Feminismo Asiático: Identidade, raça e gênero.

Pela vocalização e empoderamento de mulheres com ascendência asiática no movimento feminista contemporâneo.

Caroline Ricca Lee
20 min readMar 6, 2017
Imagem: "Resist verbal abuse" (2013), ação virtual organizada pelo coletivo feminista e organização não-governamental "Bcome and Media Monitor for Women Network".

Atenção: No texto há imagens e relatos de violência contra mulheres asiáticas no curso da História, especificamente em períodos de guerra, sendo a exposição de tais fatos e fotos necessárias no objetivo de não mais perpetuar, ou ser conivente, com o apagamento e silenciamento de mulheres asiáticas na História da Humanidade.

// s o u n d t r a c k — DESCOLONIZE O AUDÍVEL!

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“Cultura”, é um substantivo feminino que designa padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes, e assim distinguem um grupo social.

Quando falamos sobre cultura do machismo, está intrínseco a compreensão no qual vivemos sob estruturas patriarcais; patriarcado este criado através de processos históricos simbióticos à hierarquias de poder. A hegemonia construída através do imperialismo colonialista trás consigo um privilégio ainda — infelizmente — duradouro, e que continua à dizer qual é o curso da História. Ou mesmo, quem consta na tão dita “História da Humanidade”.

Esta História contada para nós desde tão pequenos, seja escrita em livros do ensino fundamental, ou imageticamente construída em filmes, trás a superfície o factível e palpável apagamento da vivência de mulheres, e principalmente, indivíduos não-brancos. O que dirá então, de mulheres em recorte racial e suas vivências.

Porque esse prólogo? Porque entender as estruturas do poder é entender sobre dominação e violência de gênero. E principalmente, é entender a história do feminino asiático.

Imagem: “A High Castle Lady’s Dainty ‘Lily Feet’” (1911), fotografia por Underwood & Underwood (London & New York). Livro “Women of All Nations”, página 532, MXMXI.

A amarração chinesa dos pés foi um costume de mutilação feminina com indícios de inicio no século X, na China. A técnica se baseava em quebrar o pé de crianças do sexo feminino em 4 partes distintas, dobrado, enfaixado, no objetivo de atingir o tamanho de 7 a 10 centímetros. As mães iniciavam suas filhas nessa técnica de mutilação quando elas chegavam aos 5 ou 6 anos.

A mulher que não tinha seus pés amarrados não conseguia um bom casamento, consequentemente era humilhada pela sociedade. Ainda, havia também o credo de que ao amarrar os pés, as mulheres iriam proporcionar maios prazer sexual aos homens, pois os músculos da vagina se tencionavam com a dor e a dificuldade na movimentação. Diversos filósofos e poetas chineses desse períodos declaravam e se inspiravam profundamente na imagem dos pés pequenos como algo erótico.

Além da privação do movimento consequente de dor, elas eram obrigadas à serem dependentes continuamente de alguém para ajudá-las em suas vidas.

Apenas em 1911, a amarração dos pés foi oficialmente banida durante a Revolução Cultural Chinesa (1966–76), oficiais governamentais chegavam à invadir casas de famílias, e forçavam as mulheres com amarração nos pés tirarem suas faixas, para depois coloca-las nas janelas como forma de humilhação. Logo, essas mulheres sofreram opressões, mutilações e violências antes e depois da abolição dessa prática.

Vídeo: “Little Foot” (2014) // Diretoras: Su Chunxuan, Li Caiyuan e Dai Qingqing — Diretor de Produção: Shu Xiao — Diretor de Arte: Xiao Ou. Curta de animação sobre a prática milenar chinesa de amarrar os pés de mulheres para torná-los menores.

A cultura do estupro provém da desumanização de mulheres na violência sexual como arma de guerra, tática inerente da corrida colonialista, afinal a fragilização de um povo inicia-se na tomada, apagamento e violência contra seu poder, suas terras, sua cultura, e naquilo também de então propriedade masculina e social: mulheres e crianças. Ainda, o abuso sexual também foi forma de miscigenação forçada, para apagamento étnico do povo conquistado, e prolongando-se em demais gerações como estado de controle social sobre as mulheres.

A violência contra mulheres, historicamente, tem sido apenas citada como efeito colateral.

E tal apaziguamento reforça a cultura do estrupo, do machismo e da misoginia, pois perpetua-se assim a História de Mulheres estar continuamente relegada à consequência.

Imagem: Fotografia de quatro mulheres coreanas obrigadas à escravidão sexual pelo exército e governo japonês, chamadas de “Mulheres de Conforto”, na Segunda Guerra Mundial. (1944). Pvt. Hatfield/ U.S. ARMY / National Archives.

