Deus, eu e o cão.

Carol Victoria
6 min readSep 24, 2024

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santuário velho nossa senhora Aparecida

É dezembro de novo, estamos a três dias do fim de ano e a desesperança não poderia ser maior, nesse clima de fim do mundo embarco para a tradicional romaria da família, meus tios e primos fazem esse percurso todo ano de Piedade a Aparecida, sempre achei irônico e bonito a alegoria com os nomes afinal não é bom começar nada pedindo Piedade ou estando por aqui, o trajeto dura cerca de umas 4 horas, dormi a maior parte do tempo, embalada pelo som das orações, me senti criança de novo, é meu primeiro ano participando desde que tinha 9 anos, sempre vinha com a minha avó materna, mas quando ela faleceu não apareci mais, afinal não sou religiosa nunca fui, minha relação com Deus sempre foi muito pautada no medo, a primeira frase que me despertou algo na bíblia foi uma passagem de Eclesiastes que diz “quando os crimes não são castigados logo o coração do homem se enche de planos para fazer o mal”, e isso eu não podia aceitar logo me encarreguei de sempre me castigar, poderia ter dor, mas não espaço para o mal no meu coração, esse ano resolvi estar em família e em solo sagrado, já que não tem nada pra mim em qualquer outro lugar, só não imaginava que sentiria o mesmo deslocamento aqui, sabia que não tinha irmandade ou comunhão com as coisas terrenas, mas não imaginei que isso se estendesse ao plano superior, e um pensamento horrível me desce pela espinha teria Deus morrido na cruz pelos meus pecados apenas para zombar de mim? Para provar que eu sou incapaz de me sentir amada mesmo diante do sacrifício? A resposta parece absurdamente plausível agora, mas que tragédia todos aqui conseguem ver o meu teatro e fingimento, estou transparente, eu sou uma coisa aparte, não sou diferente do cão sarnento que bebe a água dessa poça imunda, presumo que ele já foi branco, agora é algo que intermedia o bege e o marrom, o tempo não poupa ninguém, tem uma pinta preta nas costas, o pelo todo arrepiado, está manco de uma das pernas, apesar disso tudo está gordo, não parece nada desnutrido, logo que vejo uma senhorinha atirar um resto de pão na sua direção vejo a razão disso, o alimentam com pena, todos olham para ele, mas não como se olha para um cachorro saudável ou para um filhote o olham com desdém como se fosse meio cachorro, a versão de um animal que deu errado, como se ele fosse a pata manca e a sujeira impregnada nos pelos, fico feliz de ter uma criatura mais simpática e igualmente miserável por aqui, assim posso passar batida, eu existo incompleta e deformada, não sei que parte ficou no ventre da minha mãe que parte foi tirada de mim ou amaldiçoada, mas certamente alguma foi, as palavras do padre não saem da minha cabeça, quando comentei que estava me sentindo distante de Deus depois do sermão da manhã, foi uma meia verdade e eu ofereço essa aos montes, não me sinto distante apenas de Deus, ultimamente me sinto distante de tudo, fora do meu corpo, um fantasma de mim, logo me disseram “isso pode ser pecado minha filha, ele nos afasta de Deus e da comunhão” eu concordei, e eu acreditei porque hoje em especial o céu não pode estar vazio, hoje eu preciso que Deus seja por mim, que esteja por mim, desço até o confessionário, não se parece nada com o que vejo nos filmes tem uma máquina que cospe senhas e uma fila, nós os condenados arrependidos somos numerosos na Terra, o padre está numa sala, atrás de um vidro, e a fila se dirige a ele como ovelhas ao pastor, mas não eu, sou gado indo para o abate, entro em pânico, terei que olhar nos olhos dele enquanto falo? E nesse espaço tão pequeno, não consigo nunca consegui, o vidro parece mais evidenciar a proximidade entre nós do que aliviar, vejo cada uma das pessoas anotando os pecados num papel, revisando o ato de contrição, como eles lembram? Seus pecados são tão poucos assim? Ou tão leves assim? Eles não se envergonham? Não, isso é arrogância da minha parte elas