A NFL, mais uma vez, é conivente com violência doméstica

André Magalhães
10 min readNov 28, 2018

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Foto: Sports Illustrated

O episódio envolvendo o Linebacker Reuben Foster é mais uma prova de como a liga ainda tem dificuldades para uma abordagem rígida ao assunto

No último sábado (24), o linebacker Reuben Foster, até então do San Francisco 49ers, foi preso com acusações de violência doméstica na cidade de Tampa. De acordo com a polícia, ele teria dado um tapa no celular da vítima, empurrado-a e depois ter dado outro tapa no rosto dela. Foi a segunda acusação do tipo que Foster recebeu no ano: em fevereiro, a mesma vítima o denunciou, mas voltou atrás.

O San Francisco 49ers, na época da primeira denúncia, anunciou que aguardaria as decisões legais, mas que não teria mais tolerância com episódios do tipo. Prontamente, após o segundo incidente, o time anunciou a dispensa de Foster, que havia sido escolhido há um ano na primeira rodada do Draft da NFL.

O tempo de Foster sem um clube, no entanto, durou pouco. Depois do anúncio da dispensa, no dia 25, o Washington Redskins anunciou ontem a contratação do jogador. Foram 3 dias entre a prisão, dispensa e a segunda chance para alguém que acumulava mais de uma denúncia pelo mesmo crime.

De imediato, grande parte da comunidade envolvendo a NFL teve uma posição muito crítica ao acontecimento. Mina Kimes, jornalista e apresentadora na ESPN americana, recuperou um comunicado do próprio Washington Redskins feito em setembro de 2014, em meio ao episódio de violência doméstica envolvendo o jogador Ray Rice.

No comunicado, assinado pelo dono Daniel Snyder, a franquia se solidarizava com as ações do comissário Roger Goodell e que “toda a organização Washington Redskins fortemente apoia os esforços para erradicar o abuso doméstico e a investigação independente da agressão de Ray Rice”.

Anne Doepner, Diretora da Administração de Futebol Americano do Minnesota Vikings, fez uma manifestação sutil em seu perfil no Twitter. Minutos após o anúncio da contratação de Foster, ela anunciou uma doação para o abrigo Women’s Advocate, destinado a vítimas de violência doméstica e abuso.

Diante da repercussão, o Washington Redskins também emitiu um comunicado oficial sobre a situação. Assinado por Doug Williams, ídolo da franquia e vice-presidente do departamento de jogadores do time, o texto clarificava que “Reuben passará por diversas etapas, incluindo todo o processo legal, investigação e punição da NFL, assim como reuniões com conselheiros associados ao time” antes de poder jogar. O comunicado na íntegra pode ser conferido aqui, em inglês.

O caso de Reuben Foster é apenas mais um para a extensa lista de jogadores da NFL acusados de violência doméstica. Foster não é o primeiro a receber uma segunda oportunidade na liga e, a não ser que providências mais duras sejam tomadas no futuro, não será o último. Constantemente os times da NFL priorizam o talento e o potencial de um jogador contra graves acusações criminosas.

Isso leva a um questionamento: os times realmente possuem confiança no desenvolvimento dos jogadores ou a NFL é uma liga muito branda quando o assunto é punir agressões? Historicamente, o número de casos de agressão pesa muito na imagem pública da liga nos Estados Unidos, que tenta promover medidas para o combate. Entretanto, mesmo com esse esforço, as denúncias e acusações não param de surgir.

Jacqueline Lima, do portal NFL Luluzinha Club, composto integralmente por mulheres, considera a postura da liga “passiva e condescentente”. “A Liga se torna cada vez mais indefensável nesse sentido, quando permite que jogadores com acusações de violências, não só doméstica, mas contra a mulher em geral, como foi com o Joe Mixon, permaneçam na NFL sem nenhuma punição. Acreditamos que o caminho está no exemplo, na correção, para o bem até dos próprios jogadores, pois a maioria é jovem e podem sim aprender com os erros. Impunidade não ensina nada a ninguém”, completa.

Essas decisões na liga possuem imensa repercussão negativa com o público feminino, que nos EUA compõe 45% de toda a audiência do esporte. A liga vem tomando decisões para aumentar a participação feminina, incluindo mulheres em comissões técnicas e de arbitragem, mas as ocorrências de violência seguem um caminho contrário. “É sempre uma mistura de medo com raiva”, comenta Jacqueline. “Como mulheres, sabemos que isso pode acontecer com qualquer uma de nós, com qualquer uma de nosso convívio e isso nos traz muito medo. E ver esse crime sendo cometido por atletas que deveriam ser nossos ídolos causa revolta. Amamos o esporte e naturalmente quem o faz, mas não dá pra ter ídolos abusadores. Simples assim”.

Roger Goodell, o comissário da NFL desde 2006. Foto: AP

O ápice dessa crise envolvendo a violência doméstica na NFL pode ser considerado o episódio de Ray Rice, em março de 2014. Rice, uma das estrelas do Baltimore Ravens e campeão do Super Bowl dois anos antes, foi preso por agredir sua noiva. Um vídeo feito por câmeras de vigilância mostrou o jogador arrastando a mulher, inconsciente. A punição que dada pela liga ao jogador foi uma suspensão de dois jogos.

