Três poemas de Sândrio Cândido
deus tem corpo | sente fome, sede e frio | goza | e sangra
||| SANKOFA
As palavras que escrevo
são aquelas que a vó me disse
sob a luz das lamparinas
Ela não soube escrevê-las
quando as ouviu de sua mãe
Através da memória
tudo sobreviveu
O mesmo fez a bisavó
quando em uma noite de chuva
escutou da sua mãe
(enquanto o senhor dormia)
as palavras que tinha ouvido
da boca da outra mãe
não sei onde tudo começou
mas sei que não terminará
enquanto a nossa pele for caminho
enquanto formos
resistência.
||| HERESIA
no sertão mineiro
as vós penteiam os cabelos das netas
e falam
deus tem corpo
sente fome, sede e frio
goza
e sangra
enquanto penteiam
as vós dizem que o mundo é grande
e perigoso
deus tem cheiro
toma banho, lava os pés,
dorme
no sertão mineiro
as tias colocam os olhos na estrada
e dançam
deus é perto
gosta de receber cafuné
transa
enquanto dançam
anunciam com suas saias rodadas
o corpo é benção
deus tem mãos
lábios, olhos, barriga
chora
no sertão mineiro
a mãe coloca água para ferver
e canta
deus brinca de ser marinheiro
ele teve infância
deus não crê
enquanto canta
a mãe pinga nas filhas
a esperança
no sexo úmido dos amantes
deus comunga
e samba.
||| PAISAGEM
A vó fiava todos os dias um vestido invisível
era de rendas, de cores, de algodão,
achava tão bonito
é julho, tá tudo tão seco,
agosto é pior
tudo fica mais sertão
morre o gado
as árvores perdem as folhas
morre o rio
só não morre a esperança
acabamos de celebrar o espírito santo
fizemos folia,
a bandeira vermelha
o canto das mulheres cortando o tempo
o rosário de andorinhas
era tão lindo
ainda assim
tá tudo tão agreste
faz falta um brejo neste corpo
a vó fiava todos os dias um vestido invisível
um casaco de pássaros
seus olhos iam longe quando fiava
igual aos lábios das lavadeiras
quando no cansanção
tiravam a nódoa das roupas
o que não sabíamos naquele tempo
é que em nós
a vó fiava a beleza
nem imaginávamos
que as lavadeiras cantando
plantavam dentro dos nossos olhos
a poesia
tá tudo tão grota
mas ainda temos as palavras
cisterna aberta
onde os deuses dormem.
||| Sândrio Cândido (Minas Gerais, 1991) é poeta e professor. Graduado em Filosofia, atualmente reside em Cali (Colômbia). Possui poemas publicados em revistas digitais, além do livro Epifania (Patuá, 2014). E-mail: sandriocp@yahoo.com.br