descrição desnecessária: uma breve análise do texto “homem envolvido em estupro coletivo é preso em alexandria; garrafa de vidro foi usada no crime”

matéria publicada no dia 22 de março de 2024 no portal da tribuna do norte

cecília
6 min readMar 23, 2024

diariamente, seja no início do dia ou seja no final do dia, tenho um momento reservado para abrir o meu notebook e ficar lendo as notícias mais recentes do rio grande do norte e do brasil. um hábito que estou tentando manter na minha rotina.

começo a me informar pelos portais de notícias do estado, tentando ficar por dentro dos últimos acontecimentos mais “próximos a mim”. vou abrindo alguns sites, leio até matérias sobre a mesma temática neles, gosto de observar como cada veículo de comunicação aborda determinados assuntos e seus posicionamentos.

depois desse “tour” dentro dos portais potiguares, fico mais informada sobre as notícias do país. e por aí vai… todos os dias fazendo isso, seja no início do dia ou seja no final do dia.

no entanto, eu poderia só ler os textos jornalísticos, sentir aquela sensação de estar bem informada e pronto. não é isso que acontece normalmente. depois que comecei a estudar sobre a abordagem da mídia sobre casos de violência contra a mulher (com o recorte do feminicídio), o meu olhar é muito mais crítico, humanizado e aprofundado para matérias acerca do tema.

já é meio que automático abrir um texto jornalístico noticiando um caso de violência contra a mulher e ficar analisando tudo: título, corpo do texto, termos usados (e a ausências deles), imagens para compor, discurso, enquadramento, entre outros aspectos.

quase todos os dias, enquanto leio tais textos, encontro algum ponto que penso: como podemos realizar a cobertura diferente desse caso? como essa matéria poderia ser mais minimamente aprofundada, respeitosa e humanizada? como não escrever tal texto com teor machista ou como não revitimizar a vítima desse jeito?

hoje pela manhã, ao navegar pelo portal tribuna do norte, o título de uma matéria chamou logo a minha atenção… e me causou um embrulho no estômago. sou profissional da comunicação, mas também sou mulher, é inevitável não me colocar no lugar das vítimas dos casos de violência contra a mulher noticiados.

matéria publicada no dia 22 de março de 2024 no portal da tribuna do norte

o título da matéria era “Homem envolvido em estupro coletivo é preso em alexandria; garrafa de vidro foi usada no crime”, publicado ontem, 22. fiquei sem acreditar na escolha das palavras para o título, uma mistura de sensacionalismo e irresponsabilidade.

a descrição do artefato usado para o crime de estupro de vulnerável é uma forma de revitimizar a vítima e os seus familiares também. uma descrição detalhada totalmente desnecessária, que não acrescenta em nada ao texto, apenas revive lembranças difíceis e traumáticas de uma cruel violência — e da violação de direitos da vítima.

uma das referências bibliográficas que utilizei na minha monografia intitulada ““quem ama não mata”: uma análise da cobertura sobre feminicídio no portal g1 rn”, foi o manual universa para jornalistas: boas práticas na cobertura da violência contra a mulher, da plataforma feminina do uol, universa.

foi logo o que lembrei quando vi o título do texto jornalístico publicado no portal tribuna do norte. uma das condutas gerais presentes no manual orienta sobre o que devemos levar em consideração quando estivermos escrevendo uma notícia referente a violência contra mulher: humanize a história; contextualize o episódio; amplifique o caso; foque na mulher; não ajude a culpar a vítima; dê nome ao crime; evite o tom policial (ps: o texto está publicado na editoria polícia); aponte as falhas do estado; e não faça descrições desnecessárias.

“Não faça descrições desnecessárias: Revitimizar é fazer com que a vítima ou seus parentes próximos revivam a dor do episódio violento, seja relembrando detalhes muito específicos no momento da entrevista, seja ao ver a reportagem publicada. Por isso, descrições detalhadas do crime ou uma narração estilo “minuto a minuto” do que aconteceu são desnecessários. Em boletins de ocorrência, essas informações têm fins judiciais, mas, em reportagens, podem violar os direitos de personalidade, privacidade, memória e preservação da família das vítimas”. trecho retirado do manual universa para jornalistas: boas práticas na cobertura da violência contra a mulher, página 16.

aliado a isso, há outra conduta indicada pelo manual ao publicar alguma notícia sobre violência contra a mulher: ter uma atenção ao título do texto e não culpabilizar a vítima ou revitimizá-la. sem sensacionalismo.