Meses depois, outro vídeo do acontecimento foi divulgado, dessa vez mostrando as agressões de Rice. O jogador foi dispensado do Baltimore Ravens e, em um acordo, ficou estabelecido que todo o seu salário seria destinado para organizações que tratam de violência doméstica se fosse contratado por outro time. Ele não conseguiu voltar à NFL, mas o comissário Roger Goodell reconheceu que a liga cometeu um “erro terrível” com a leve punição e que iria lançar uma nova política de conduta. Nesse novo regulamento, qualquer atleta receberia uma punição de 6 jogos se cometesse a primeira agressão. Em uma situação de reincidência, o indivíduo seria banido da liga por um ano.

O episódio de Rice teve uma repercussão diferente porque, pela primeira vez, havia evidência em vídeo de que realmente havia acontecido. Nos últimos anos, as denúncias feitas contra jogadores ganharam mais visibilidade e exposição pela imprensa, o que acaba refletindo na comunidade que acompanha o esporte. Segundo Jerry Angelo, ex-General Manager do Chicago Bears, em uma entrevista feita em 2014, os times e a liga já acobertaram centenas de denúncias e histórias de abuso e violência.

Goodell nomeou Anna Isaacsson como vice-presidente de responsabilidade social da NFL, e então começou uma forte campanha para o combate à violência. Foram feitos seminários e apresentações para os 32 times, além do investimento em propaganda reforçando essa luta da liga. Ainda é difícil analisar os resultados, mas definitivamente não significou o fim. Jogadores continuam praticando atos violentos, suspensões continuam sendo insuficientes e os times continuam dando novas oportunidades.

Não é difícil encontrar atuais estrelas da liga que estejam sendo investigadas ou já foram no passado. Somente nesse ano, segundo uma base de dados do USA Today que registra todas as prisões de jogadores de futebol americano, foram 8 por violência doméstica desde janeiro de 2017.

Para Izadora Pimenta, jornalista e pesquisadora em linguagem e esporte, a maior exposição desses relatos é importante para a conscientização tanto de fãs como de atletas: “Os casos de violência também dependem de uma certa midiatização. Se são pouco divulgados, tornados menos importantes em detrimento às outras notícias a respeito do esporte em questão, logo são esquecidos, de forma que aquele ponto na “trajetória do herói” vivida pelo jogador pode não ser conhecido por todos. Se a própria equipe/franquia que ele representa trabalha para acobertar esses casos, também pode criar um sentimento na torcida de que esta deve seguir a decisão adotada — sem esquecer que a torcida também está sujeita aos mesmos estereótipos patriarcais”

Ezekiel Elliott, a quarta escolha do Draft de 2016, foi suspenso por 6 jogos por ter acumulado cinco denúncias de agressão contra sua namorada, em uma investigação da NFL que durou um ano. Kareem Hunt, do Kansas City Chiefs, foi acusado de agredir uma mulher de 19 anos em fevereiro desse ano, mas não houve suspensão. Em julho, LeSean McCoy, do Buffalo Bills, foi acusado de agredir a companheira e seu filho de 6 anos. McCoy negou as acusações e não houve uma decisão da liga sobre o acontecimento.

Em outras situações, a segunda oportunidade não vem na NFL, mas em outro esporte. Exemplo de Greg Hardy, chamado ao Pro Bowl em 2013 quando atuava pelo Carolina Panthers. Hardy foi denunciado por ter espancado sua ex-namorada em 2014. Foi punido pela NFL e colocado na lista de isentos, sem poder praticar nenhuma atividade relacionada ao esporte. No ano seguinte, assinou com o Dallas Cowboys e recebeu uma punição de 10 jogos, depois reduzida para 4. Ficou por uma temporada e depois foi parar no MMA, tendo lutado em eventos promovidos por Dana White, presidente do UFC.

Para Izadora Pimenta, as ligas e associações de jogadores possuem responsabilidade na recorrência de situações de agressão:

“A partir do momento em que a violência cometida por homens é naturalizada em uma sociedade, as ligas e associações devem combater esses casos não somente com medidas paliativas. Quando se observa uma cultura na qual não há nenhum dano à vida pública de quem comete uma violência doméstica, a tendência é que esse ato seja repetido por não ser considerado discursivamente criminoso dentro de um determinado campo. A mudança não deveria vir apenas das ligas e das associações, mas da cultura machista e patriarcal no esporte e na sociedade como um todo. Mas, como isso tudo ainda é uma luta constante, devem ser discutidas as questões que associam o esporte como uma cultura viril. Acredito que um trabalho psicológico com os jogadores e a desconstrução da masculinidade tóxica nesses espaços seriam pontos que poderiam colaborar para que uma mudança começasse a ser feita, de fato.