“Mulheres de conforto”, ou “mulheres de alívio”, era o termo utilizado para designar mulheres forçadas à prostituição e escravidão sexual nos bordéis militares japoneses durante a II Guerra Mundial.

Calcula-se que entre 50.000 e 200.000 mulheres tenham sido violentadas, mas ainda existem discordâncias sobre os números exatos. Historiadores e pesquisadores têm declarado que a maioria delas provinham da Coreia e China, mas mulheres das Filipinas, Tailândia, Vietnã, Malásia, Taiwan, Índias Orientais Neerlandesas, Indonésia e outros territórios ocupados pelo Império do Japão também foram forçadas aos “postos de conforto”.

Tais postos localizavam-se no Japão, China, Filipinas, Indonésia, Malásia Britânica, Tailândia, Birmânia, Nova Guiné, Hong Kong, Macau, e no que então era a Indochina Francesa.

Vídeo: “Never Ending Story: Tragedy of Japanese Military Sex Slaves” (2014), é um curta de animação financiado pelo Ministério de Igualdade de Gênero e Família da Coréia do Sul, no objetivo de trazer à tona a história das mulheres forçadas à escravidão sexual na Segunda Guerra Mundial.

O avanço colonialista patriarcal é tão emaranhado no contemporâneo que mal percebemos o quanto vivemos numa contínua “Síndrome de Estocolmo”, sendo coniventes — senão obrigadas à conivência — , ou muitas vezes comemorando — senão obrigadas à comemorar — o violentador; não sendo simples o motivo: Sobrevivência.

Essa conivência vêm em forma de perda de identidade, perda de auto-valor, perda de memórias, perda no direito de fala, entre tantos outros roubos diários no enfrentamento trazido pelo racismo, xenofobia, apropriação cultural, objetificação e fetichização, resultante de tal permissividade silenciosa e atemporal do poder de raças opressoras sob raças oprimidas.

A alteridade como imposição é uma ferida purulenta que dói em cada passo na lembrança contínua deste lugar inalterável como o “Outro”.

Ainda, como ser A Outra te faz desde crua infância entender como gênero e raça transbordam em tudo que a vivência pode tocar. Assim, como um frasco que aguarda seu rótulo na escala fordista, primeiro, por não carregar em fenótipo uma tez branca, recebo a etiqueta de “Alheio”, segundo, por ter uma vagina, sobrepõe-se a etiqueta de “Objeto”.

Imagem: Fotografia de crianças vietnamitas fugindo de seu vilarejo após um bombardeio aéreo de líquidos inflamáveis, Guerra do Vietnã (1972). Foto por Hyunh Cong Ut, da agência Associated Press, recebeu o World Press Photo de 72 e o Pulitzer de Reportagem Fotográfica em 73.

Phan Thi Kim Phúc, também conhecida como Kim Phúc (Trảng Bàng, Vietnã, 2 de abril de 1963), é embaixadora da Boa Vontade da UNESCO.

Entretanto, sua maior notoriedade é também por ser a menina de 9 anos que aparece no centro da icônica foto tirada na Guerra do Vietnã em 1972, correndo nua em fuga de sua aldeia, pois estava com queimaduras e ferimentos expostos após o bombardeio de napalm (um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, utilizados como armamento militar).

Vídeo: Entrevista com Phan Thi Kim Phúc, 40 anos após o bombardeamento de napalm em vilarejos no Vietnã, realização do canal "Al Jazeera" em 2012.

Há uma aparente permissividade em objetificar o corpo de mulheres não-brancas. Não surpreendente tal fato, após entender como funciona as relações de poder, privilégio e dominação, perante etnia e gênero. O mais cruel é como o poderio sobre este corpo considerado exótico vêm consigo o prazer de um auto-reconhecimento hegemônico atemporal.

Como mulher de ascendência asiática, percebo como o processo de objetificação do meu corpo é semelhante ao exótico contido em uma viagem à Ásia: percurso em um território alheio, recheado de desejos egocêntricos perante o quão transformador serão as experiências de alteridade, estereotipado por mercados capitalistas, estereótipos que desumanizam à ponto de ser plausível o livre consumo e fetiche lascivo de indivíduos como produtos, ainda, na irrelevância sobre tudo isso se tratar e envolver pessoas reais.

Ainda, a suposição tão correta da minha subserviência como mulher asiática, deixa implícito como todas essas violações contra meu corpo serão conscientes, e eu ainda devo comemorar ser ainda pelo menos quista. Afinal, que mulher asiática nunca ouviu: “Ah, você está solteira? Eu tenho um amigo que adora mulheres orientais!”. Ou seja, eu não tenho o direito de poder me relacionar com alguém por ser um indivíduo livre, meus relacionamentos claramente se dão pela minha servidão racial.