não são menos ou mais pecadores do que eu, apenas se importam mais, nem me dei ao trabalho de pensar nos meus pecados, talvez essa seja a raiz dos meus problemas a arrogância que gera essa tristeza incapacitante me tornando amarga e letárgica, o padre me chama cabisbaixa entro, o sacerdote pergunta meu nome “Tereza” eu respondo, não me lembro do seu nome agora, mal olhei para ele mas sei que usava uma etiqueta com ele escrito, “o que te traz até aqui minha filha?”, eu engulo seco, meus pecados são tantos, na fila para entrar no santuário hoje mesmo senti inveja dos cabelos da moça da minha frente, anteontem senti ódio do moço do hotel que me entregou a chave errada, eu estou sempre pecando mas não é isso que me traz aqui, é esse vazio opressor, desconcertante, essa falta de fé na vida, essa falta, como se onde tivesse de haver alguma coisa tivesse só silencio, e eu digo isso tudo, me exorcizo, e a resposta não poderia ser mais desanimadora “você ama a vida?” ele diz, que pergunta cruel, é o dedo na ferida, me perguntar isso num lugar repleto de doentes terminais, e pessoas com os joelhos sangrando para agradecer a mais um dia de vida, como poderia eu responder algo diferente de sim? Nem eu pensei nessa possibilidade, mas eu respondi “não”, não vou mentir e a verdade amargou a boca, veio exatamente ao meio-dia, bom o diabo é pontual afinal de contas, depois do choque inicial e de um breve minuto de silencio que me engoliu por inteiro, nos instantes que eu achei que não tinha solução que meu pecado era tão grave que não tinha como ser absolvido, ele me falou da acedia uma forma de pecar quase esquecida, a filha da preguiça e da ansiedade, uma espécie de tristeza ou melancolia, um amargor contagioso é como experimentar a morte em vida e depois de muita conversa fui devidamente diagnosticada e absolvida, mas do que exatamente “está perdoada minha filha, reze três terços como penitencia” perdoada, eu ? Qual meu pecado? E três terços podem resolver ele fácil assim? Sempre estive a três terços da felicidade? Isso não me parece certo, por favor esclareça a condição que levou tantos para longe de mim, a condição que dia após dia arruína minha vida, não me sinto perdoada, não me sinto bem, nem mais próxima de Deus, mas antes de eu ter a chance de dizer qualquer coisa ele chama o próximo, e a fila segue alvejando as almas, pelo menos fui honesta, meu pecado não pode ser o desamar a vida pois eu a amo, a amo com a sinceridade de quem ama sem receber nada em troca, minhas falhas não podem ser apagadas com água benta e uma conversa, nem aquele rio de cera flamejante e as milhares de vela que fariam o trabalho, nem as chamas do inferno mudariam alguma coisa a verdade é que não sou devota a nada, nem mesmo a mochila que cumpre o papel de casa nesses dias tem meu respeito ou atenção, está no chão negligenciada encima dela uma pilha de livros não lidos malditas palavras não tem me ajudado em nada, foram de mim amputadas, todos aqui parecem convencidos que a ressurreição virá ao ano novo, na decima segunda badalada do relógio igual num conto de fadas barato, a mais absoluta transmutação metafórica, o renascer a setenta e duas horas de espera e enquanto eu me afundava nesse poço sozinha sem ter nem minhas lagrimas para fazer companhia o cão que vi mais cedo se aproxima de mim, abanando o rabo eu o acaricio e ele lambe a minha mão, ambos extasiados e chocados com o gesto, ambos famintos por alguma gentileza de igual para igual, alguma coisa que sirva para mais que manter o corpo vivo, dois leprosos se curando, já não me sinto sozinha, tenho sim um companheiro em solo sagrado, e agora me livrei dos pecados, só me sinto perdoada pelas criaturas de Deus que são próximas a mim, meus semelhantes, aqueles que não me oferecem pena ou soluções magicas só a mais profunda afeição, descansamos na sarjeta eu, Deus e o cão, realmente hoje o céu não estava vazio, estava aqui na sarjeta ao meu lado lambendo as chagas.

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