Três poemas de Sândrio Cândido

Carnavalhame
2 min readJun 24, 2019

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deus tem corpo | sente fome, sede e frio | goza | e sangra

||| SANKOFA

As palavras que escrevo

são aquelas que a vó me disse

sob a luz das lamparinas

Ela não soube escrevê-las

quando as ouviu de sua mãe

Através da memória

tudo sobreviveu

O mesmo fez a bisavó

quando em uma noite de chuva

escutou da sua mãe

(enquanto o senhor dormia)

as palavras que tinha ouvido

da boca da outra mãe

não sei onde tudo começou

mas sei que não terminará

enquanto a nossa pele for caminho

enquanto formos

resistência.

||| HERESIA

no sertão mineiro

as vós penteiam os cabelos das netas

e falam

deus tem corpo

sente fome, sede e frio

goza

e sangra

enquanto penteiam

as vós dizem que o mundo é grande

e perigoso

deus tem cheiro

toma banho, lava os pés,

dorme

no sertão mineiro

as tias colocam os olhos na estrada

e dançam

deus é perto

gosta de receber cafuné

transa

enquanto dançam

anunciam com suas saias rodadas

o corpo é benção

deus tem mãos

lábios, olhos, barriga

chora

no sertão mineiro

a mãe coloca água para ferver

e canta

deus brinca de ser marinheiro

ele teve infância

deus não crê

enquanto canta

a mãe pinga nas filhas

a esperança

no sexo úmido dos amantes

deus comunga

e samba.

||| PAISAGEM

A vó fiava todos os dias um vestido invisível

era de rendas, de cores, de algodão,

achava tão bonito

é julho, tá tudo tão seco,

agosto é pior

tudo fica mais sertão

morre o gado

as árvores perdem as folhas

morre o rio

só não morre a esperança

acabamos de celebrar o espírito santo

fizemos folia,

a bandeira vermelha

o canto das mulheres cortando o tempo

o rosário de andorinhas

era tão lindo

ainda assim

tá tudo tão agreste

faz falta um brejo neste corpo

a vó fiava todos os dias um vestido invisível

um casaco de pássaros

seus olhos iam longe quando fiava

igual aos lábios das lavadeiras

quando no cansanção

tiravam a nódoa das roupas

o que não sabíamos naquele tempo

é que em nós

a vó fiava a beleza

nem imaginávamos

que as lavadeiras cantando

plantavam dentro dos nossos olhos

a poesia

tá tudo tão grota

mas ainda temos as palavras

cisterna aberta

onde os deuses dormem.

||| Sândrio Cândido (Minas Gerais, 1991) é poeta e professor. Graduado em Filosofia, atualmente reside em Cali (Colômbia). Possui poemas publicados em revistas digitais, além do livro Epifania (Patuá, 2014). E-mail: sandriocp@yahoo.com.br

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