Imagem: Um bebê vela a sua falecida mâe, em meio à demais corpos abandonados após o Massacre de Nanquim, autor da fotografia desconhecido. (1937)

Em uma das primeiras invasões japonesas à China, na Segunda Guerra Sino-Japonesa travada antes e durante a II Guerra Mundial, em 1937, Nanjing (ou Nanquim), a província de Jiangsu, durante mais de seis semanas foi aturdida por um massacre genocida, conhecido historicamente pelo grau de violência nos casos de estupros e torturas em massa cometido por tropas do Império Japonês.

O número de mortos, infelizmente, é impreciso em função da maioria dos documentos militares sobre os assassinatos terem sido destruídos após a rendição do Japão, mas estima-se que 300 mil seres humanos foram mortos durante o chamado “Massacre de Nanquim”, ou também conhecido como “Estupro de Nanquim”, pois milhares de mulheres foram violentadas, torturadas, e seus corpos destrinchados abandonados pelas ruas de Nanquim.

Mulheres ainda vivas após o massacre foram transferidas para os chamados “postos de conforto”, e inicia-se assim o uso do termo “mulheres de conforto”, ou “mulheres de alívio”, utilizado para designar jovens meninas forçadas à escravidão sexual nos bordéis militares japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.

Vídeo: Iris Chang, escritora e autora americana de ascendência chinesa, escreveu diversos livres sobre a imigração chinesa nos EUA, porém ficou mais conhecida com seu livro "The Rape of Nanking" (1997), o primeiro livro em língua inglesa à expor as atrocidades ocorridas em Nanquim na Segunda Guerra Mundial.

No Ocidente, a entrada nesta vagina asiática é perseguida como senso de empreitada na cultura “Orientalista”: Tão transformadora, egocêntrica e fetichenta, que não é preciso em nenhum momento, lembrar que se trata de uma mulher. Uma pessoa. Um ser vivo.

E tais edificações perante o desejo de consumir uma mulher asiática carrega então consigo quereres soturnos de servidão, submissão, e até perversidade sexual. O fetiche, o “yellowfever”, a objetificação, pouco têm haver com o relacionamento romântico (e quão dolorido ainda é quando a fetichização existe nos subterfúgios do amor), e sim com domínio e sexo. Domínio e sexo levam ao consumo, o que desenvolve e pavimenta toda uma indústria de turismo sexual imensa praticamente em toda a Ásia.

Enquanto isso, fechamos os olhos para o fetiche por corpos pré-púberes e colegiais no Japão, para as denúncias de estupro e pedofilia contra militares que habitam ocupações americanas ainda em curso na Coréia do Sul e Okinawa, como a pobreza e marginalidade coloca mulheres no Sudeste Asiático, Índia e Paquistão em situações de risco, abuso sexual e tráfico humano, o infanticídio de meninas na China, o estupro como arma de guerra no encarceramento e escravidão sexual de mulheres yazidis, a educação feminina na Ásia ser ainda escassa pois é preferível casar uma filha do que educá-la, a existência de que no mundo hoje existem ao menos 45,8 milhões de escravos modernos, sendo que dois terços destes vivem na área da Ásia-Pacífico, entre tantas outras denúncias que graças ao advento da virtualidade podem chegar à nós em maior demanda, porém, continuamente ainda são vozes silenciadas.

Imagem: Fotografia de menina que acaba de ser abandonada nas ruas de Hong Kong, foto por Dennis Stock. (1959)

No final da década de 1970, o governo da República Popular da China (com exceção da província de Henan) lançou a chamada “Política do Filho Único”, implantada no governo com o objetivo de reduzir o crescimento populacional, consistia numa lei no qual todo casal era proibido de ter mais de um filho. Em 2015, após mais de 30 anos, o governo colocou fim nesta lei numa política de “relaxamento perante o controle de natalidade”, sendo então permitido atualmente que cada casal tenha até dois filhos.

Além da redução do número de jovens, a restrição a um único filho também provocou um desequilíbrio de gênero, pois a maior causa de interrupção na gravidez em países como China e Índia, se da pela concepção de um bebê do sexo feminino. Quando a gravidez não é interrompida, essas meninas correm risco de serem abandonados ou assassinadas quando recém-nascidas, expostas ao tráfico sexual e a violação de seus direitos humanos.

