Precisamos de uma linguagem mais inclusiva na redação (veja como!)

Christian von Koenig
7 min readMay 26, 2018

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Foto de Tanja Heffner via Unsplash.

Há poucos dias revisava um texto no Google Docs e nele a palavra “programadoras” aparecia grifada em vermelho.

Li caractere por caractere para ter certeza de que meus olhos não me traíam, joguei a palavra no Word e ali também aparecia grifada e isso me intrigou. O que poderia estar errado nela? Pois bem, a sugestão do banco de dados é “programadores”.

Não é que os aplicativos de texto sejam machistas por si, nós é que não temos alimentado o banco de dados com informações o bastante para ele entender que existem sim programadoras. É curioso como se baseie tanto a persona de inteligências artificiais em modelos femininos — Alexa, Siri, Cortana — , mas ao colocá-las para aprender diretamente de seres humanos corre-se o risco de tornarem-se misóginas, como a Tay da Microsoft.

O debate engloba vários outros algoritmos e outras questões sociais, a exemplo das buscas do Google e o racismo na era digital. A verdade é que a grande massa de usuários criou tais situações e somente por meio do uso consciente da imagem, com iniciativas como Young, Gifted and Black, Mulheres InVísiveis e tantas outras sendo apoiadas é que se pode mudar esse contexto.

Com base nessas questões e na leitura mais que recomendável do “Manual para uso não sexista da linguagem”, de Paki Venegas Franco e Julia Pérez Cervera, trago a seguir algumas propostas de inclusão de gênero na comunicação. São truques simples em três tópicos, coisas do dia a dia da redação, mas que costumam passar batidos. No mais, a leitura completa do PDF gratuito traz mais casos para estudo.

“Uma das formas mais sutis de transmitir essa discriminação é através da língua, pois esta nada mais é que o reflexo de valores, do pensamento, da sociedade que a cria e utiliza. […] Assim, a língua não só reflete, mas também transmite e reforça os estereótipos e papéis considerados adequados para mulheres e homens em uma sociedade.” Franco & Cervera, tradução de Beatriz Cannabrava.

Quanto a esse trecho do manual, cabe uma pequena ressalva sobre os vários sentidos da palavra “discriminação”. É preciso fazer uma discriminação na comunicação, no sentido de discernimento, que contemple cada um dos gêneros, ou utilizar uma linguagem a mais neutra possível, para evitar aquela discriminação desfavorável que apaga o feminino.

Outra distinção é importante: entre o gênero das palavras e o gênero das pessoas. Não me concerne comentar o das pessoas, porém o das palavras são dois: feminino e masculino, salvo os pronomes demonstrativos indefinidos de gênero e número “isso, isto, aquilo”. Esse é nosso escopo de trabalho.

Sei bem que, das muitas regras do português, é comum usar uma palavra masculina pelo todo que ela representa. Por exemplo, vejo muito “homem” para se referir à humanidade. Está certo? Está. É igualitário com as mulheres e com pessoas transgênero? Não. Custa trocar por “humanidade” ou “pessoas”? Não.

É disto que se trata: pensar nossas palavras para uma representatividade mais plena da realidade.

1) Sobre as programadoras, contadoras e outras ocupações

Vamos começar já com os anúncios de vagas de emprego. Antes mesmo de você poder mudar a forma como se faz comunicação, deve lidar com o fato de os empregadores oferecerem “VAGA DE REDATOR”, “VAGA DE DIRETOR DE ARTE” etc. Se dependesse desses anúncios, “redatora” e “diretora” tampouco entrariam no banco de dados do editores de texto.

Sempre que possível, em casos que requeiram abrangência em vez de especificidade, troque o cargo pela função. “VAGA DE REDAÇÃO” ou “VAGA NA REDAÇÃO” é mais elegante que “VAGA DE REDATOR(A)”. Esse “a” entre parênteses é mais adequado a textos formais, sisudos.

Quando o texto for mais longo, com parágrafos e tudo, vale usar as formas masculinas e femininas inclusive como recurso de ênfase. “Empresárias e empresários de todo o Brasil compareceram ao evento”, “cresce a busca por programadores e programadoras no mercado de trabalho” e assim por diante. Na política, em que cada ouvinte é um voto em potencial, isso é feito com frequência como forma de aproximação.