“Fuja de títulos caça-clique: Ainda que algumas aspas possam ser chamativas ou garantia de clique nas redes, avalie se ela traduz o teor geral daquele relato ou se desrespeita a mulher. Observe alguns conselhos anteriores, como evitar detalhes gráficos ou ajudar na culpabilização da vítima.” trecho retirado do manual universa para jornalistas: boas práticas na cobertura da violência contra a mulher, página 20.

cliquei, abri o texto e fui analisar a abordagem escolhida para noticiar o caso. não é só título que é problemático, o corpo do texto também é. na legenda da imagem usada para compor a notícia há novamente uma descrição desnecessária e, por consequência, a revitimização da vítima.

legenda da imagem usada para compor a notícia há novamente uma descrição desnecessária

não vou aprofundar em si no texto por completo aqui, analisando parágrafo por parágrafo, como faço durante os meus estudos sobre a cobertura de casos assim. mas eu não poderia ignorar o segundo parágrafo do texto. confira na íntegra abaixo:

“Na oportunidade, ele usou uma garrafa de vidro enquanto a vítima estava desacordada. Além disso, toda a cena foi filmada por ele e a imagem circulou nas redes sociais. A ação causou uma lesão na região genital da mulher, o que foi comprovado pelo Instituto Técnico-Científico de Perícia (ITEP).”

a escolha da palavra “oportunidade” para se referir ao crime de estupro de vulnerável é lamentável e insensível. não posso esquecer da necessidade de nomear o crime na construção dessa frase. “na oportunidade, ele usou uma garrafa de vidro enquanto a vítima estava desacordar”, essa frase me embrulhou o estômago novamente. além do termo escolhido, outra vez a discrição detalhada do crime é feita, incluindo como o abusador estuprou a vítima e a consequência do abuso causada em sua genitália.

“Usar a palavra estupro é fundamental: O estupro é um crime muito subnotificado. Isso porque, além do constrangimento e da culpa imposta às vítimas, o poder público é ineficiente para tratar os casos, por incapacidade técnica ou ideológica. É dever da mídia não atenuar os crimes e sensibilizar a sociedade para a gravidade do problema. Estupro não é sexo. Por isso, nunca escreva frases como “o ato sexual aconteceu na casa da vítima”. Como sinônimos, “ato sexual” ou “fazer sexo” só devem ser usados quando a coerção estiver clara: “ela foi obrigada a fazer sexo”. Sempre que possível, utilize as expressões mais corretas: “ele a estuprou” ou “cometeu crime de estupro”, sendo que o estupro pode ser vaginal, oral, anal”. trecho retirado do manual universa para jornalistas: boas práticas na cobertura da violência contra a mulher, página 32.

lendo todo o texto e observando o contexto, se retirasse o parágrafo citado acima, não faria falta alguma. consigo sentir ao lê-lo que há uma banalização e naturalização da violência contra mulher, como se estivesse sendo noticiado um acontecimento qualquer. falta uma contextualização melhor sobre o caso e outros pontos que poderíamos melhorar enquanto profissionais da comunicação.

aqui, eu quis trazer uma reflexão sobre o repensar a forma como realizamos a cobertura de casos de violência contra a mulher a partir da breve análise do texto “homem envolvido em estupro coletivo é preso em alexandria; garrafa de vidro foi usada no crime”.

existem outras boas práticas que podemos incluir na nossa rotina de escrita jornalística e na cobertura de casos de violência contra a mulher. podemos começar por abordagens mais humanizadas, respeitosas, aprofundadas, informativas e sem violações de direitos. é válido buscar cartilhas, manuais e dossiês (como este da agência patrícia galvão) que orientam quanto a isso também.

nós, jornalistas, podemos fazer diferente. nunca podemos esquecer disso.

texto da tribuna do norte completo aqui: https://tribunadonorte.com.br/policia/homem-envolvido-em-estupro-coletivo-e-preso-em-alexandria-garrafa-de-vidro-foi-usada-no-crime/

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