Um pra frente, dois pra trás: o contra-golpe conservador

Depois da vitória de Trump, de Doria e do Brexit, definitivamente não são mais os progressistas que pautam a sociedade. Onde foi que o avanço democrático abriu brecha para o retrocesso?

Conrado Giannetti
10 min readMar 9, 2017

Prefácio. O problema é o seguinte: continuar apostando em um modelo de vida baseado no consumo é insustentável. Mesmo que um outro modelo ainda não tenha se firmado como alternativa e estejamos vivendo uma espécie de hiato da História, a mudança é, além de vindoura, inevitável.

Foi sob essa verdade que tantos de nós dedicamos trabalho e energia nestes últimos anos. Se falou de consumo consciente, de trabalho escravo, de fazer o que se ama, de alimentação orgânica, de igualdade racial e de gênero, de horizontalidade, de produção local, de viver sem correr.

Se falou e se fez.

Portanto longe de mim fazer terra arrasada e sugerir que estas ideias não estão aí germinando, contudo algo ocorreu. Aos poucos, o debate público foi novamente sendo dominado por figuras que nada se interessam por estas pautas. Pior, tais figuras representam o recrudescimento do modelo que está aí, falho e com prazo de validade.

O que aconteceu? Em que momento a ascensão de bandeiras progressistas e humanitárias levou um rapa dado por um discurso pragmático e preconceituoso? Quando foi que o sim, nós podemos perdeu a vez para o cada um por si?

Pergunta difícil de ser abarcada nem tanto por uma quantidade considerável de suspeitos, mas pelo tamanho do principal. Pois ele está no centro de todas as conscientizações citadas acima. Foi debatido, questionado, posto em dúvida. Entretanto, tem anos-mil de experiência e resistiu. Cancheiro, esperou sua hora e revidou, como revida um joão-bobo.

Nosso principal suspeito, o qual entra 2017 surrado mas em pé, responde pelo nome de progresso.

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O mundo além do Face. Uma das reações que melhor representaram a ressaca da turma progressista com a vitória de Donald Trump foi esse tweet.

Durante um período, as soluções de nicho se acreditaram de massa.

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Jogando como dá. No dia da eleição norte-americana, Vladimir Safatle viu na Universidade da Carolina do Norte uma pichação dizendo “Trump: sexista, machista, racista, islamofóbico, homofóbico”. Safatle vê justiça nos ataques, mas atenta ao fato de que todos os insultos estavam ligados ao campo das individualidades e refletiu: “a luta por reconhecimento funciona atualmente como uma certa compensação à inexistência de um discurso econômico de esquerda com clara força de transformação das relações econômicas”. A ascensão da questão de igualdade racial e de gênero durante as gestões Obama e Lula/Dilma, combinada com suas tímidas transformações estruturais, passam por aqui.

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Sonhos de outrora. Nos anos 70, Erich Fromm definiu o progresso científico-tecnológico como a Grande Promessa. Ele se referia à crença de que “a sujeição da natureza, a abundância material e a liberdade individual sem peias” distribuiriam um dia a felicidade como nunca antes. A Promessa fracassou, segundo Fromm, pelos seguintes motivos: — a busca irrestrista pela satisfação dos desejos não leva a um estado de bem-estar; — o desenvolvimento econômico seguiu limitado às nações ricas; — como consequência do avanço tecnológico, se prevê um colapso ambiental.

Os apontamentos de Fromm, todavia, não preveniram que a geração seguinte vivesse um reboot da Grande Promessa. Os millennials foram o batalhão de frente da Grande Promessa versão século 21, cujo símbolo máximo é inegavelmente o Vale do Silício.

Por um bom tempo, acreditou-se que a filosofia importada de lá seria capaz de salvar o mundo, mas o tempo acabou revelando duas limitações práticas: uma: soluções como fazer o que se ama e comida orgânica atendem a um nicho bem restristo, aplicadas à sociedade em geral, elas se tornam ou inviáveis ou exigem uma transformação total de tudo e todos; duas: muito discurso, pouca ação, os ideais coloridos de uma start-up sobreviviam até ela conhecer uma coisa chamada investidor.

E a Grande Promessa vol. 2, a qual inicialmente parecia tão fresca e vacinada, foi perdendo suas fantasias a ponto de confundir-se com a original.

