Assalto no 415
Quando se mora no Rio de Janeiro, ser assaltado torna-se mais uma questão de “quando?” do que de “se?”. O morador da capital fluminense não diz “nunca fui assaltado”, mas “ainda não me assaltaram”. É por isso que quase todos os residentes desta cidade tão charmosa quanto violenta desenvolvem, ao longo de suas experiências, técnicas que lhes permitem escapar dos pequenos delitos urbanos. Alguns levam consigo além do celular verdadeiro, um estragado, para ser entregue a um potencial bandido. Outros preferem andar sempre em companhia, nunca sozinhos, para tornarem-se alvos menos desejáveis. A técnica que desenvolvi, há uns três ou quatro anos, foi nada convencional, mas mostrou-se muito eficiente. Como só foi testada uma única vez — a bem da verdade, o momento de desenvolvimento e o momento de teste da técnica foram quase que coincidentes –, não posso dizer se ela é de fato tão eficiente ou se foi mera coincidência ter funcionado na única vez em que posta sob o crivo da prática.
A linha 415 sobe a Rua Conde de Bomfim, na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Depois, o ônibus corta todo o Centro da cidade, pela movimentada Avenida Presidente Vargas. A seguir, passa pelo Aterro do Flamengo e Enseada de Botafogo, proporcionando uma belíssima vista aos seus amedrontados passageiros (amedrontados, explico, mais pela velocidade do ônibus, numa rota em que não há praticamente nenhuma parada, do que pela possibilidade de algum roubo). Após a rápida travessia por essa magnífica paisagem, que dá vista ao Pão de Açúcar e Morro da Urca, o coletivo percorre Copacabana pela célebre Rua Barata Ribeiro (na esquina da qual localiza-se um apartamento que um dia pertenceu ao craque Mané Garrincha, fato que sempre destaco aos meus amigos turistas). Nesse trecho da Barata Ribeiro, já que a rua é paralela à orla da praia mais famosa do mundo, pode-se ver nas janelas do lado esquerdo do ônibus, de tanto em tanto, na quebra de cada quarteirão, um pedacinho pequeno do mar. Por fim, o ônibus segue rumo ao bairro dos artistas, o Leblon.
Todos os dias, eu subia em um exemplar da linha 415 e descia na divisa entre os bairros de Botafogo e Copacabana, onde ficava o escritório em que eu trabalhava. Como meu horário não era muito usual, eu dificilmente tinha o desprazer de pegar o ônibus cheio. No começo, eu tinha uma certa resistência em fazer minhas leituras com o veículo em movimento, mas, em virtude da crise de consciência que me abatia sempre que eu desperdiçava os 40 minutos da viagem olhando para o infinito através da janela, passei a me habituar a consumir meus livros durante aqueles momentos diários. Em pouquíssimos dias eu já conseguia ler perfeitamente durante o trajeto, a despeito das freadas e aceleradas bruscas a que o motorista nos submetia.
Nessa época, todas as minhas manhãs eram mais ou menos iguais. Eu acordava lá pelas oito, tomava um copo de leite junto com um pão com manteiga, tomava banho, trocava de roupa, descia pelo elevador do prédio, sorria para o porteiro, andava em direção à Conde de Bomfim, fazia sinal para o motorista, subia no ônibus, sorria para o motorista, atravessava a catraca, me sentava do lado esquerdo para poder apreciar a vista na Zona Sul, abria um livro, puxava a cordinha, descia do ônibus, caminhava até o edifício em que eu trabalhava, subia o elevador, sorria pra secretária, sentava-me na minha cadeira e começava a redigir relatórios (que, assim como as minhas manhãs, também eram todos iguais). Apesar da minha rotina ser completamente regular, consigo me lembrar de exatamente cada aspecto peculiar do dia em que desenvolvi uma técnica para não ser assaltado no Rio de Janeiro. Acordei atrasado lá pelas oito e meia, tomei somente um copo de leite porque não tinha tempo para o pão, tomei uma ducha, troquei de roupa, desci pelo elevador do prédio, sorri para o porteiro, andei em direção à Conde de Bomfim, fiz sinal para o motorista, subi no ônibus, sorri para o motorista, atravessei a catraca, me sentei do lado esquerdo do ônibus e abri A História de Mayta, do Mario Vargas Llosa, o melhor dos romancistas latinos. A partir daí, a rotina se quebrou.
