Crises e Silêncio

Ceila Santos
5 min readJul 1, 2023

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“Filosofia da Liberdade” é uma obra considerada pelos antropósofos como o primeiro passo para viver o pertencimento a partir da relação com a palavra Antroposofia.

Existe Deus? — essa é a pergunta que ganhei depois de dedicar à obra Filosofia da Liberdade, escrita por Rudolf Steiner, em 1893. Vivo, agora, a crise que a pergunta me coloca e reajo. Uma ira que não basta se expor é preciso ferir o que vejo.

O tempo dedicado.
A seriedade dada a cada passo.
Em vão…socorro, meu deus, o que fiz?

Todos brincam sobre o esquecimento.
Começar de novo é o caminho.

Aprendo isso: começar de novo e de novo e de novo. Ter a liberdade de viver esse começar de novo a leitura da obra. Sinto raiva, muita. Seis anos! O tempo nosso dedicado aos estudos. Sou mãe.

Minha jornada de dedicação conta a crise que adquiri com a leitura, ela já estava em mim desde inicio, mas não a via. Seguia o misticismo dos meus antepassados, as crenças familiares, sabia que seguia, lutava contra este movimento interno, não queria, mas seguia. Fazer o que “era pra ser feito como se alguém tivesse dito o que precisava ser feito para sair da situação que vivia e vivo”.

Ser salva pelo esforço da leitura. Ser salva quando atingir o lugar de quem compreende. Salva pelo conhecimento. Não existe salvação. Tu és responsável pelo tempo que tu dedicas aos estudos quando estuda fora do lugar científico.

Meu olhar irado focava nos exemplos. Todos, eles! Não havia mulheres. A imagem me movia. O recorte. Predominantemente do gênero masculino: as referências entre nós. Esse cenário precisa mudar, eis o motivo.

Siga o caminho, se esforce, dê o sangue: leia, leia, leia e leia! Ouça quem fez a travessia.

Eu não via essa ordem dentro de mim no inicio da jornada, mas me movia por ela. Ontem, ao decidir escrever algo sobre o livro trouxe a ira de receber essa dúvida depois de tanto tempo dedicada à leitura e aos estudos da Filosofia da Liberdade: existe deus?

Parece uma escolha diante da verdade da morte. Talvez, a única verdadeira escolha do ser humano. Talvez, o único ato de liberdade: decidir se ele existe na terra porque a obra ensina que ele não pode ser inventado na imaginação do homem de pés descalços e cabelos com barba compridos. É uma escolha?

Digerir essa pergunta. Digerir a ira. Senão der risada desse corpo — que porque menstrua, gesta, pari, amamenta e educa acredita na aldeia — vai continuar parada. Dialogue com quem te escuta, entenda a crise existencial da liberdade: mãe, você acredita mesmo que há uma verdade?

Mãe, onde você vê apego eu vejo amor!

Mãe, sabe, eu entendo que as pessoas que não acreditam são aquelas que não vivem a crise existencial de lidar com a vida consciente da morte do corpo e da sensação de que algo que vivemos aqui parece permanecer mesmo sem nós.

Verdade, filha, esse encontro entre nós que me levou a dedicar tempo aos estudos, me levou a duvidar da minha fé na humanidade, me levou a ressignificar as religiões da minha mãe, das minhas avós e bisavós pra contar pra você e sua irmã que existe algo a mais (existe?) é um baita mistério do amor.

Se existe ou serás destino não importa tanto (importa!?). É fato que a leitura reforçou em mim a convicção desse interesse por compreender o pensar humano, Vontade imensa descobrir SE de fato eu conseguir discernir como funciona o nosso pensar e quem sou dentro desse funcionamento, será que encontrarei a saída desta crise?

Não! Vai trabalhar que é melhor, onde? Sou mãe! Agora, velha!
Socorro!

A pergunta nasceu dentro de mim antes de ouvi-la fora. Veio com a dúvida se fazia sentido permanecer membro da Sociedade Antroposófica tendo as condições econômicas que tenho. Faço parte deste grupo? Porque?

Via as diferenças desde o inicio. O fato de ter nascido em outro berço. A razão das bandeiras não terem sentido dentro do espaço. Sabia que era de outra espécie e não me incomodava os extremos. Me sentia bem entre as mulheres e os homens. Mas a indignação…tava lá dentro, carregada de força nas palavras e sem ar.

Pior, crescia. Tanto que eu a sentia pelo lado de fora. Eis, aí, o motivo que me levou a ler a Filosofia da Liberdade: queria entendê-la sem saber que queria. E, você, sabe qual é o motivo que dedica tempo à leitura e aos estudos desta obra?

A OBRA

Antes da crise descobri o silêncio com a leitura da Filosofia da Liberdade. Como lia o livro com uma atenção fervorosa e um rigor jornalístico, eu resumia cada capítulo. Consegui viver essa ingenuidade até o terceiro. Depois comecei a lidar com silêncio e aí escrevi o primeiro artigo sobre a obra e enviei para Sociedade Antroposófica.

Fiquei indignada. A existência de uma obra cujo propósito parecia ser feito para os leitores viverem incompreensões. Pra que escrever um livro enigmático? Que graça tem não entender uma obra?

Assim, comecei a rir de mim mesma. Entendi o humor no começo da brincadeira. Por isso, talvez, continuei.

Depois do esforço hercúleo de não compreender o raciocínio, entendi a necessidade dos cursos. Detalhe: seguia as regras que ouvia no meio do caminho como se fossem leis.

A “velha” dinâmica de voltar pra si, de se relacionar com cada palavra e se concentrar no que foi dito me acompanhava com rigor (materno) de quem leva a sério enigmas…e perceber que essa seriedade era só minha me feria profundamente. Até que entendi: é em vão, tu esquecerás, pra que levar tão a sério?

Ria de si. Tenha humor diante das escolhas que faz na vida. Dedicar tempo a uma obra enigmática, pra quê?

Capítulo 11. O título dele é A finalidade do mundo e a finalidade da vida. Eu o li diversas vezes, fiz desenho, resumo. Foi o capítulo que recebi para apresentar ao grupo em um dos cursos realizados. Conversei com o condutor antes. Precisava alinhar minha compreensão do que iria levar ao grupo. Duas frases contam minha indignação:

Só nas ações humanas podemos observar uma influência perceptível de um conceito sobre algo distinto.

Finalidades da vida que o ser humano não estabelece para si mesmo também são suposições injustificadas. só é apropriado o que o ser humano fez nesse sentido, pois somente pela realização de uma ideia é que surge o adequado à finalidade.

É muito conceito, mas dá pra captar algo que muita liderança repete: visualize e aja! Somos seres pensantes e falantes, use essa capacidade para agir no mundo. Eu não consigo!

Quando visualizo não vejo o todo, não vejo as saídas. Não capto mais pensamentos que me mostram o caminho. O tempo dedicado ao sonho das aldeias, das comunidades e do coletivo cheio de fazeres me trouxe tantas dores e verdades cruéis dos recortes que somos que perdi a capacidade de acreditar e sem fé parece tão árduo, tão pesado tornou o pensar como meio para agir a partir do que te move a alma.

Vivo a impotência. Hora de dar pausa aos estudos para encontrar a risada que se pode dar das dores de quem resiste seguir caminhos.

Resistência e novos recortes

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