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A delícia de ser vanguarda. Talvez tenha sido no instante em que o apontaram como tendência que o consumo consciente tenha morrido. Pois seria o chamado lowsumerism a superação da sociedade materialista ou só mais um estágio desta? Estamos agora substituindo todas nossas velhas coisas por todas novas coisas, as quais estas sim estão em casamento com o meio ambiente e em harmonia com sua linha de produção. Claro, melhor isso do que nada, mas deixo a reflexão: depois de trocarmos nossas roupas, móveis e utensílios, se ser um consumidor consciente virar comportamento de massa, e perder assim seu valor tribal, deixando de ser a expressão de gente esclarecida e diferenciada, você vai continuar plantando mudinhas e andando de bicicleta?

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Maldito espelho. Nesta entrevista para o Fluxo, a advogada e ativista Deborah Small lembra algo certamente óbvio mas que não é fácil de encarar: mudar a economia e a política depende de reinventarmos radicalmente a nós mesmos.

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O de sempre, com perfume. Douglas Rushkoff é um crítico e ao mesmo tempo um amante do avanço tecnológico. Estuda, participa, propõe soluções. Uma das suas frases de impacto recentes foi de que estamos fazendo a “economia digital do século 21 funcionar com um sistema operacional do século 13”.

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Chamemos pelo nome. Agora, do alto de 2017, fica mais fácil de atestar: a maioria das iniciativas que prometeram-se a mudar o mundo flertaram muito mais com estética do que com estrutura. Em vários casos, seria bem mais correto e sincero chamar de substituição o que se convencionou chamar de disrupção.

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Mais presentismo, menos futurismo. Essa imagem messiânica da tecnologia vai nos enrolar até quando? Porque já está aqui, um mundo em que todos poderiam ter acesso ao suficiente, em que ninguém precisaria passar fome ou frio ou vazio. Já chegamos num estágio incrível de produção de bens e serviços e eles continuam mal distribuídos e ainda mais preocupante, seguem alimentando uma crescente desigualdade financeira e intelectual. Qual a razão para acreditar que será dessa vez, que quando finalmente chegarem os carros auto-dirigíveis, as impressoras 3D e a realidade virtual, a Humanidade atravessará um portal para a Terra Prometida?

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A faca, o queijo e o poder na mão. Em entrevista recente, o ex-presidente Lula conta que certa vez questionou um dos irmãos Marinho sobre a cobertura incomum realizada pela TV Globo sobre as manifestações de junho de 2013. Deixando de lado a questão da mídia oligárquica e mesquinha que temos no Brasil, é curioso Lula utilizar como exemplo logo 2013.

Logo o ano em que as manifestações, em sua essência, tinham os ataques dirigidos ao poder concentrado, às instituições caducas, à lei máxima do lucro a qualquer custo.

Isso diz muito sobre Lula e sobre o PT. Eles tem o mérito de terem arrancado o país do passado, mas jamais souberam como levá-lo para o futuro (coisa que nem os EUA e a Europa parecem saber). Em 2002, o Brasil tinha gente morrendo de fome, 40 milhões na pobreza extrema e uma pirâmide social sólida como rocha. Já o Brasil de 2013 gritava que TV de tela plana e geladeira não era o suficiente para ser feliz.

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Pra frente, Brasil. O desenvolvimentismo funcionou por um período, jogando lenha na fogueira da indústria automobilística, das transações com a China, das commodities. Entretanto, como está lá no começo deste texto, continuar apostando em um modelo de vida baseado no consumo tornou-se insustentável. Faliu o projeto, deu-se o golpe.

Agora a parte trágica. Se podemos dizer que uma política de bem-estar social foi sendo timidamente implementada ao longos dos governos Lula/Dilma, tal diretriz não deve surgir nem nos pesadelos de Michel Temer. Ao assumir oficialmente a presidência, o eterno mandado falou em espalhar o seguinte outdoor país afora.

Ou seja, neste governo nem se cogita buscar uma alternativa a este sistema antigo e disfuncional. Não fale em crise. Não pense nela. Não perceba que ela é fruto do próprio modelo econômico que estamos reforçando.

Com o discurso de salvar o Brasil, querem mesmo é salvar o molde de país desigual, patrimonialista e clientelista.

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Falta de inspiração? A rodada que passou de grandes líderes com espírito democrático, entre eles Obama, Merkel, Lula, Annan, nenhum, festejados que são, jamais deram um pio sobre o problema. A não ser Mujica, todos compactuaram e enalteceram a ideia de progresso que está aí. Para mudar, ou lhes faltaram ideias ou lhes faltou poder.

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Progresso pra onde? Na intenção de explicar o perigo que se encontra na idolatria ao PIB, nosso índice econômico mais sagrado, Eduardo Giannetti propõe uma hipótese: imagine uma comunidade com acesso à água potável, ar respirável, bom transporte público. Digamos que, por alguma desventura, a água ficasse poluída, o ar impuro, o transporte público falisse. Os moradores dessa comunidade teriam que tratar a água, comprar carros, levar tubos de oxigênio no bolso. O que aconteceria com o PIB? Ele subiria. “O PIB, em suma, mede o valor monetário dos bens e serviços que transitam pelo sistema de preços — e nada mais”.

