ᑕYᗷEᖇᑭᑌᑎK: Recuperando a resistência de um movimento a frente de seu tempo
Texto desenvolvido para a matéria de filosofia da FAAP ministrada pelo professor José Correa Leite
Qualquer coisa denominada moderna implica intrinsicamente um conjunto de fatores que colaboraram no surgimento de sua complexa existência, quando falamos de política, isto se torna mais claro do que nunca. De assuntos que vão das consequências psicológicas das novas tecnologias até guerras provocadas por redes sociais. Vivemos na mesma época da maior faca de dois gumes já criada na história da humanidade, a internet e a tecnologia acessível revolucionaram o mundo de um jeito nunca possível antes: global. Pessoas de todos os cantos do mundo poderão ter acesso a informações que lhe interessam ou não, e a partir daí se dá o início da conturbada política moderna.
O fator que colaborou para a consolidação do modelo neoliberal que adotamos hoje, foi o liberalismo. A promessa de uma liberdade surge primeiro na ideia de John Locke no séc. XVII de que a propriedade deriva de trabalho, logo você não possui o que você não trabalhou para adquirir. Esta ideia serviu como base para a tomada do poder pela burguesia, que a partir do momento que se torna livre para multiplicar seus negócios, logo se torna mais poderosa que o estado.
Simplificando a grande onda que contribuiu para a queda do liberalismo, foi principalmente a corrida armamentista relacionada as disputas pelas colônias africanas que leva a primeira guerra mundial que acarreta na crise de 1929 nos Estados Unidos, quando o centro da economia mundial é abalado e o liberalismo deixa como resultado uma Europa destruída por guerras, indústrias transformadas em fábricas bélicas e uma mão de obra morta em campo de batalha, e a partir deste momento o estado vai ser chamado para intervir e tomar as providencias necessárias para estabilizar a economia.
A partir daí, o keynesianismo vai se tornar o protagonista, que era o ideal de um estado máximo e protetor da nação que interfere diretamente na economia através de incentivos como o período de bem-estar social que busca estabelecer as perdas trazidas pela guerra. Porém, este período vai ser suplantado por um período de ganho econômico, até que a Escola de Chicago propõe o consenso de Washington em 1989 que pretende a privatização de empresas estatais, a retirada de proteções ao capital estrangeiro em investimentos, a desregulação do estado na economia e a proteção da propriedade privada dos meios de produção, ou seja, a emergência de uma economia que prega a competição entre os indivíduos-empresas.
Assim, os anos 1980 no Ocidente são marcados pelo triunfo de uma política “conservadora” e “neoliberal” trazida à tona por nomes como Ronald Reagan e Margaret Thatcher. (Dardot e Laval, 2016). O neoliberalismo surge como o ideal de um “Novo Mundo” em que os senhores empreendedores seriam mais livres para se adaptar, criar e empreender para contribuir com a sociedade e promover as trocas internacionais. Como disse o presidente George Bush em sua visita ao Congresso Nacional em Brasília em 1990:
“Para alcançar o novo destino do Novo Mundo, todos das Américas e do Caribe devem embarcar em uma empreitada para o próximo século: criar o primeiro hemisfério totalmente democrático da história da humanidade. O primeiro hemisfério devotado ao ideal democrático, para desencadear o poder de povos livres, eleições livres e mercados livres”
A relativa “possibilidade” e “liberdade” que o neoliberalismo trouxe, incentivou mais ainda o florescimento da individualidade com seu ideal de que cada um tem sua chance de tornar-se bem sucedido, o governo não vai intervir na economia, os EUA ajudarão a florescer a economia mundial e todos irão ter a mesma oportunidade, desde o agricultor do Pará até o homem branco que faz um curso de verão em Harvard. Foi também durante esse
período que se popularizou a ideia de “Darwinismo Social” que defendia que o caminho para o sucesso em sociedade é similar a evolução das espécies.
Enquanto essa narrativa se mantinha firme dentro das classes médias pelo mundo, países explorados amontoam dívidas externas bilionárias, recessão, hiperinflação e desemprego em massa, porém isto só aconteceu com tais países por não saberem administrar suas economias.
Durante os anos 90, a partir do ideal de uma economia mundial neoliberal, surge na mídia um apelo à união, troca entre culturas, e uma romantização do mundo não-Estados-Unidos. Para idealizar um mundo perfeito, a publicidade norte-americana começa a incentivar a apreciação pelas culturas já destruídas pelo ocidente como propagandas da Coca-Cola idealizando corais de crianças de várias etnias, o discurso de Martin Luther King Jr. é apropriado pela marca de caminhonetes Dodge durante o Super Bowl, ou a própria onda de World Music que surge nessa época.
Esse período foi o ápice do niilismo moral, quando os EUA acreditavam que podiam além de explorar os recursos de países subdesenvolvidos, também explorar suas culturas e transformá-las em commodities, o neoliberalismo então se mostra como a mais moderna forma de colonialismo.
