Liberdade de imprensa sob ataque: considerações sobre assédio judicial e instrumentalização do processo contra jornalistas.

Christiano Mourão
8 min readMay 22, 2024

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No dia 16/05/2024, o STF deu início ao julgamento de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6792 e 7055), que falam sobre o assédio judicial contra jornalistas. É ótimo ver que o tema finalmente chegou ao Supremo, cuja decisão sobre a matéria tem de repercutir nas causas em trâmite nas instâncias ordinárias.

Até o momento da publicação desse texto, são quatro votos favoráveis à tese que define o assédio judicial como “o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa”. Já é um avanço, sobretudo para dar a atenção necessária para um problema que vem se agravando no mundo e sensivelmente no Brasil, mas que ainda não atende a extensão do problema, porque há outras formas menos escandalosas de instrumentalizar o processo como meio de atacar jornalistas pelo simples exercício de seu ofício.

Pormenorizo a seguir com algumas referências técnicas, mas evitando o juridiquês o quanto me for possível porque, como o texto anterior, isso não é um artigo jurídico. Por exemplo, para fins de fluência da leitura, basta você saber que a ADI é uma a ação proposta diretamente no Supremo na qual algumas pessoas especificadas em lei tem a legitimidade de arguir a inconstitucionalidade de uma lei, de uma disposição legal ou da interpretação que se dá a uma lei.

Nos casos das duas ADIs em julgamento, a ABI e a Abraji pedem uma interpretação conforme a constituição de disposições do Código Civil e da Lei dos Juizados Especiais, para evitar uma estratégia de se espalhar processos por diversos municípios de todo país, o que na prática impossibilita um jornalista de se defender.

Entenda a estratégia. A Lei dos Juizados Especiais prevê que as causas até determinado valor possam ser propostas sem pagamento de custas e sem a necessidade de advogado. Na prática, é uma forma muito específica de justiça gratuita, com a finalidade de permitir um amplo acesso ao Judiciário para causas mais simples.

Para tornar a Justiça ainda mais acessível, a Lei prevê também que o domicílio do autor pode ser escolhido como foro competente para processos que visam indenização por danos de qualquer natureza, inclusive moral. Isso permite que uma pessoa que tenha sofrido algum tipo de dano causado por alguém que mora do outro lado do país, possa dar início ao processo no foro do seu município. É uma exceção prevista em lei, porque a regra geral de competência para o processo é a do domicílio do réu.

Naturalmente que, como toda regra que vem para um bem, a Lei pode ser pervertida por pessoas mal-intencionadas. Em um cenário jurídico no qual a Justiça permite que uma pessoa comece gratuitamente um processo no foro de seu domicílio pela ocorrência em tese de dano moral, está aberta a oportunidade de se processar alguém pelos motivos mais absurdos, camuflados de exercício do direito de petição ao Poder Judiciário.

Agora imagine esse mesmo cenário no qual centenas de pessoas espalhadas por todo o país, de forma visivelmente orquestrada, se valem desse expediente para processar um jornalista. Essa tática foi utilizada por pastores da Igreja Universal contra o escritor João Paulo Cuenca, em caso que se tornou célebre, tendo como causa de pedir o teor de um artigo de sua autoria, especialmente o título, que parodiou famosa frase atribuída a Diderot.

Casos como esse chamam mais atenção, mas, como disse, não são a única forma assédio judicial no sentido de instrumentalização do processo contra jornalistas. Por exemplo, há um conhecido ator político da extrema-direita que processa qualquer pessoa que faça qualquer menção negativa a ele, por mais que a reportagem (ou o artigo científico ou qualquer material similar) se limite a constatar um fato ou exercer o direito de crítica.

Perceba que é a mesma tática empregada pelos pastores contra Cuenca, com a diferença de que, em vez de ser muitos processando um único, é um único que processa qualquer um que se atreva a apontar conduta questionável de sua parte. Nos dois casos, a finalidade é menos de vencer o processo e mais de mandar um recado. É uma tática de silenciamento. É intimidação com objetivo de provocar o efeito inibidor — o chilling effect, como foi denominado nos EUA.

