Eu confesso: matei minha mãe aos 6 (um desabafo sobre aceitação)

Carlúcio Vieira
5 min readApr 3, 2017

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Não, esse não é um relato à la Agatha Christie — minha mãe está viva e passa bem, obrigado! — ou uma sinopse de Xavier Dolan. Desde já, saiba que essas são algumas palavras agridoces sobre aceitação, afinal, “quem não quer se encaixar, fazer parte de?”

Essas eram as perguntas que eu me fazia lá atrás, dia após dia, quando mesmo sem entender a vida, as pessoas e todas as intenções que fazem do mundo o que ele é, jamais poderia prever o fardo do tal “ser diferente”.

E eu posso jurar: dói. Rasga o peito. Fere a alma. Ainda mais quando nem mesmo você, criança ou adulto, sabe como se defender do grupo de “iguais” pelo qual você está cerceado — lembre-se da lição de George Orwell: “os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que os outros”, certo?

E, por natureza, o tal paraíso denominado “ser igual” não era pra mim. Eu jamais obedeceria aos padrões ou “cumpriria os requisitos”. Não por não querer fazer parte, ao contrário (por quantas vezes, em prantos, eu não clamei por ser igual a todos os outros?). A verdade era que, por um milhão de motivos, eu não me sentia pertencente à distante ilha dos demais.

Lá atrás, o desgosto pelo futebol, a paixão incondicional por Madonna, o sobrepeso, os juízos de valor aferidos sobre a minha aparência. Esses são apenas algumas migalhas que fariam com que a vida e o jeito de ser fossem diferentes.

Afirmo por sentir nas palavras, no olhar, no tratamento direcionado pelos outros.

Enquanto alguns meninos da minha sala dançavam pra mim, gritando “o Carlúcio é viado” — e aquilo soava com um verdadeiro, “olha aqui, seu zero à esquerda, você é diferente e, por isso, vamos fazer uma dança idiota para mostrar a você e todos os outros o quanto você não se encaixa, combinado?” — eu ainda teria a honra de entrar na lista de meninos mais feios da sala por algumas vezes.

Um adendo: lá na frente, compreendi que, para algumas pessoas com as quais cruzei ao longo do caminho, beleza se tornaria uma questão de caráter, desgraçadamente. Se você está no padrão e as suas fotos no Instagram contam com inúmeras curtidas e comentários de pessoas que realmente não gostam ou ligam pra você, ok, “you’re in”. Porém, se você foge ao ritmo, meus sentimentos: você será visto, no mínimo, como alguém preguiçoso, desleixado, sem o mínimo de noção (“como ele ousa postar algo assim?”), e que não, não faz parte do grupo (“you can’t sit with us, sorry”).

Entre estes e alguns episódios posteriores, eu constataria que já não era possível olhar nos olhos das outras pessoas por mais de cinco segundos: sim, eu havia internalizado o sentimento de indiferença que aquelas pessoas tinham ao me ver — e, pra piorar, sempre imaginava o que elas estariam pensando a meu respeito enquanto olhavam pra mim.

É a verdade. E isso vem de anos atrás, antes mesmo dos altos e baixos da adolescência.

E mesmo na tenra infância, devido a tantas dicotomias, foi preciso criar uma casca, uma proteção, ainda que muito maleável.

Em um desses episódios de autodefesa, enquanto a professora contava a todos que eu tinha uma família diferente, longe do núcleo “papai, mamãe e irmãos”, eu gritava por dentro.

Logo, o “assassinato” ocorreu.

E foi ali que proferi que a minha mãe havia morrido em um acidente de avião, e que, por esse motivo, morava com a família do meu pai. Pronto! Crime cometido.

Era a única forma encontrada pelo garoto que vivia em mim de justificar que eu não havia sido deixado (e não fui!), tampouco que eu era diferente pois assim se fez meu desejo. As circunstâncias é que teriam me levado até ali, entende? Assim como, por muitas ocasiões, eu tentava justificar todas as minhas diferenças.

Dentro de mim havia uma mistura de absolvição, justificativa, culpa e não aceitação que foram carregadas no peito por anos.

E o que aqui denomino como “episódios de autodefesa” se repetiram, todos os dias.

Mas um dia, você se olha e compreende. Tudo passa a fazer sentido. Enfim, você nota que ser diferente não é um problema, pelo contrário — ainda que você saiba que, como muitas das coisas da vida, há um preço a ser pago.

Logo, a grande questão era: você vai ser você mesmo, se aceitar como você é, com as suas belas e inesquecíveis cicatrizes, ou seria melhor tentar ao máximo ser parte do “grupo”? O que soa melhor: ter ao seu lado 5 ou 6 que correm contigo, ou uma multidão que pouco se importa com o que você realmente pensa ou com o que há por trás desses olhos cheios de medo?

Ou eu seria o menino com as calças 48, 105 kg, sem o último V3 ou um Orkut com os índices de “Legal”, “Sexy” e “Confiável” recebidos apenas por aqueles realmente estavam comigo (cercado de pessoas que realmente me amavam pelo simples fato de existir), ou eu redirecionaria todos os meus esforços para me encaixar.

A primeira opção era óbvia, e estava decidido: eu a levaria para a vida.

Fazendo minhas as palavras da admirável Andresa de Carvalho, minha coordenadora de conteúdo na Hotmart, a grande reflexão era: será que vale mesmo a pena comer o bife frio em busca da foto perfeita?

O fato é que, hoje, as diferenças permaneceram e se acentuaram, e o fardo de ser diferente vem sendo dividido por milhões de pessoas que passaram e passam pelo mesmo, em suas infâncias, adolescências, na vida adulta e na terceira idade (ageísmo existe, é sinônimo de machismo e nós também temos que falar sobre isso!).

O bullying, o preconceito, a discriminação e, em paralelo, o sonho pela aceitação, não possuem uma só forma, um só endereço, mas é possível vê-los como verdadeiros locadores, que batem à porta nos cobrando pela nossa liberdade, pela nossa existência.

Pois saiba: você não precisa e não deve se encaixar. A sua beleza, sua expressão, sua existência única, indefectível, fazem de você um ser supremo. A gente não pode, não precisa e não vai se submeter.

A mulher, o negro, gay, lésbica, bi, trans, pobre, gordo, o dito “feio” e qualquer um/uma de nós… nós não vamos deixar que mais belezas passem despercebidas, que mais talentos sejam subjugados, que mais criatividade seja reduzida a pó por pessoas que ainda não conhecem a magnanimidade que cada indivíduo possui e que estão aí, batendo à porta.

E eles que batam. Eles que se incomodem. Eles que nos julguem e nos cobrem pela nossa expressão singular neste mundo. O jeito escrachado, as calças 48, o cabelo colorido, a loucura, a orientação, a cor da pele, os traços. Eles estão aqui e aqui vão ficar. Eu não sou locatário da minha liberdade — sou o proprietário dela. Amém.

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Carlúcio Vieira

25 anos, Belorizontino, Taurino com ascendente em Leão, Publicitário, Copywriter na Hotmart.