Talvez o que mais caracteriza a hipocrisia neoliberal é a constante apropriação de culturas e subculturas por empresas que lucram absurdamente em cima de tais. A ignorância do homem branco o levou ao topo. Como bem pontua a autora Wendy Brown (2019):
“O lado economicizante do neoliberalismo adicionou força e acelerou o niilismo de nossa era. Primeiro ao não deixar nada intocado pelo empreendedorismo e pela monetização; depois, com a financeirização, ao submeter todos os aspectos da existência humana a cálculos de investimento sobre seu valor futuro.”
Coisas que surgiram como obra da curiosidade humana, como arqueólogos, ativistas e artistas, rapidamente tornavam-se commodities apropriadas pela mídia de massa que buscava ampliar seus negócios mundialmente como por exemplo as propagandas da Coca-Cola que pregavam a beleza da diversidade humana apenas em seus comerciais, a partir daí, percebemos a farsa neoliberal.
Tudo isso se monta até que as pessoas percebem que serem indivíduos no mercado não é mais suficiente pois precisam também ser únicas em suas vidas pessoais para que possam ter uma vida ideal, essa dinâmica é clara principalmente em filmes dos anos 90 que possuem como base um personagem principal (geralmente um homem branco heterossexual) que se cansa de sua vida suburbana e passa a buscar uma certa “independência social” como Clube da Luta (1999), Beleza Americana (1999), De Olhos Bem Fechados (1999) etc.
Interessantemente, durante a mesma época, o movimento cyberpunk emergiu na contracultura, surgiu primeiro na literatura e rapidamente se expandiu para música, filmes e videogames, foi talvez o primeiro movimento filosófico a questionar os superpoderes tecnológicos das grandes multinacionais, e fazia isso de uma forma completamente experimental e sem restrições. Apesar de ter se popularizado principalmente como uma estética em filmes como Matrix (1999), Ghost in the Shell (1995) e Blade Runner (1985), tinha em sua base uma filosofia reacionária que questionava as questões morais nas relações de poder Humano-Máquina.
O cyberpunk criticava o presente através de provocativas dissertações sobre o futuro, abordando temas como a tecnologia, o cyber espaço, o capitalismo acelerado, e as classes marginalizadas. O autor Jean Baudrillard chegou a falar sobre as assustadoras similaridades da ficção científica e o cenário político-social da época e tem seu livro referenciado no filme Matrix de 1999.
Mike Davis, já nos falava que o cyber-fascismo estava no horizonte em 1995:
“A ficção científica extrapolativa pode operar tanto como uma teoria social prefigurativa, como uma política de oposição antecipatória ao cyber-fascismo que se espreita sobre o próximo horizonte” (Tradução livre) Mike Davis, apud. Jonas Čeika (2019)
Considerando tal ideia como o controle a partir de meios tecnológicos, como o big data e o próprio Big Brother, o qual Orwell já nos alertava em 1989, e acabou sendo diretamente apropriada pela mídia pós-moderna, o mais assustador desta realidade não é que já normalizamos tal forma de entretenimento, mas que temos prazer em consumir, e mais ainda em participar do mesmo.
Um dos temas explorados pela teoria cyberpunk foi a ideia do armazenamento infinito de informações e quem domina tais. Se de acordo com Byung Chul-Han (2020) as redes sociais já são um impulso enorme para o cansaço e o controle da liberdade, a tendência de tais controles é aumentar ou, esperançosamente, serem resistidos, como propõe o documentário Dilema das Redes (2020), porém, o próprio documentário é contraditório pelo fato da produtora Netflix ser atualmente o maior veículo neoliberal de controle político e social através de suas produções.
A autora Donna Haraway dialoga com a autora Wendy Brown no conceito deste niilismo moral em que Haraway fala sobre uma possível evolução cyborg da humanidade e como isso destronaria qualquer ideal de uma moral teológica: “O cyborg está resolutamente comprometido a parcialidade, ironia, intimidade e perversidade. É opositor, utópico e completamente sem inocência.” (Tradução livre) (Haraway, apud. Jonas Čeika, 2019)
Ao contrário da onda neoliberal dos anos 90, na cultura cyberpunk os personagens principais são comumente os excluídos e marginalizados que
abraçam esta posição e se organizam com outros hackers, cyberpiratas etc, não por uma natureza humana inerente, mas precisamente pelas várias diferenças que desencadeiam seus potenciais como no filme Hackers de 1995.
A própria incorporação do sufixo punk com o termo cyber indica um movimento de resistência ao próprio futuro, que apesar de dito ser incerto, é bem óbvio para quem quer ver. Apesar de hoje em dia não sermos todos punk, definitivamente somos cada vez mais cyber. Se considerarmos a ideia de um cyborg, atualmente mesmo não havendo um indivíduo com um número de informações infinitos implantado em seu cérebro, definitivamente há indivíduos com acesso as máquinas que possuem tais informações, e isso acontece devido a sua liberdade de mercado e ao moderno niilismo moral.