Sabendo dos riscos de se verem envolvidos em demandas judiciais, os profissionais da área têm uma reação humana natural de autopreservação, seja não investigando, seja suavizando sua reportagem a termos que a tornam inertes e sem o impacto que deveria ter, pelo temor de ter de enfrentar os custos financeiros e emocionais de figurar no banco dos réus.

É por essa razão que os processos contra jornalistas pelo exercício de seu ofício devem ser examinados com olhos atentos pelo Poder Judiciário, independentemente de se tratar de um litigante contumaz ou não. É fundamental um exame crítico dessas provas inicialmente apresentadas para avaliar se elas têm substância para sustentar as acusações contidas na petição inicial. Se não têm, se é possível identificar de plano que se trata apenas de uma reportagem que narra fatos, com termos sóbrios (ainda que contundentes), pautados por uma apuração técnica e observados critérios éticos fundamentais do bom jornalismo, o processo deve ser fulminado na primeira oportunidade que a lei permitir. E as leis processuais contam com dispositivos que permitem — e a bem da verdade exigem — que um magistrado tome tal providência.

Essa perspectiva é mais fácil de visualizar na seara criminal. O Código de Processo Penal expressamente confere ao juiz o poder-dever de rejeitar uma denúncia ou queixa-crime quando ausente um dos elementos essenciais para a identificação de uma conduta criminosa. No caso de acusações contra jornalistas, via de regra as imputações são pela prática de crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), que para sua caracterização exigem o dolo específico, isto é, a finalidade específica usar uma reportagem como meio para de macular a honra de alguém.

Agora pensemos no ofício de jornalista. É inerente à sua profissão a revelação de fatos de interesse público mediante uma narração. Não raro esses fatos revelados desabonam a conduta de alguém. Afinal, o texto foi redigido com a intenção de ferir alguma honra? Não. A intenção foi apenas de reportar um fato, o que afasta o dolo e com ele a conduta criminosa. É o que em direito chamamos de animus narrandi. Nunca existiu uma intenção de ofender, portanto não pode ter havido crime.

É sob essa ótica que os processos contra jornalistas pelo teor de uma reportagem devem ser vistos pelo Poder Judiciário. O animus narrandi é presumido no exercício daquele ofício. Cabe ao juízo, ao receber a queixa-crime, fazer um exame crítico da prova pré-constituída — a reportagem — que necessariamente deve acompanhar a inicial. Não observando qualquer elemento que possa descaracterizar o animus presumido, é dever do juízo rejeitar a inicial acusatória.

Infelizmente não é o que acontece regularmente. Há uma quantidade significativa de casos em que o jornalista é intimado a apresentar sua defesa e, depois disso, a queixa é recebida. Argumenta-se que, naqueles momentos iniciais do processo, bastariam os indícios mínimos de autoria e materialidade para a ação prosseguir, não cabendo ali um exame pormenorizado das provas que acompanham a inicial.

É certo que não cabe, nesse momento inicial, um mesmo juízo de certeza que se exige para uma sentença, mas isso não se confunde com limitar o recebimento de uma denúncia ou queixa ao cumprimento de formalidades que tornam a inicial apenas tecnicamente correta. O devido processo penal é, por excelência, um direito do réu contra os excessos da acusação, seja por parte do Estado, seja por particulares. A incerteza que leva ao recebimento de uma inicial deve ser interpretada como uma forma de se permitir posteriormente uma sentença absolutória em casos que, naquele momento, as provas indicavam uma possibilidade de ter ocorrido um crime. Na mesma linha de raciocínio, se as provas demonstram desde logo a inexistência de crime, cabe ao juízo rejeitar a queixa.

