conceito passou por significativas mudanças nos últimos anos.

No recente livro The Platform Society (2018), os autores [José Van Dick; Thomas Poell; Martijn De Waal] apontam que “uma plataforma é alimentada com dados, automatizada e organizada por meio de algoritmos e interfaces, formalizada por meio de relações de propriedade orientadas por modelos de negócios e regidas por acordos de usuários”. Esta definição dá grande ênfase às dimensões políticas e econômicas das plataformas.

Para além do termo, quais as nuances da chamada “plataformização da web”?

A ideia de “plataformização da web” foi proposta, pela pesquisadora holandesa Anne Helmond, para discutir como o modelo computacional adotado por plataformas como Facebook e Google estão, de forma acelerada, tornando-se um modelo para as arquiteturas de sites da WWW. Ao se adaptarem, para intercambiar dados por meio de recursos como os botões “Like”, anúncios programados etc., os sites da chamada “open web” passam a operar na lógica tecnoeconômica das plataformas. Nesta tendência, é central o papel das APIs que, de modo cada vez menos aberto, operacionalizam o fluxo de dados entre as partes envolvidas.

Ainda sob a lógica da semântica e das relações de sociabilidade, o que caracteriza a “sociedade da plataforma”? Expressões como “sociedade da informação” ou “sociedade em rede” já não definem nosso
estágio de convívio digital?

“Sociedade da Plataforma” é o termo que dá nome ao já citado livro, lançado no fim de 2018, pelos pesquisadores holandeses Jose Van Dijck, Thomas Poell e Martijn de Waal, que, de certo modo, consolida um conjunto de pesquisas realizados por eles, e outros pesquisadores, há quase dez anos. O argumento central da obra é que os diferentes tipos de plataformas são artefatos centrais para a (re)organização das relações contemporâneas. Os autores se referem não apenas às mídias sociais, mas, também, às plataformas infraestruturais (nos servidores da Amazon, por exemplo, funcionam muitas outras plataformas) ou às plataformas setoriais das áreas de saúde, transporte, educação etc.

O termo “Sociedade da Plataforma”, inevitavelmente, nos remete a propostas anteriores, como “Sociedade do Espetáculo” (Guy Debord), “Sociedade do Risco” (Ulrich Beck), e, em especial, “Sociedade em Rede”, proposta pelo sociológico Manuel Castells, nos anos 1990. Uma vez mais, a metáfora
“plataforma” mostra-se potente para as discussões sobre o tempo presente, mas, também, com limitações, inclusive, por focar excessivamente nas experiências dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. É enorme o desafio de compreendermos o modo como as plataformas emergem em contextos específicos, a exemplo do Brasil. Acho que um bom caminho está em não
pensarmos tanto em “Sociedade da Plataforma”, mas, de modo mais cotidiano e situado, em “plataformização do social”, isto é, nas reconfigurações constantes das relações contemporâneas, a partir das lógicas das plataformas.

No complexo “jogo” de tensões econômicas, sociais e/ou tecnológicas, articulado/mediado pela internet, quais seus prognósticos em relação à capacidade de resistência, por parte dos indivíduos (prosumidores), aos processos de concentração de poder, ou, por exemplo, à disseminação de ideais de ódio?

Atualmente, é difícil ser otimista. O aumento das desigualdades econômicas,
dos discursos e atos de ódio e intolerância, assim como a evidente crise socioambiental com que já lidamos a cada dia, agrava o generalizado sentimento de pessimismo ou fatalismo. Neste processo, não é difícil
perceber que a plataformização da vida cotidiana está mais a serviço dos interesses individuais e comerciais do que daquilo que Van Dijck, Poell e de Waal chamam de “valores públicos” — isto é, a busca por um bem comum.

Por outro lado, no “jogo” com as próprias plataformas, diversidades se revelam e conquistam visibilidade, novas resistências se articulam, e as próprias plataformas são questionadas. Neste caso, basta lembrar o quanto o Facebook foi exposto e pressionado a mudar, ou, ao menos, a se posicionar, Especialmente, após a eleição de Donald Trump. (Re)situar este debate no Brasil, e em outros países, porém, permanece um desafio.

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Carlos d'Andréa

Prof. Communication Studies at @ufmg , Brazil. Coordinator of @rest_ufmg .