A ONU estima que 200 milhões de meninas são mortas atualmente no mundo pelo chamado “genocídio pelo gênero”. Sendo que 30 milhões de meninas de origem chinesa têm seu status como desaparecidas, desde a instituição da “Política do Filho Único”, gerando o que atualmente os especialistas chamam de “bomba demográfica”, pois hoje há um número muito maior de homens na China do que mulheres.

Vídeo: O documentário “It’s a Girl” (2002) têm como título as três palavras mais letais em diversos lugares no mundo para o indivíduo: “É uma menina”.

Por mais dolorida que seja trazer à tona tantas memórias históricas quando estas principalmente carregam consigo percursos violentos inerentes, tal dor não pode nos conter no objetivo de tornar a História de Mulheres não mais apagada, e fazer valer a memória de tantas antepassadas, pois não em vão foram suas existências.

Abrir a ferida purulenta de ser A Outra é permitir que o sangue jorre até a última gota, sendo o estancamento apenas proveniente de um corpo sadio e são. Sanidade e vitalidade intrínsecas à auto-valorização como indivíduo, reconhecimento histórico, empoderamento de gênero, equidade e sustentabilidade social, garantia de educação e saúde, reconciliação e acolhimento em núcleos familiares/fraternos, e tantos outros direitos que já deveriam ser previstos desde nosso nascimento como regra, mas continuam apenas como exceções meritocráticas.

A História de Mulheres não pode mais ser apagada. A História de Mulheres Asiáticas não pode ser silenciada na perpetuação do colonialismo, do imperialismo ocidental, e do patriarcado misógino, seja em território asiático, seja na numa vivência diaspórica.

Imagem: Bairro da Liberdade, São Paulo — década de 40. Foto por Hildegard Rosenthal.

Como mulher. Como brasileira. Como neta da diáspora sino-japonesa, exijo que minha história e minha existência não seja mais apagada, relegada à consequência, ou apropriada em forma de objeto. Exijo que a proclamação do meu estado de opressão como mulher e indivíduo asiático no Brasil seja ouvido e considerado. Exijo que meu contexto racial não mais seja subjulgado: Eu. Não. Sou. Branca.

E acima de tudo, exijo ser vista como uma pessoa, um ser humano, e não uma metáfora cultural.

O movimento feminista brasileiro precisa ter como pauta a vivência de mulheres não-brancas como algo além da mera representatividade midiática, que vende batom e roupa muito bem, mas pouco transforma o estigma social carregado por estas mulheres.

Precisamos promover a INCLUSÃO de discursos e vozes de mulheres reais no feminismo no intuito deste não galgar um teor dogmático e/ou exclusivista, acabando por pasteurizar a compreensão do que é ser mulher.

Imagem: Em 1903, Qiu Jin muda-se para o Japão por motivos de acadêmicos, e nesse período começa por apenas vestir-se com ternos masculinos, sendo uma das primeiras "crossdressers" na história do feminismo asiático. Fotografia por autor desconhecido, meados de 1903–1910.

A feminista revolucionária e escritora Qiu Jin nasceu em 1875, na China. Ela era uma grande vocalizadora dos direitos da mulher, e especialmente pressionava sociedade e governo para o melhor acesso de mulheres à educação.

Nesta época era ainda um costume comum a amarração dos pés, e Qiu Jin foi uma grande ativista contra tal mutilação, encorajava mulheres à resistir as pressões familiares e governamentais, na busca por conquistarem sua independência financeira através da educação.

Qiu Jin também foi poeta e ensaísta, sendo suas falas baseadas em questões de gênero, política e identidade.

Imagem: Foto do Getty Images

Inclusão no movimento feminista é:

  • Empatia à vocalização de mulheres não-brancas quando estas determinam quais são suas opressões;
  • Compreensão que intrínsecas são as lutas perante a derrocada das violências de gênero e violências raciais;
  • Fortalecimento contra um patriarcado não único, pois infelizmente a pluralidade cultural carrega consigo também distintas formas de violentar cada mulher, e infelizmente, muitas vezes atuam ainda em sobreposição;
  • Solidariedade anti-racista na busca pela decaída de hierarquia étnicas e raciais;
  • Solidariedade anti-xenofobia, pois somos brasileiras, e não mais desejamos ser colocadas como estrangeiras em nosso próprio país;
  • Solidariedade contra o colonialismo e imperialismo contemporâneo, na possibilidade de fala sobre apropriação cultural, objetificação, fetichização, alteridade imposta, embranquecimentos e “whitewashing”, até a ferida estancar;
  • Sororidade na luta pelo empoderamento e equidade de gênero na compreensão de que os padrões de opressão são influenciados inerentemente pelos sistemas interseccionais da sociedade — sendo estes raça, gênero, classe, capacidades físicas/mentais e etnia, como já tão bem dizia Kimberlé Crenshaw.
Imagem: Mulheres iranianas protestando contra o uso do hijab dias após a Revolução Iraniana, 1979. Foto por Hengameh Golestan.

