Acorda, Amor! — Afeto-resistência no palco do Circo Voador

Carolina Machado
6 min readNov 16, 2018

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Resenha publicada originalmente no Blah Cultural, em 15 de novembro de 2018.

A representação do amor costuma ser vermelha, sabemos. Cá entre nós, eu acredito que o amor varia entre ser vermelho e ser azul — como um Pierrotlefou de Godard, por exemplo, que traz amor e resistência ali, entre essas duas cores. No último sábado, dia 13 de outubro, era em tons de rosa e vermelho que as artistas subiam ao palco do Circo Voador. Foi difícil sair de vermelho aquele dia, o medo instaurado, mas estar ali era estar entre as nossas. Entendo agora que o amor como política dá certo quando, de cima de um palco, quem dá mais voz a todas consegue fazer com que todas se sintam seguras. Agora escrevo, antes de tudo, agradecendo àquelas e àqueles que se sacudiram para acordar.

Foi uma noite de mulheres na lona mais amada e política do Brasil. Com a DJ Tata Ogan comandando a pista nos intervalos, deu para esquecer a chuva e o público já se aproximava do palco para a apresentação da FeminineHi-Fi, grupo sound system formado por mulheres, trazendo a cultura jamaicana e suas expressões também na cultura brasileira. Na noite de sábado, elas mandaram, por exemplo, Capim Guiné, uma parceria do Baiana System com a angolana Titica e participação de Margareth Menezes. Como não poderia ser diferente, o grito que se espalha ao fim da apresentação da FeminineHi-Fi é um Ele Não! muito bem acompanhado por Laylah Arruda, vocalista, e as batidas de Lys Ventura.

Os gritos seguiam chegando de muitas formas… O ator Johnny Massaro fez uma intervenção no palco para pedir: “Se agarrem aos seus afetos!”A apresentação do DJ Lencinho para o espetáculo principal também nos lembrava o que não podemos nunca esquecer: Só a luta muda a vida! Falando nisso, fica o convite para o evento Arte pela Democracia, que acontece no Circo Voador na próxima terça-feira, 16. As ocupações de espaços de arte pelos movimentos políticos são sempre de uma potência indizível para os cenários que atravessamos como sociedade. No Ocupa Minc, movimento de cultura e resistência que aconteceu no Rio de Janeiro em 2016, o cineasta Ruy Guerra disse: “Você não pode separar a arte da tua vida, e você não pode separar a tua vida do aspecto político”. A noite do Acorda, Amor! foi a representação absoluta disso. Todos os corpos ali são políticos.

Lencinho chamou ao palco a apresentadora Roberta Martinelli, um dos principais nomes no trabalho diário de difundir a música brasileira, idealizadora do projeto Acorda, Amor! ao lado de Décio 7 (baterista do espetáculo e da banda Bixiga 70). Roberta estava ali com seu corpo político, trazendo consigo, ainda no ventre, sua filha, Rosa. Ela emocionou a todos contando que era outro poema que lia quando começaram as apresentações do espetáculo, e agora se faz fundamental ler o poema publicado na última semana por Arnaldo Antunes:

“isto não é um poema/só desabafo/que não pude não fazer/e não pude fazer de outra forma/que não fosse assim/fatiando as frases/no espaço aqui/ hoje eu vi/aterrorizado/um artista assassinado/ Moa do Catendê, mestre de capoeira, autor do Badauê/ por conta de uma divergência política/num bar da Bahia”.

Quando Roberta sai do palco, quem ocupa espaço são as vozes das cantoras, antes mesmo que apareçam, com Gente Aberta e o recado dado: ali, todas só queremos conversa com quem quer amor. O amor chamou, e ali estávamos. Inteiras. Como escreveu o poeta Maiakóvski: em nós, a anatomia ficou louca. Éramos inteiras coração. A banda que acompanha corpos e vozes é o grupo VOA, formado por Décio 7 (bateria), Fábio Sá (baixo), Guilherme Held (guitarra), Pipo Pegoraro (teclado e samplers) e Rômulo Nardes (percussão). Cada som, ali, também ocupa seu espaço político.