Já na Presidente Vargas, na altura da Central do Brasil, entram no ônibus dois rapazes. Os dois cochichando entre si, de boné e óculos escuros e olhando para trás e para os lados o tempo todo. Um deles caminha até o final da condução e se senta. O outro se senta na primeira fileira. Olho pro lado, vejo uma moça de uns vinte e poucos anos de idade, tirando o celular da bolsa e guardando dentro do decote. Como qualquer carioca, ela havia entendido o significado da estranha movimentação dos dois homens que nos acompanhariam a partir daquele ponto da viagem. Tento olhar, disfarçadamente, para o que se sentou na cadeira da frente. Apesar do óculos de sol, percebo que nossos olhares se coincidem, ambos fraquejamos e desviamos a vista. Estou tenso, começo a suar frio. Pela janela, vejo que o ônibus atravessa o formigueiro humano que se torna a Avenida Passos em dias úteis. E se eu puxar a cordinha e descer do ônibus? Não, eles não deixariam. O rapaz posicionado ao fundo do veículo certamente me impediria de descer. E se eu disser que não estou com o celular? Será que eles acreditariam em mim? Acho complicado. Vou pelo menos guardar minha carteira de identidade na cueca. Também vou tirar os cartões de crédito e a maior parte do dinheiro. Mas não todo o dinheiro. Se tiro tudo, é certo que eles desconfiam. Quem anda com a carteira vazia? Olho de novo pro lado, a moça está rezando baixinho. Eu não tinha percebido até então, mas ela é muito bonita. Tem uma pinta bem ao lado do sorriso, um charme. Uma pena que logo não terei mais celular, senão eu poderia pedir seu número para falar com ela qualquer dia. Logo mais sairemos do Centro e entraremos no Aterro do Flamengo e é aí que os dois anunciam o roubo. No Aterro, quase não há pontos de ônibus, não tem para onde fugir. Será que eles estão armados? Tomara que não estejam. Geralmente, eles levam apenas uma faca. Meu celular não tem senha para desbloqueio, é verdade. Eles vão ver todas as minhas conversas. Graças a Deus, não tenho nada comprometedor. Imagino eles lendo minhas mensagens e pensando que o idiota do ônibus não tinha uma conversa interessante sequer. Se eu for na Uruguaiana na semana que vem, é capaz de eu conseguir comprar meu celular por um bom preço. Vou dar mais uma olhadinha para o bandido sentado lá na frente. Cacete, ele olhou pra mim. Ele tá suando mais do que eu, parece que também está com medo. Medo de quê, rapaz? De alguém aqui te roubar? Puta merda, é isso.
Fico em pé e anuncio:
– Atenção, todo mundo! — vejo que o coletivo está mais cheio do que eu imaginava. Todos os olhos voltam-se para mim e noto que todos já estavam se preparando para o iminente assalto. — Atenção, atenção que não é brincadeira! Isso aqui é um assalto, mas se todo mundo colaborar, eu não vou precisar machucar ninguém!
Olho pro lado, vejo um tímido sorriso florescer no rosto magro da moça bonita. Ela entendeu o que eu estava fazendo. Afinal, acho que quase todos entenderam, já que eu não tinha o menor jeito de delinquente. Minhas roupas, meu corte de cabelo, meus óculos de grau, tudo denunciava que eu só estava fazendo uma idiotice. Entretanto, seja porque os verdadeiros ladrões estavam nervosos, ou seja lá por quê, ninguém manifestou objeções ao meu anúncio de crime. Por isso, continuei:
– Vai funcionar da seguinte maneira, porque eu sou bandido, mas sou organizado: vou passar desde lá da frente até o final do ônibus recolhendo o dinheiro de todo mundo. Eu não quero celular, eu não quero bolsa, eu não quero anel. Quero só dinheiro vivo. Então, vocês já vão se preparando porque vou começar a passar agora.