Em 8 de março de 1979, mais de 100 mil mulheres se reuniram nas ruas da capital iraniana para protestar contra a decisão do governo islâmico em tornar legal a obrigatoriedade de mulheres usarem o hijab quando estivessem longe de suas casas. O protesto foi realizado no Dia Internacional da Mulher, e as imagens mostram mulheres de todas as esferas da vida — enfermeiras, estudantes, mães — marchando, sorrindo, braços levantados em protesto.

“Muitas feministas no Irã vão resistir ao uso do hijab, ou ao xador, ou a qualquer uso de vestimentas islâmicas, outras vão usá-lo e ainda assim, serão feministas SIM! O uso do hijab vai além de um aspecto religioso para a mulher muçulmana, é uma relação com a sua própria identidade, isso não significa que ela é menos feminista perante outras mulheres.

Citação de Caroline Farhadi, querida amiga e inspiradora ativista.

Imagem: A artista e grafiteira afegã Shamsia Hassani, é autora de murais gigantescos grafitados em Kabul, criando vocalizações imagéticas feministas em paredes abandonadas e edifícios bombardeados.

A própria militância asiática precisa posicionar-se perante a vocalização de gênero, pois igualmente imperialista e histórica, segue a opressão às mulheres.

Como indivíduo asiático, há um problema imenso na compreensão de identidade em fluxos de desterritório, na decorrência de imigrações e também severas colonizações. Como mulher asiática, há ainda o imenso desafio de não apenas descolonizar sua vivência, como também lutar contra sobreposições patriarcais, ora provindas de uma sociedade machista brasileira — refletida na cultura do estupro, na banalização do assédio, e na contínua desigualdade de gênero — e ora por uma tradição familiar de descendência que beira misoginia — na celebração da servilidade feminina, no silêncio como dever, e na contenção de mulheres através da violência verbal, psicológica e doméstica.

A decaída de tais opressões precisa ser uma conquista nossa como mulheres brasileiras de ascendência asiática. Não sejamos coniventes com mártires alheios assistencialistas, com a instrumentalização de discursos e vivências individuais terceiras, com ações intervencionistas do colonizador querendo ditar como é a melhor maneira de sermos livres, ou mesmo o que é liberdade.

Tenha empatia, não tenha pena. A pena desumaniza o indivíduo, e carrega consigo julgamento e hierarquia.

Imagem: Fotografias de pessoas que apoiaram a causa de Xiao Meini, ativista feminista chinesa que em 2012 raspa seus cabelos em protesto contra a discriminação de gênero nas taxas de admissão universitária.

Xiao Meini, 26 anos, raspou sua cabeça em agosto de 2012 para protestar contra a discriminação de gênero nas taxas de admissão universitária, que impõem maiores pontuações para candidatas mulheres.

Xiao, junto de demais mulheres, estão ao leme de uma organização com sede em Guangzhou chamada “Bald Sisters”, um dos grupos de ativismo feminista mais atuantes na China. Um dia depois ao início da ação, outras três ativistas rasparam suas cabeças e fizeram o mesmo protesto em Pequim. Vários dias depois, um número gigantesco de homens e mulheres, anônimos, postavam suas fotos on-line com a cabeça raspada em suporte ao movimento.

“O cabelo tem um significado simbólico para as mulheres, então uma cabeça careca representa uma completa ruptura com a tradicional imagética feminina social de uma mulher”, disse Xiao à mídia chinesa.

Imagem: Coco Layne, artista plástica taiwanesa nascida nos EUA, que ganhou notoriedade por seu trabalho chamado “Warpaint” (2013), no qual levantava questões de gênero e “quem/o que somos” em imagem diante da sociedade ao alterar sua aparência física em uma série de fotos, demonstrando como muitas definições sociais quanto gênero e opção sexual são denotados pela estética, como apenas ter cabelo curto ou o que vestimos.