A postura da NFL com esses casos chega a ser controversa se colocada em perspectiva com outras suspensões aplicadas pela liga. Em 2016, Tom Brady cumpriu 4 jogos de suspensão por suposta participação no Deflategate, no qual a equipe do New England Patriots foi acusada de deliberadamente murchar as bolas usadas pelo ataque do time adversário. Na atual temporada, o Running Back Aaron Jones, do Green Bay Packers, foi suspenso por dois jogos por posse de maconha. Um jogo de suspensão a menos do que Jameis Winston, acusado de ter assediado sexualmente uma motorista de Uber.

O Cornerback Jimmy Smith, do Baltimore Ravens, perdeu os 4 primeiros jogos da temporada por suspensão após violar o código de conduta da liga, em desentendimento com sua ex-namorada. A duração da punição foi a mesma aplicada para jogadores que utilizaram substâncias proibidas pela liga, como Julian Edelman e Mark Ingram.

Outro ponto que precisa ser analisado, além da postura da liga, é a postura das equipes. O Redskins foi o único time que fez uma oferta para Reuben Foster, mas ainda assim conta como uma equipe que quis arriscar toda a repercussão negativa, além de investigações e processos legais, em troca de um possível acréscimo de talento para seu elenco.

O risco contra a repercussão, por outro lado, possui um peso diferente em outros momentos. Como envolvendo Colin Kaepernick e Eric Reid, que decidiram ajoelhar durante a execução do hino nacional americano em protesto contra a violência policial contra negros nos EUA. Kaepernick está sem clube desde 2016 e, nesse intervalo, Quarterbacks de nível técnico questionável já atuaram na liga em seu lugar. Eric Reid, por sua vez, passou a intertemporada desempregado até ser contratado pelo Carolina Panthers no final de setembro para substituir o titular lesionado.

“A NFL, como empresa, é muito mais preocupada com os crimes que causam impactos na sua receita. Infelizmente crimes cometidos pelos seus atletas, mas que os mantém aptos para jogar, geralmente são relativizados”, aponta Jacqueline Lima, do NFL Luluzinha Club. “Os casos de substâncias recreativas ou não tem impacto direto no atleta e no caso do Kaepernick impactam diretamente no bolso. Isso faz com que, infelizmente, ela dê mais atenção/punição para esses casos. No entanto, isso tem que mudar, e estamos aqui como mulheres apaixonadas pelo esporte para tentar contribuir. Criticar, falar sobre, levantar o tema, até que a Liga perceba que a parte humana importa, suas espectadoras importam, que as mulheres importam”, completa.

É claro que a violência doméstica ainda é algo estrutural da sociedade, e atletas são apenas um reflexo. Entretanto, uma liga de um esporte tão violento e preocupada por manter uma boa imagem pública parece sempre suavizar esses acontecimentos, de forma que consigam se repetir com frequência.

Atualização (30/11): O portal americano TMZ teve acesso ao vídeo do incidente envolvendo o jogador Kareem Hunt em fevereiro, na cidade de Cleveland. No vídeo, é possível ver Hunt empurrando diversas vezes uma mulher — em determinado momento, a vítima bate contra a parede. Com a mulher no chão, Hunt ainda desfere um chute enquanto é levado por outras pessoas. O vídeo pode ser acessado aqui.

Na época, nem o Kansas City Chiefs nem a NFL tomaram alguma providência com a denúncia. Em agosto, o CEO do time, Clark Hunt, emitiu um comunicado dizendo que “O time é composto por jogadores jovens. (…) Eles nem sempre tomarão as melhores decisões, mas temos um forte sistema de apoio, tanto com a comissão técnica como com nosso departamento de desenvolvimento de jogadores que trabalha com os jogadores jovens e conversa com eles sobre as situações que eles querem estar”.

Agora, com evidência em vídeo, o tratamento ao jogador pode ser diferente. Segundo Dan Graziano, da ESPN americana, o Chiefs dispensou o jogador do treino de hoje e o enviou para casa. A expectativa é que o jogador fique na lista de isenção da liga até que uma decisão seja tomada.

Hunt é um dos principais jogadores da temporada. Peça-chave do ataque do Chiefs, que lidera a Conferência Americana, é o quinto jogador com mais jardas terrestres até agora. Com os playoffs se aproximando, a NFL se encontra em uma situação em que uma decisão urgente precisa ser tomada. Resta saber se será pensada em combater mais episódios de violência ou priorizarão, mais uma vez, o talento sobre a intolerância.

ATUALIZAÇÃO 2 (30/11, 23:56): Através de comunicado nas redes sociais, o Kansas City Chiefs anunciou o corte de Kareem Hunt do elenco. Confira a tradução livre:

“Mais cedo nesse ano, tivemos atenção em um incidente envolvendo o running back Kareem Hunt. Na época, a National Football League e os oficiais da lei iniciaram investigações do ocorrido. Como parte de nossas discussões internas com Kareem, diversos membros da nossa direção conversaram diretamente com ele. Kareem não foi verdadeiro nessas conversas. O vídeo disponibilizado hoje confirma esse fato. Estamos imediatamente dispensando Kareem”.

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