Neste momento fico nervoso, mas me esforço para não demonstrar. O que é que estou fazendo? Que merda de ideia foi essa? Meu celular nem vale tanto, por que estou fazendo isso? Eles vão ficar putos. Eles vão querer me bater. Pior: eles vão descer comigo do ônibus e vão me matar. Eles são bandidos de verdade, eu sou só um imbecil. Mas agora já comecei, se eu parar fica tudo pior.
– Você, — digo ao assaltante da primeira fileira — quanto você tem aí?
– Tenho só vinte reais, mas pode ficar com tudo.
Eu arranco o dinheiro da mão dele, aliviado por ter passado pelo primeiro. Agora, preciso repetir o processo com todos os outros passageiros.
– Olha, pessoal, eu tenho uma faca aqui na calça — digo, apalpando de leve minha própria bunda –, então se eu ouvir alguém se levantando, esfaqueio o primeiro que eu vir.
Na terceira fila, tem uma velhinha. Peço-lhe o dinheiro, e ela me entrega, sorrindo, trinta reais. Ela sabe que aquilo é só um teatro e que, no fim, tudo será devolvido.
Continuo o processo, como se aquilo me fosse muito natural. Na hora de roubar a minha musa, percebo que ela me vê como um herói. E de fato sou. Estou salvando o ônibus de um roubo. Estou fingindo um assalto, para que o verdadeiro crime não se consubstancie. Genial.
Quando vou tomar o dinheiro da quinta pessoa, percebo que o assaltante do final do ônibus pulou pela janela. Consegui. Venci. Vou terminar a encenação e, depois, invento uma desculpa para expulsar do ônibus o ladrão que sobrou na condução.
Depois do último passageiro ser enfim roubado, viro-me em direção ao começo do ônibus e grito:
– Ei, você aí da frente! O primeiro que eu roubei!
– E-eu?
– É, você! Está me olhando por quê? Quer reagir?
– N-não, eu não estou olhando nada.
– Motorista! — elevo o tom de voz, para ser ouvido — Pode parar um instante? — no que sou prontamente atendido. — Agora, — voltando-me novamente ao rapaz que iria me roubar — você faça o favor de pular pela janela, sumir da minha frente. Senão, eu vou aí e te mato.
No que o rapaz me obedece, pulando janela afora, o ônibus inteiro começa a me aplaudir. Eu sou o salvador dessa gente toda. Olha quanto dinheiro eu tenho na mão. Vinte, trinta, cinquenta, setenta, noventa, cem… Mais de quinhentos reais! Salvei mais de quinhentos reais desse pessoal todo! Para mim é muito, mas, dividido por todos, daria menos de cinquenta reais para cada. Eu sou um herói! Para falar a verdade, a eles, mal faria falta esse dinheiro. Dividido, o valor é pequeno. Reunido é que faz diferença. Daria pra eu comprar bastante coisa. Somados, mais de quinhentos reais. Espalhados, menos de cinquenta por cabeça.
– Motorista, para de novo e abre a porta aqui atrás!
Ele me atende, e saio correndo por dentro de Botafogo.
E é por isso que nunca mais coloquei em prática o modo que inventei de evitar assaltos. Funcionar, até que ele funcionou, mas não quero mais correr o risco de cometer crimes por aí. Aliás, até hoje me pergunto: será que aqueles dois realmente iriam nos roubar ou minha intuição, assim como minha integridade, não estava tão forte naquele dia? É uma resposta que eu gostaria muito de ter. Por ela, eu pagaria quinhentos reais.