Assim, o feminismo asiático é um movimento feminista que além de prever direito equânimes de gênero, empoderamento feminino, e libertação à estruturas patriarcais vigentes em sociedade, intrinsecamente, têm em seu cerne a galgada de:

  • Visibilidade, representatividade e inclusão étnica e racial;
  • Resgate cultural-histórico como previsão de compreensão identitária em processos migratórios e no lidar perante a flutuância diaspórica;
  • Luta anti-colonialista e anti-imperialista, trazendo à tona pautas como apropriação cultural, desumanização étnica através de estereótipos, xenofobia, embranquecimentos e “whitewashing”;
  • Busca pela decaída de estigmas sociais que prolongam situações de subserviência imposta, objetificação, fetichização, estrangeirismo, e as violências de gênero inerentes às mesmas;
  • Quebra na tradição do silêncio em sociedades asiáticas, que muitas vezes omite a violência doméstica, verbal e emocional, impede a denúncia, promove a impunidade e intensifica a continuidade de danos psicológicos, morais e físicos;
  • Desconstrução do tabu existente em sociedades asiáticas e núcleos familiares perante sexualidade, orientação e identidade de gênero, na decaída da lesbofobia e transfobia, no fortalecimento de mulheres LGBT+;
  • Auto-valorização, empoderamento racial, e positivismo corporal, na busca pela auto-estima, superando pressões por estereótipos gordofóbicos, e muitas vezes tendenciosos ao embranquecimento!
  • Auto-valorização e auto-amor no percurso em vivências híbridas, miscigenadas e imigrantes;
  • Direito intransferível como mulher, antes de um corpo. Direito integral como indivíduo, antes de raça.
Imagem: A fotógrafa do Reino Unido Jessica Fulford — Dobson criou uma série de fotos que retratam meninas aprendendo skate na filial da ONG Skateistan em Cabul (que também levou o projeto para o Camboja e África do Sul).

Em 2007, a ONG Skateistan possibilitou que meninas aprendessem e andassem de skate com segurança em Cabul. Junto ao projeto foi proposto um programa escolar para meninas, na capacitação esportiva e estudantil. Após dois anos, a Skateistan abriu a primeira escola de skate no Afeganistão.

Em 2011, a ONG abre suas portas em uma nova sede no Cambódia, e em 2014, a Skateistan chega à Àfrica do Sul, no auxílio à juventude em situação de risco.

Até 2015, mais de 1.200 jovens passaram pela Skateistan, sendo mais de 40% meninas.

Vídeo: Crianças e jovens do Afeganistão, Cambódia e África do Sul, contam quais são seus desejos de vida e profissão perante o futuro, e como esporte e educação transforma vidas.

O feminismo asiático prevê contemplar etnias e ascendências provindas do Leste Asiático, Sudeste Asiático, Sul Asiático/Subcontinente Indiano, Oriente Médio e Centro-Leste Asiático.

O contexto da importância da compreensão do indivíduo asiático como além de etnias do Leste é essencial na luta contra os apagamentos contínuos que calam a vivência plural, objetificando corpos e culturas em macro cosmos, gerando um abismo entre sociedades que compartilham geograficamente a ascendência de um mesmo continente. Além disso, há também a real importância de atentarmos ao movimento asiático não se tornar nipo-centrista/leste-centrista, gerando sentimentos nacionalistas que beiram separatismo e eugenia, transbordando em profundos contextos anti-negritude, fomenta o racismo e apagamentos contra demais etnias do Leste Asiático, além de revelar total falta de empatia com indivíduos que igualmente compartilham desterritório na imigração e/ou refúgio.

Ainda, também deveras importante compreender que a Ásia é o maior e mais populoso dos continentes, com isso não devemos e não podemos pasteurizar a existência do indivíduo dentro de sua própria condição, e como podemos ir além da carga dogmática, prevendo e fortalecendo também movimentos que visam a vocalização de mulheres asiáticas, como o feminismo islâmico e feminismo judaico.

Imagem: Ismat Chughtai, escritora e feminista indiana, e a primeira mulher indiana muçulmana à conquistar Bacharelado e Licenciatura. Fotógrafo desconhecido, 1974.

Uma das mais ferozes feministas da história da Índia, Ismat Chughtai é um nome proeminente no mundo da literatura Urdu. Grande parte de seu trabalho foi considerado controverso e, portanto, banido do sul da Ásia. Escreveu sobre o privilégio masculino, as injustiças, a sexualidade e as lutas que as mulheres têm de enfrentar numa sociedade patriarcal.

Suas obras foram criticadas e banidas devido à sua natureza feminista e ousada. Durante sua vida, Ismat Chughtai emergiu como uma proeminente voz feminista independente no sul da Ásia. Ela nasceu em Uttar Pradesh, na Índia e através de seus trabalhos, ela defendeu direitos das mulheres, sexualidade feminina e outros fenômenos relacionados ao gênero na sociedade indiana

Fonte da resenha: https://feminisminindia.com/2017/02/24/indian-muslim-feminists/, indicação por Juily Manghirmalani, também amiga admirada, ativista feroz, cineasta, mestra na pesquisa sobre diáspora indiana e cinema queer.

