O dia que escolhi morrer

Cecilia Benazzato, PhD
7 min readApr 24, 2024

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Atenção, conteúdo sensível: suicídio, abuso psicológico, abuso de drogas.

Capítulo 1 — O início do fim.

Aos 33 anos de idade, eu decidi morrer. Após meses de discussão interna e externa, um dia eu me dei conta de que eu queria morrer. Mas diferentemente das outras vezes, essa vontade surgia de forma figurativa, onde eu tinha, pela primeira vez, todo o controle da situação. Foram 20 anos de abusos e eu decidi que eu não queria sobreviver mais um ano dentro dessa situação. Morrer era a minha única saída.

Essa história começou em julho de 2004. Era um dia de sol e meu pai não estava em casa. Com 13 anos na época, eu estava tocando violão no quarto em que eu e minha irmã dividíamos quando o telefone tocou. Minha mãe atendeu e, após uma sequência de “hum”, foi até o quarto e nos deu a notícia que recebera de meu pai: minha avó paterna havia falecido. Minha avó havia perdido a luta contra um câncer de mama e eu não sabia o que estava acontecendo direito. Era minha primeira vez lidando com a morte e com o luto, e foi justamente o mais difícil de todos eles.

Eu amava minha avó. Eu tinha uma admiração surreal pela pessoa que ela era, mesmo com todas as dores que carregava. Ela viu o marido ser atropelado e falecer na frente de casa, com dois filhos pequenos. A vida dela foi carregada pelo álcool como forma de suportar a dor, se criando um enorme tabu para todos nós. Após muitas décadas de vício, ela descobriu o câncer e assim foi até o fim de sua curta vida, falecendo aos 64 anos de idade.

Pouco me lembro do velório em si, mas me recordo muito de dois fatos com uma clareza que, de certa forma, me incomodam até hoje: o primeiro, foi não ver meu pai chorar. Não na minha frente, pelo menos. O segundo era meu primo mais novo, que estava entre seus 4 a 5 anos, perguntando em voz alta: “mas a vó irá voltar, né? Como ela vai sair daí?” enquanto o caixão era colocado na sepultura.

O luto era uma novidade em meu cérebro de adolescente, que já mal entendia o que estava acontecendo. Durante a infância, eu era uma criança tranquila, que gostava de brincar e estudar (acabei com uma apostila anual do Pré-1 em uma semana e me pularam para o Pré-2. Zero noção.) e era muito feliz. Já na pré e na adolescência, o peso dos jovens imaturos da época passou a fazer parte do meu dia a dia. Eu nunca fui uma menina dentro do padrão de beleza, sempre fui alvo de bullying na escola e minha fuga foi ser estudiosa como uma forma de me sentir bem.

A real é que essa decisão para focar exclusivamente nos estudos e menos na minha aparência não era realmente uma decisão minha. Era uma “sugestão” imposta por minha mãe. Segundo ela, pessoas que focavam demais na aparência eram fúteis e ela não queria pessoas assim dentro de casa. Então, eu queria agradar minha mãe e me agarrei a esse pensamento, e não me cuidava. No máximo, penteava o cabelo. Além disso, queria dizer que eu era fútil e eu, de 13 anos, não queria ser fútil.

A convivência dentro de casa sempre foi muito complicada. A sensação era de sempre viver no território inimigo e que eu, novamente com minha cabeça de 13 anos, precisava encontrar as palavras certas para tentar não criar um conflito. Porém, ao longo dos anos, isso foi se tornando algo cada vez mais insustentável.

Para mim, ter uma irmã mais nova era sinônimo de companheirismo. Eu realmente pedi uma “irmã cor-de-rosa” para meus pais quando eu tinha 4 anos de idade. Era meu jeitinho de criança dos anos 90 de pedir uma irmã para brincar. Esse sonho, por muitos anos, se tornou um enorme pesadelo.

As condições que minha irmã foi gerada levou aos meus pais a considerarem como um milagre divino (e essas palavras eu não as criei, eu as ouvi), e esse detalhe criou um problema enorme durante a nossa convivência. Minha mãe criou uma competição enorme e injusta entre nós duas desde a nossa infância. Eu sentia ciúmes pela admiração que minha mãe sentia pela minha irmã. O olhar não era o mesmo, o comportamento não era o mesmo. Isso me fez criar inúmeros sentimentos contra minha irmã que eu não sabia lidar na época e que eu me arrependo, e entendo de onde vieram. Por conta disso tudo, até eu sair da casa dos meus pais, nossa relação não era boa. Era péssima e tóxica, na verdade. E até hoje, a gente ainda carrega muita coisa que nos foi injustamente colocada contra nós.

Nesse cenário onde os pais e o “milagre divino” eram a família perfeita, não havia espaço para mim. Não havia condições de sequer me comunicar, e tudo isso somado ao luto. Muitas vezes, eu tentei comunicar minha frustração e minha tristeza, mas nunca era ouvida e era, inúmeras vezes, contestada e taxada como “louca” pela minha mãe. Essa frustração escalou de tamanha forma, que eu passei a ter crises físicas e emocionais, com direitos a gritos, choro, chutes, necessidade de contenção física por parte dos meus pais e automutilação como uma tentativa desesperada de ser ouvida (usando o termo do momento: um gigantesco destempero).