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American nightmare. O individualismo é uma arapuca muito bem montada. Andrew Sullivan, em “Trump e os limites da democracia”, indica a atomização da classe trabalhadora como uma das razões para uma possível vitória de Trump (artigo foi publicado em junho de 2016). “Vivemos numa época em que uma mulher poderá suceder a um negro na Presidência, mas também uma época em que um homem branco da classe trabalhadora tem cada vez menos oportunidades para alcançar um nível de vida decente. Uma época em que os gays podem se casar nos cinquenta estados americanos e em que, ao mesmo tempo, as famílias da classe trabalhadora experimentam enormes dificuldades financeiras”. Os avanços no plano do indivíduo maquiaram o desconserto no plano do coletivo. Parte expressiva da sociedade norte-americana, mas sentindo-se isolados e condenados, os brancos heteros partiram para a ignorância: elegeram Donald.

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American dream. Simbolicamente, a vitória de Trump é a tentativa de ressurreição do american dream e não sua derrocada. Ora, o american dream, a promessa de que todo cidadão teria todas as condições e liberdades necessárias para chegar aonde pudesse chegar, independente de sexo, cor ou classe, foi cunhado em 1931, quando os EUA era um país racista até o osso. Discurso demagógico que funcionou, e funciona. Na teoria, Obama, mas na prática, é Trump quem está mais próximo do que significa o american dream.

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Brazilian dream. E nós, por aqui, vamos acordando aos solavancos do sonho brasileiro. Engordam os banqueiros, emagrece o povo. O motivo do golpe, algo cada vez mais claro, foi devolver o bastão à elite financeira. Ela que dita, novamente e sem ouvir um pio, os rumos da nação.

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Sociedade do espetáculo. Durante os primeiros meses de 2016, política foi assunto tratado no Brasil como se novela fosse. Infelizmente, não é. Os mocinhos podem ser os bandidos, o enredo é confuso e tudo indica um final trágico. Depois do golpe, tudo voltou ao normal: os noticiários assustam e entretêm, mas não convocam. A massa, fala nada. Sobre política, só tratam os que tem estômago.

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O ringue. Existem duas lutas essenciais a serem travadas. Uma é interna. Uma luta contra a concepção de que cobiça e egoísmo são qualidades da natureza humana e de que por isso esse sistema projetado pro acúmulo seria o mais adequado ao nosso ser. A outra luta é externa. Existe uma classe que não está nem um pouco interessada em rever seu modo de vida e, acima de tudo, em revisar a maneira com que toca seus negócios. Se você leu até aqui pensando que tudo isso é uma grande besteira, você faz parte dela. Ou, tragicamente, acha que faz.

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O declínio da razão. “Que o mundo ocidental haja levado tanto tempo — e relute ainda em fazê-lo — para se dar conta de que a arrogância científico-tecnológica na exploração da natureza nos condena a uma intolerável degradação do ambiente e a um absurdo risco ecológico ficará talvez como o maior paradoxo de uma civilização que sempre se orgulhou de ter na racionalidade o seu princípio unificador”. Pensando no que pensou Eduardo Giannetti, se foi o uso abusado da razão que nos trouxe até aqui, talvez seja hora de explorar com mais carinho os recantos da mente que dançam ao largo da lógica, da matemática e do exato.

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O retorno. Face aos resultados da trajetória humana até aqui, é engraçado como um ajuste fino do que significa progredir leva a uma meia-volta. Mesmo que em questões fundamentais fôssemos por demais brutos e insensatos, em outras o nosso passado primitivo é digno de exemplo: a relação estreita com a natureza, a noção de comunidade, a divisão-irmã do trabalho, da comida e do lazer. Este é um retorno, em termos de História. Um outro é o retorno em termos do indivíduo. Pois quantas das qualidades que os problemas atuais nos exigem nós deixamos na infância? A curiosidade a mil, o não-vício de julgar tudo que vê e quem sabe a mais importante de todas, a noção de que a vida está aí para ser inventada.

Bibliografia. Foram três os livros-chave para escrever esse texto. Throwing Rocks at the Google Bus (2016) do Douglas Rushkoff, Ter ou Ser? (1976) do Erich Fromm e Trópicos Utópicos (2016) do Eduardo Giannetti. Todos valem muito a leitura para o aprofundamento dos temas aqui tratados.

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