Em meio à crise, não erre a crase!

Christian von Koenig
6 min readMay 27, 2018

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Se você abriu recentemente qualquer portal de notícias, deve ter reparado em uma expressão usada a torto e a direito, como nesta manchete:

Notícia da Folha de S.Paulo, de 24/05/18.

Ou nesta:

Notícia da Isto É, de 25/05/18.

E na minha favorita:

Notícia da Veja São Paulo, de 26/05/18.

Percebeu o que todas têm igual?

Escrevo este artigo ouvindo “Sula Miranda — Volume 1 (Caminhoneiro do Amor)”. Imagem via Vinil Records.

Falo de “em meio a”. Essa locução prepositiva é muito comum no português do Brasil e tem a função de preposição, estabelecendo uma relação entre outras palavras ou partes da informação. Nos exemplos da imagem do topo, ela sempre liga “a greve”, “a crise” ou “a paralisação” a alguma situação. O problema é que em 100% desses casos ela foi escrita erradamente.

“Em meio a” está registrada no dicionário Caldas Aulete como “durante o desenrolar de; no decorrer de” e ainda “cercado por; no meio de”. Os dicionários portugueses, a exemplo da Infopédia e do Priberam, não a registram, sendo as formas “em meio de” e “no meio de” preferidas em Portugal.

Logo voltaremos aos significados da expressão e mostrarei alguns truques para substituí-la; se você me ler até o fim, esse será seu prêmio. O que deve estar pensando agora é: Christian, não enrole e diga de uma vez o que está errado!

Está bem, está bem! Em todas essas manchetes faltou colocar o acento grave que indica a crase.

Lembremos: crase é a junção de duas vogais com natureza sonora semelhante. Em português, seu tipo mais conhecido é a fusão da preposição “a” com os artigos definidos “a” e “as”. Como a locução “em meio a” já traz a preposição em sua grafia, quando se encontrar com os artigos “a” ou “as” pela frente, ela vai formar “em meio à” ou “em meio às”.

Você sabia? Ao longo da história da língua portuguesa, outras vogais receberam a crase e transformaram palavras. “Seer”, “teer”, “veer” e “leer” são as formas arcaicas dos atuais verbos “ser”, “ter”, “ver” e “ler”. O espanhol, nossa língua parente, não fez a crase em alguns casos, como o “leer” que foi mantido.

Alternativamente, se “em meio a” ligar-se a um artigo definido masculino, virará “em meio ao”, como “em meio ao caos”, “em meio ao desabastecimento” etc. Sabe outra locução que obedece à mesma estrutura? “Junto a”, com sentido de estar perto: você diz que o carro está junto à calçada ou que está junto ao meio-fio. É importante fazer tais paralelos: lembrar-se de outros exemplos já conhecidos e que são parecidos com a sua dúvida ajudam você a entender o padrão por trás da regra.

A coisa fica um pouco mais complicada quando “em meio a” tem logo em seguida artigos indefinidos, pronomes demonstrativos e palavras no plural.

Tome este café para não dormir enquanto explico as regras da crase. Foto de Tyler Nix via Unsplash.

Artigos indefinidos (um, uma, uns, umas): como a crase da preposição “a” ocorre na contração com o artigo definido feminino, “em meio a” diante de artigos indefinidos não tem acento. Por exemplo: Em meio a uma greve de vários dias.

Pronomes demonstrativos (esta, este, isto, essa, esse, isso e respectivos plurais): é a mesma situação dos artigos indefinidos. Exemplos: Em meio a este problema. Paramos para descansar em meio a essa longa viagem. Em meio a isso tudo que você falou, tirei uma grande lição.

Outros pronomes demonstrativos (aquela, aquele, aquilo, a tal, a mesma, a própria e seus plurais): aqui vale a junção de duas vogais com mesma natureza, ainda que pareça estranho fazer a crase em “aquele” e “aquilo”. Exemplos: Em meio àquela situação complicada. Em meio àqueles anos. Em meio àquilo tudo. Ele se saiu bem em meio à tal função de liderança. Em meio à mesma crise de sempre. Ela encontrou força para vencer em meio às próprias ambições.