Imagem: “Don’t mess with me”, ou também conhecida como “A Mulher de Rosa”, graffiti por Jas Charanjiva realizado em 2012, após o acontecimento trágico de um estupro coletivo em Deli. Jas é uma das principais artistas de rua em Mumbai/India.

O diálogo com demais movimentos feministas precisa ser totalmente de coalizão, sendo essencial a pauta de solidariedade anti-racista, apoio ao empoderamento negro, indígena, e de demais minorias étnicas, estar previsto em nossas vocalizações para maior fortalecimento no entendimento da interseccionalidade e pluralidade da vivência feminina, criando irmandades e compartilhando empenhos com o intuito de que todas as vozes possam um dia ser ouvidas.

O apoio entre raças deve ser horizontal, porém a real empatia e solidariedade ao feminismo negro e feminismo indígena começa na análise de certos privilégios, não apropriando e/ou instrumentalizando movimentos e indivíduos para validação individual, pois além da crueldade contida na equiparação, o estigma social sofrido por indivíduos asiáticos no Brasil não tange âmbitos da violência racial e opressão policial que mata pessoas negras diariamente, ou na denegação ao genocídio contemporâneo em curso contra povos indígenas brasileiros. Ainda, infelizmente, precisamos falar sobre a participação asiática no racismo anti-negro.

Essa auto-análise necessária — para todos, não apenas indivíduos asiáticos — não pode ser confundida com julgamentos ou imposição de hierarquia perante os sofrimentos vividos por cada indivíduo ou mulher, causando assim maior separatismo e apagamentos. Nem cair na falácia de compreender o existir asiático apenas como uma minoria modelo. Pois como diz minha querida amiga e irmã de militância interseccional, Anne Quiangala, idealizadora do Preta, Nerd & Burning Hell, escritora e roteirista, mestranda em Literatura na Universidade de Brasília, quem é sexista, é classista, e é racista.

A compreensão da interseccionalidade é chave na convergência horizontal e apoio entre movimentos, grupos, e pessoas; Na busca por um empoderamento plural, que possa agregar com realidade situações distintas vividas por cada mulher em sociedade.

Imagem: Fotografia de Angela Davis e Yuri Kochiyama na gravação do documentário "Mountains That Take Wing" (2010), direção por C.A. Griffith & L.T. Quan.

No documentário “Mountains That Take Wing” (2010), dirigo por C.A. Griffith & L.T. Quan, a professora, filósofa, ativista, e grande pensadora de seu tempo, Angela Davis, encontra com a ativista militante pelos direitos da classe trabalhadora e das minorias não-brancas, pós-Segunda Guerra Mundial, Yuri Kochiyama. Numa conversa entre formidáveis ​​mulheres cujas vidas e trabalho político permanecem no epicentro das mais importantes lutas pelos direitos civis nos EUA, discutindo sobre temas que vão desde o papel vital, mas amplamente apagado, das mulheres nos movimentos sociais do século XX, o empoderamento da comunidade, o complexo industrial da prisão, a guerra e as artes culturais.

Imagem: “Yellow Power to Yellow People” (1969), fotografia por Roy Payne. Jovens meninas de ascendência asiática participam da BBP (Black Panther Party) em frente ao Tribunal em Okland, Califórnia, em 1969.

O feminismo asiático brasileiro vêm como forma de manifestação, ativismo e vocalização para todas as mulheres de ascendência asiática, galgando dentro e fora do Brasil, dentro e fora da própria Ásia, a justa presença de nossos discursos políticos, filosóficos, sociológicos, ideológicos, em toda e qualquer pauta que envolva a existência de mulheres, no contemporâneo e na História.

Enquanto o feminismo mainstream ainda custa nos reconhecer, voamos pela tangente em ações e manifestações que constróem nossos discursos no contemporâneo.