Essas crises eram desencadeadas sempre após o mesmo tipo de abuso: o psicológico. Eu não era ouvida, ninguém sequer me deixava falar, me cortavam e falavam por cima, me acusavam de inúmeras coisas como “você não quer participar da família”, “você é um monstro”, “você não se preocupa com ninguém”, daí pra baixo. Não havia um segundo de silêncio para organizar a cabeça. Essas crises passavam com o meu corpo simplesmente desligando de cansaço ou algum calmante que eu era obrigada a tomar. Após isso, eu ficava sozinha, sem suporte (físico e emocional) e muitas vezes em tratamento de silêncio por 2 a 3 dias, pois eu “os envergonhei”, afinal “o que os vizinhos iriam pensar?”. Esse tratamento de silêncio era minha maior tortura. Eu me sentia derrotada, humilhada. Era meu castigo por ter tentado me comunicar, ter falhado, e ter entrado em crise. “Eu sou louca”, eu pensava e me escondia sem saber o que fazer.

Nessa época, eu passei a ouvir mais música (auge do Emocore), e preferi ser uma pessoa mais na minha e passar o dia trancada no quarto. Era o meio seguro de não ter qualquer conflito dentro de casa. Era o único jeito de eu não ter que lidar com pessoas me acusando de insanidade e me sentir honestamente segura.

Meu quarto era um templo e nada de errado poderia acontecer lá dentro.

O problema, que minha cabeça adolescente versus a cabeça de um adulto não conseguia prever, é que isso foi o cenário perfeito para minha mãe criar a narrativa que daria a ela toda razão que ela buscava para me colocar na caixinha da “loucura”.

Capítulo 2 — O céu e o inferno têm a mesma porta de entrada, parte 1.

Era um dia de semana e eu estava muito confusa com o fato da minha mãe nos ter marcado um compromisso por volta das 19h, num bairro próximo a casa dos meus avós, na Zona Oeste de São Paulo. Horário de rush, numa das maiores cidades da America Latina, e minha mãe dirigindo em silêncio sem me dizer para onde estávamos indo. Se tinha uma coisa que minha mãe abominava, era compromissos à noite durante a semana. “As pessoas precisam dormir cedo e manter a rotina é essencial para um trabalhador” era a ideia dela.

Após 40 minutos no carro, chegamos no misterioso destino. Era um portão alto, com uma escada longa que levava ao andar superior do sobrado. No térreo, funcionava uma loja de roupas que já estava fechada por conta do horário. Ela interfonou e subimos as escadas, que levava a uma sala de espera. Minha mãe conversou com a recepcionista, que nos pediu para aguardar junto de outras pessoas que estavam ali.

Aos poucos, eu fui entendendo que eu estava em um consultório médico. Mas eu não estava doente. Seria consulta de rotina? Mas minha mãe nunca marcava nada nesses horários. O mais tarde era por volta das 18h, com ela reclamando muito. Mas dessa vez, ela não falava nada e só me pedia para esperar.

Muitas horas se passavam, e não éramos chamadas. Outras pessoas eram atendidas, mas nós já estávamos há quase 2 horas aguardando e nada do tal atendimento. Era uma sala com muita tapeçaria e quadros (no chão e nas paredes) e com uma mini TV para ajudar a passar o tempo. Nessa época, não havia internet disponível o tempo todo, muito menos celular. Lembrando bem, nem um celular pra chamar de meu, eu tinha. Em um momento, uma família interfona, sobe as escadas e um rapaz do grupo começa a gritar, dizendo:

- Por que vocês me trouxeram nesse lugar? Eu não sou louco! Eu não preciso de psiquiatra!

Essa frase e essa cena ecoam na minha mente de forma tão vívida que eu consigo me lembrar da roupa que eu usava, da mochila jeans que eu carregava comigo, do livro do “Harry Potter e o Cálice de Fogo” no meu colo, do olhar de desespero que dei para minha mãe e ela apenas olhando para a frente.

Na minha cabeça, a primeira coisa que se passava era “O que um psiquiatra faz?”. Seguido de “Eu sou louca mesmo?”.

Não muito depois, meu nome foi chamado. Minha mãe me pediu para aguardar e entrou, sozinha, na sala do médico. Após 1 hora de espera, ela me chamou e eu entrei na sala. E, finalmente, conheci quem era o médico que iria me acompanhar por 6 anos seguidos.

O médico mais irresponsável que já conheci em toda minha vida.

Capítulo 3 — O médico e o monstro.

- em breve-

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Cecilia Benazzato, PhD

Biomédica e neurocientista. Brasileira. Desbravando culturas e línguas para obter mais conhecimento e ser feliz em meio a atual Ciência.