Por essa razão que um magistrado, já nos momentos iniciais do processo, deve fazer um exame crítico da reportagem atacada. Deixar esse exame para o final da instrução porque a peça inicial cumpre as formalidades legais, é privilegiar um já controverso in dubio pro societate (que significa isso mesmo que parece) em uma ação penal privada, em detrimento de uma profissão cujo exercício é de interesse público.

O que nós temos aqui, na verdade, é um conflito constitucional de direitos de um particular — o direito de ter uma causa apreciada pelo Poder Judiciário — versus alguns outros tantos direitos constitucionais, como o da liberdade de expressão, a liberdade de ofício, o direito coletivo à informação correta, entre outros. E nem há que se falar que o direito do particular teria sido negado, porque a causa teria sido apreciada e julgada improcedente na forma prevista em lei.

No Direito Civil a situação pode parecer um tanto mais difícil, dada as suas características, mas mesmo o Código que regulamenta esta espécie de processo permite uma solução ao menos célere quando o exame da causa é feito à luz do interesse público no livre exercício do jornalismo.

Uma petição inicial precisa demonstrar o interesse processual. Similar ao que ocorre com uma queixa-crime, este interesse processual precisa ser verdadeiro, não se limitando a meras descrições de fatos que preenchem requisitos formais. Também nesses casos cumpre ao juízo um exame crítico da prova fundamental da causa, qual seja, a reportagem. Se ficar patente que se trata apenas de bom jornalismo e que a insurgência do autor decorre, na melhor das hipóteses, de simples insatisfação sua, a inicial pode ser rejeitada.

Reconheço, no entanto, que essa proposta é mais arrojada, porque o Direito Civil permite debater culpa, como um eventual erro na apuração. Nesses casos, caberia ao autor da demanda demonstrar que tentou contato com o jornalista que redigiu a reportagem (ou com o veículo na qual ela foi impressa) para a devida correção. Somente havendo recusa, haveria o interesse processual.

Fora isso, também no processo civil uma reportagem deve contar com a presunção da intenção de apenas relatar um fato. Se superado o momento inicial, se não for caso de extinção do processo sem julgamento do mérito, o processo pode ser sentenciado sem muito se alongar. A sequência seria a intimação do jornalista para apresentação da contestação e, a depender de seus termos, da réplica. Inexistindo elementos capazes de abalar a presunção de mero exercício regular do jornalismo, o juízo pode (deve) julgar o processo, encaminhando uma sentença de improcedência dos pedidos autorais.

Seja no Direito Civil, seja no Direito Penal, o Poder Judiciário precisa estar atento aos processos nos quais jornalistas figuram como réus. O jornalismo livre e profissional vem sendo paulatinamente e reiteradamente atacado em todo mundo por ser um dos mais resistentes bastiões de defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito contra os ataques de grupos ideológicos extremistas. É ele quem desmascara e divulga mentiras e más intenções dessas pessoas. A fundo, o jornalismo é atacado pelas mesmas razões que o são o Supremo e, mais especificamente, o Ministro Alexandre de Morais. São parte do grupo que é uma pedra no sapato do extremismo.

Sempre vemos representantes do Judiciário, inclusive Ministros da mais alta Corte, ressaltando a importância do Jornalismo como um dos pilares fundamentais sobre o qual se sustenta o Estado Democrático de Direito. Pois está na hora de passarmos para além das palavras e tomarmos medidas concretas para que este pilar continue firme, sob pena de comprometer toda a base de sustentação da democracia.

Passar a examinar processos contra jornalistas à luz do interesse público da profissão é o passo fundamental. Identificando-se de imediato que se trata de um processo descabido, o Judiciário deve prontamente rechaçá-lo. Os assediadores precisam saber que suas tentativas não vão prosperar. Entendimento contrário faz com que seu objetivo de provocar o efeito inibidor seja alcançado. Normalizar o prosseguimento de processos por mero atendimento a questões formais subverte a ideia de devido processo legal e fere o princípio da dignidade humana, ao fazer do processo um fim em si mesmo e da pessoa o seu objeto.

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