Os próprios hackers surgiram como um movimento de resistência ao estado e as grandes multinacionais, que ao sacrificarem à internet todos os seus dados para assim poderem adquirir os dados da população, os hackers percebem que eles têm o poder de descobrir informações que denunciam as intenções das empresas no poder e levar tais informações ao público, ainda hoje o grupo Anonymous continua a desmascarar o fascismo na política e na economia, porém mesmo assim, escolhemos tomar a pílula azul.
O próprio movimento Cyberpunk tem seu rápido declínio pois acaba sendo sugado pelo capitalismo e apropriado pela massa apenas como uma estética que enterra todo seu background teórico. Como no live action “Ghost in the Shell” (2017) que traz nada mais que uma atriz dentro do padrão hollywoodiano como uma cyborg em cenas de ação sensacionalistas.
Notavelmente, o jogo Cyberpunk 2077 surge como uma proposta de recuperação do movimento, porém são notáveis diversas controvérsias que trazem à tona a apropriação neoliberal como o fato de os donos da desenvolvedora do jogo serem uma dupla de homens brancos europeus e apesar do autor negro Mark Pondsmith atuar como consultor do jogo, o principal desenvolvedor é novamente um homem branco europeu.
Embora o jogo tenha demonstrado uma tentativa de diversidade como representações de outros gêneros, personagens etnicamente diversos etc, o personagem principal na capa se mostra como um característico homem masculino além do fato da maioria dos influenciadores a receberem acesso antecipado ao jogo também serem homens neste mesmo padrão. Para concluir, a versão solo do jogo se estipula no valor de $59,99 que contribui a crítica original dos detentores de poder e quem tem realmente direito de participar na competição neoliberal.
Cada vez menos o estado controla o cyberpoder, que está assustadoramente sendo mantido por homens brancos heteros e cis (Elon Musk, Marck Zuckerberg, Jeff Bezos). Atualmente nos preocupamos com os líderes de Estados, porém estes são facilmente destronados, o real perigo da detenção de poder na pós-modernidade são os multibilionários americanos.
Vivemos em uma realidade cyber disfarçada que nos faz acreditar que o mundo continua o mesmo como na era do welfare state, mas a verdade é que fomos enganados novamente pelo neoliberalismo: as startups através de seus clean designs que prometiam ser ferramentas úteis e tinham como ideal a conexão mundial e a troca de experiencias através da internet acabaram dominando o poder cibernético e não pretendem revogar.
A Matrix se torna cada vez mais real em nossa frente, mesmo tendo previsto as consequências da supercybernização de nossas vidas, levamos filmes e literatura como apenas ficção e hoje nos choca perceber que estamos sim sendo observados por um grande sistema de empresas que possuem acesso a toda e qualquer informação sobre nós fornecida online.
Em meio a este caos neoliberal, surge a personalidade da produtora musical Arca, uma artista trans não-binária que desafia todo o conservadorismo dos costumes e liberalismo da economia, ela explora todos os sentidos de liberdade e provoca a relação humano-máquina-futuro, apesar de este ser um movimento que por agora se expande na música, surge como uma esperança de diversidade na questão de quem irá moldar o futuro.
Arca experimenta não só com a música, mas com a estética infamiliar cyberpunk, desde clipes musicais a performances ao vivo, além de questões relacionadas a identidade e futuro serem constantes em suas criações artísticas que são de grande importância cultural. Chegou em uma de suas músicas desenvolver um conceito de civilização distópica:
“@@@@@” é uma transmissão para este mundo a partir de um universo fictício especulativo, no qual o formato fundamentalmente analógico do rádio pirata FM continua sendo um dos poucos meios de escapar à vigilância autoritária alimentada por uma consciência de refém gerada por uma IA pós singularidade. A apresentadora do programa, conhecida como DIVA EXPERIMENTAL, vive em vários corpos no espaço em virtude de sua perseguição — para matá-la, é preciso primeiro encontrar todos os seus corpos. Os corpos que a hospedam carregam fetiches de paralinguística, quebrando a quarta parede e alimentando uma fé mutante no amor diante do medo”.
(TECOAPPLE, 2020)
O mais inquietante é o enigma de se foi o movimento cyberpunk que criou a distopia que cada vez mais se aproxima da realidade ou ela aconteceria independentemente, uma ideia que o próprio filme Matrix de 1999 nos provoca: “Se você sabia que isto iria acontecer, porque não saiu antes de eu chegar?”. A teoria cyberpunk nos possibilita levar a sério questões sociopolíticas que se tornam cada vez mais próximas da realidade.