Caso especial junto ao pronome relativo “que”: esta crase acontecerá quando você usar “em meio a” para se referir a alguma palavra feminina que já tenha mencionado no texto e não precise mais nomeá-la, deixando-a implícita. Por exemplo, em vez de uma frase como “As lutas com a escrita são muitas, mas em meio às lutas que travo com a revisão parecem até fáceis”, é possível deixar de fora a segunda “lutas”: As lutas com a escrita são muitas, mas em meio às que travo com a revisão parecem até fáceis.

Plurais genéricos, inclusive de palavras femininas: não levam artigo definido, muito menos crase! É a diferença entre escrever “não vou a aulas” e “não vou às aulas de Português”, ou “assisto a novelas” e “assisto às novelas da Globo”, ou ainda “os prêmios foram dados a escritoras brasileiras” e “os prêmios foram dados às escritoras Ana Martins Marques e Bruna Beber”. Último exemplo: Em meio a greves, tudo para. A greve aqui é um conceito geral, e não a greve específica dos caminhoneiros.

Pronto, acabou a tortura com as regras!

Depois de tantas regras, você merece um brinde! Foto de Yutacar via Unsplash.

Vamos passar agora à parte divertida da escrita criativa. No começo deste artigo prometi apresentar algumas alternativas ao “em meio a” para quando você for escrever sua própria manchete sobre a crise.

A primeira opção — e mais óbvia — é trocar por “durante”. Durante a crise de abastecimento, Temer viaja ao Rio para distribuir carros.

A segunda é a expressão “ao longo de”. Ao longo da greve, uma figura é requisitada na internet: Sula Miranda.

A terceira é uma locução com o sentido de “no decorrer de” ou “no avançar de”, podendo-se usar diferentes verbos aí no meio. Os preços da gasolina e do diesel disparam no prolongar da greve.

Em algumas situações, “entre” também pode ser útil. Entre tantas crises que vivemos este ano, a greve dos caminhoneiros merece destaque.

Ou, se tiver um pouco mais de espaço, reescreva a frase e use outro tipo de ligação: conforme, à medida que… Doze regiões do DF ficam sem gás de cozinha conforme a greve de caminhoneiros continua. Os preços da gasolina e do diesel disparam à medida que a greve avança. E lembre-se da dica que já dei no LinkedIn sobre usar “à medida que” do jeito certo.

Em meio a X Em meio de X No meio de

Nas pesquisas sobre o assunto, encontrei opiniões acaloradas de colegas de além-mar que consideram nossa expressão brasileira “em meio a” uma barbaridade. Lá, pelo que entendo, valem “em meio de” e “no meio de”. (Se você é de Portugal, diga-me qual é sua impressão a respeito.)

Aqui no Brasil isso está certo e segue o baile! A última dica que deixo para você é fazer a diferença de sentido entre “em meio a” e “no meio de”.

Como a palavra “meio” tem tanto as definições de “que fica em um ponto médio; no centro de algo; metade” quanto de “um tanto” e “em” não possui a especificidade de um artigo definido, o resultado é uma vaga definição de tempo, ação ou lugar.

Considere as frases: Em meio a tantas felicidades, seu amor foi a maior. Eles brincam de esconde-esconde em meio do parque. Nelas, você vê como pesa a imprecisão de “um tanto”? Poderíamos até reescrevê-las assim: De tantas felicidades, seu amor foi a maior. Eles brincam de esconde-esconde pelo parque.

Se você quiser dar a impressão de centro ou de metade, “no meio de” é uma escolha melhor. Exemplos: Viajaremos no meio de junho (no dia 15 ou próximo). O nariz fica no meio do rosto. Em meio à greve, no meio da passeata um carro de som orientava os manifestantes que estivessem à frente e atrás.

É claro que a crase é um tema mais complexo que isso, mas aqui foquei só em relação a “em meio a”. Assim que surgirem mais dúvidas comuns, pode ter certeza de que vou esclarecê-las. Basta me seguir no LinkedIn para acompanhar a discussão!

Essa explicação foi útil para você? Tem algum trecho que precise de esclarecimento? Deixe sua opinião nos comentários.

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Christian von Koenig

Eu vim, vi e escrevi. Autor de "Passagem para lugar nenhum" e "Acende uma fogueira para a longa noite". Também escrevo a newsletter Newslenta. @chrisvonkoenig