Maria Gadú canta O Quereres, tão significativa sempre e nesse momento com a força de frases como “Onde queres Leblon, sou Pernambuco!”, seguida pela força de um poema de Letícia Novaes, a Letrux, trazendo um cenário imaginário em que o ano era 2018 e algumas pessoas escolhem viver em um país representado por um cara que não representa ninguém. A cena não é mais imaginada. Caio Fernando Abreu foi evocado na intervenção de Johnny Massaro e aqui lembro outra frase sua: “Que não te baste nunca uma aparência do real”.

Deixa Eu Dizer, da cantora Cláudia, aqui-agora ganha voz por Xênia França, a voz doce mostrando firme como não dar o direito de ser calada. Na sequência, Luedji Luna nos coloca em transe com Obaluayê e Conflito, esta última de Pedro Sorongo, lançada em 1976, mesma década em que vieram pro mundo grande parte das canções que compõem o espetáculo Acorda, Amor!. Antes de começar Ninguém Chora Mais, Letrux dedica a canção “ao aquariano mais legal do Brasil”, Fernando Haddad, professor e candidato à presidência lembrado várias vezes pelo público ao longo da noite. E ninguém chora mais porque “Não adianta chorar”, como diz a música na sequência com Liniker, que quebra tudo no palco acompanhada do coro bonito das outras cantoras.

Luedji volta para arrepiar cada corpo ali. Com o texto que acompanha, em seu disco, a música Iodo, ela toma todo o espaço repetindo que “Se eu já fui trovão que nada desfez, eu sei ser trovão que nada desfaz!”, lembrando, entre as frases, Marielle Franco — presente, hoje e sempre!, como artistas e públicos faziam questão de lembrar a todo o tempo. Se digo que a arte política dá certo quando alcança o público, é porque entre olhares de sorrisos e lágrimas mostrávamos umas às outras os arrepios que chegavam enquanto Luedji Luna repetia essas frases com força e, em seguida, cantava Para a Poetisa Íntima.

Era um ritual. Era um ritual que se seguia com Gadú cantando Triste, Louca ou Má e entoando com força: “EU NÃO ME VEJO NA PALAVRA FÊMEA, alvo de caça, conformada vítima”. As artistas se juntam em uma roda que é magia. Nós somos todas, também, as bruxas que resistem. Nem um homem, nem a casa, nem a carne nos define. Ou, para lembrar também Simone de Beauvoir, “que nada nos defina, que nada nos sujeite, que a liberdade seja nossa própria substância”.

As deusas dançam. Em um bailado tão bonito com Luedji, Xênia volta com Assumindo, formando uma sequência-resistência com Liniker e Flutua, canção que gravou com Johnny Hooker no mais recente disco do pernambucano. Durante todo o espetáculo todas permanecem no palco, juntas, e agora Maria Gadú está ao lado de Letrux, abraçada pela bandeira LGBT. A sequência-astral vem com Sujeito de Sorte, Maracatu Nação do Amor, Saúde e A Vida Em Seus Métodos Diz Calma, entre as vozes de Liniker, Letrux e Xênia, que volta logo menos com Comportamento Geral, de Gonzaguinha. Vai deixar acabar com teu Carnaval, Zé?!

Cinco bombas atômicas são jogadas por Letrux, com dizeres de “Viva Mautner!” e “ENGULAM QUEM VOCÊS QUISEREM! Ninguém vai poder nos dizer quem engolir”. É com Nuvem Cigana que o show vai se encaminhando para o fim, na voz de Maria Gadú e com um bailar bonito entre todas as artistas. Todos os corações batem sem medo e é entre os gritos, mais uma vez, de “Haddad sim!” que o palco se esvazia, ainda que as vozes permaneçam no microfone fazendo coro com a plateia.

Elas — banda e artistas — voltam, firmes e fortes. Gadú agora está vestida com uma camisa “Ele não” e assim cantam juntas Podres Poderes. Os tons e os sons nos salvam mesmo dessas trevas. É a mensagem que fica. Belchior foi cantado em Acorda, Amor! e eu fui e voltei do show com ele em mente: “Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto!”. Eles não. Sim, só ao amor. Cantamos e acordamos. Sentimos e resistimos. O Circo Voador, mais do que sempre, ao que parece, foi sábado ocupado pelos corpos políticos. Todo corpo é, mas agora como nunca precisamos nos lembrar e gritar em alto e bom som. Foi o que fizemos. Voltar recarregadas de esperança e força para casa é acreditar que não foi pela última vez.

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Carolina Machado

Alguma poesia e um gosto por bater aquela prosa musical.