Grupos, plataformas & coletivos no Brasil:

  • Em fevereiro de 2016, surge o primeiro grupo no facebook com motivação de empoderamento para mulheres brasileiras de ascendência asiática, chamado "Feminismo Asiático", moderado pelas ativistas feministas Carolina Coimbra, Fabiola Tanabe e Yayoi Maruyama, e até hoje é um importante espaço de empoderamento e acolhimento entre mulheres.
  • Plataforma Lotus, coletivo de vocalizações, produções e manifestações em prol de mulheres brasileiras de ascendência asiática na luta pelo feminismo interseccional. Durante 2016, a plataforma e suas ativistas estiveram presentes em debates sobre representatividade e feminismo, em feiras de arte independente, e ainda realizando mensalmente encontros físicos para a manutenção do fortalecimento entre mulheres, em São Paulo. O organizativo da plataforma é composto por pesquisadoras, antropólogas, artistas, cineastas, diretoras de criação, mas principalmente ativistas feministas, sendo seus nomes Caroline Ricca Lee, Juily Manghirmalani, Laís Miwa Higa, Ingrid Sá Lee, Fabiane Ahn, Tami Tahira, Arissa Oda Baeza, Vivianne Lee, Mariana Tiemi e Fernanda Garcia.
  • A antropóloga, ativista feminista e escritora Anni Phoebe, funda em 2016 o coletivo "Agora Juntas", projeto que cria uma casa colaborativa + rede de fortalecimento e empoderamento para mulheres do Rio de Janeiro, sendo uma importante plataforma feminista tanto na virtualidade, em ações e campanhas, quanto em sociedade, na mobilização de ocupações feministas.

Mulheres brasileiras de ascendência asiática que inspiram:

  • A artista plástica e ativista feminista de Belo Horizontes, mestiça de pai norte-coreano, deficiente auditiva bilateral de grau moderado e bissexual, Ingrid Sá Lee, criadora do zine “A Boneca” (2016), impressa em risografia rosa e amarelo, sobre o reducionismo e objetificação sofrido por mulheres asiáticas ao serem colocadas como bibelôs.
  • A cineasta e ativista feminista Juily Manghirmalani marca presença na 1ª Mostra Mulheres e Cinema, que ocorreu de 2 a 5 de agosto no Memorial da América Latina, com o curta/documentário "Viver de Mim"(2015), e na mesa de conversa "Estigmas e Libertação: discutindo a violência contra a mulher e sua representação".
  • A ativista feminista Fabiane Ahn reuniu em seu ensaio "Eu sou amarela. Eu sou feminista." as palavras engasgadas de muitas mulheres brasileiras de ascendência asiática perante o racismo, sexismo e xenofobia.
  • Caroline Farhadi, psicóloga, pesquisadora, ativista e anarco-feminista, têm sido uma importante voz na visibilidade de povos e indivíduos de ascendência asiática do Oriente Médio, principalmente trazendo à tona desconstruções necessárias para o empoderamento de mulheres muçulmanas e o feminismo islâmico.
  • Kemi, socióloga, ativista, feminista, está na vanguarda do movimento pela visibilidade asiática no Brasil, sendo uma das idealizadoras e parte essencial do organizativo do blog Outra Coluna e plataforma Perigo Amarelo. Realizou recentemente importantes vocalizações por temáticas como apropriação cultural e a participação asiática no racismo anti-negro, e é uma das principais vozes de mulheres brasileiras de ascendência uchinanchu.
  • Laís Miwa Higa, antropóloga, pesquisadora, têm realizado uma das mais importantes pesquisas etnográficas brasileiras sobre a imigração okinawana no Brasil. Proponente de um dos projetos feministas mais incríveis no empoderamento do feminino chamado "Siri-Ryca", junto do artista visual Marcio Zamboni, conta trajetórias histórias sob a ótica da vagina. Também é parte do mais antigo grupo de visibilidade asiática brasileira chamado "Estudos Asiáticos-Brasileiros", e do projeto Travessias em Conflito, projeto que aconteceu durante parte de 2012 e de 2013, constituído por um conjunto de atividades, como debates, apresentações teatrais, filmes e palestras, e que reuniu, em diferentes locais, militantes, pesquisadores, atores, curiosos, etc., para debater e trazer à tona diferentes vozes, narrativas e experiências nipo-brasileiras, silenciadas por uma espécie de narrativa oficial da “ascensão e integração de japoneses no Brasil”.
Imagem: Meninas japonesas imigrantes da Colônia de Una, na Bahia, em 1950. Fotógrafo desconhecido.

Como mulheres brasileiras, filhas da diáspora asiática na América do Sul, reivindicamos a nossa brasilidade, em uma construção identitária plural e real, trazido à tona na superfície desta conjuntura tão complexas entre gênero, raça, memória familiar, história étnica e cultural, existência diaspórica, e pertencimento como indivíduo da sociedade brasileira.

E assim, finalmente, podendo comemorar a miscigenação, sem abrir mão de nenhuma parte de nós.

Somos presentes.

Somos reais.

Somos muitas.

E agora mais do que nunca, fortes.

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Caroline Ricca Lee

// percepções e reflexões que percorrem o viés de questionamentos perante gênero, etnia e interseccionalidade; https://www.instagram.com/rycca.lee/