Nos dias das profissões a questão fica um pouco mais complicada. Como resolver um Dia do Contador, por exemplo? Aí só a criatividade salva.

Ao invés de fazer a brilhante chamada “Feliz Dia do Contador!”, pode-se compor uma só mensagem que englobe contadores e contadoras ou escrever duas mensagens específicas. Se apenas uma peça for possível, reduza ao máximo o nome do dia (tornando-o quase uma legenda) e foque em um texto abrangente.

Em termos de redação de leis (que dão nome a esses dias) temos muito o que evoluir no Brasil. A solução mais simples seria referir à profissão, e não ao cargo. Até lá, precisamos de paciência e molejo da linguagem.

Apenas não recomendo no ambiente profissional o uso do “x” ou “@” como gênero neutro. Primeiro, porque o português não funciona assim. Você pode usar pessoalmente “amigx”, mas “professorx” já demonstra as limitações desse recurso. Segundo, isso cria maiores dificuldades para o reconhecimento por bancos de dados e para os cegos compreenderem.

Temos dentro do português todas as ferramentas para uma comunicação mais inclusiva. Não é necessário reinventar o idioma, basta usá-lo mais com mais critério. Por sinal, note como neste texto não me refiro a mim nem a você por qualquer gênero. Isso me leva ao próximo tópico.

2) Sobre trocar adjetivos por verbos e outras neutralizações

Vejamos o seguinte exemplo:

“Você está cansado de levar desaforo durante o expediente? Ninguém é pago para isso, reclame já os seus direitos de trabalhador!”

Temos aí três palavras com funções adjetivas que poderiam ser trocadas sem prejuízo de entendimento a quem lê. (Obs.: ao invés de “ao leitor” ou “à leitora”, preferi a forma neutra “a quem lê.) Ficaria assim:

“Você cansou de levar desaforo durante o expediente? Ninguém recebe para isso, reclame já os seus direitos trabalhistas.”

Diante disso, se você me disser que esses malabarismos complicam a redação, então lhe dou as boas-vindas ao fantástico mundo da escrita, onde não há superação criativa sem antes reconhecer certos limites.

Adjetivos, de qualquer modo, são muletas do texto. Uma vez que você não precise mais deles, verá quão longe pode chegar.

Agora, imagine que esteja escrevendo uma matéria sobre um depoimento anônimo de uma pessoa transgênero ou drag queen. Não lhe foi informado o gênero preferido de tratamento. Dentro desse limite hipotético, precisará substituir outras classes de palavras — como os pronomes “ele, ela, dele, dela” — e basear toda a concordância em substantivos que representem “a fonte do relato”, “essa pessoa” e por aí vai.

No caso de falar diretamente com alguém, e esta é uma dica de ouro, é muito fácil trocar os pronomes definidos e suas variáveis “o, -lo, -no, a, -la, -na” por “você”, que é invariável. Assim, se conduzisse a entrevista da hipótese anterior, em lugar de “o que a levou a essa transformação?”, seria melhor a opção “o que levou você a essa transformação?”.

Nem só por verbos você pode trocar um adjetivo; locuções e expressões populares cumprem bem esse papel. Para ilustrar, outra manobra que costumo usar é substituir “fique ligada” ou “fique atento” por “fique de olho”, que dá na mesma.

3) Sobre entender sua audiência e falar com ela de acordo

Eis algo que para mim não faz o menor sentido: se há dois garotos em uma sala, digo “olá, garotos!”; se há dois garotos e duas garotas; “olá, garotos!” ainda é válido; mas por que se pode dizer isso quando há dois garotos e quatro garotas na sala? “Crianças” e “garotas” aqui deveriam estar no mesmo nível de possibilidade, mas não “garotos”.

Já vi colegas de profissão expressarem-se sobre seus grupos de trabalho pelo masculino, quando só havia um homem na equipe. Ainda que esteja certo pela gramática, isso é desonesto com o contexto. Relembrando: “É disto que se trata: pensar nossas palavras para uma representatividade mais plena da realidade”.

Portanto, se você se dirigir a mim pelo feminino em meio a um grupo majoritário de mulheres, digamos “vocês estão preparadas?”, não verei problema algum nisso. É a questão de falar com a maior parcela da sua audiência.

Vejamos o exemplo hipotético de uma marca de roupas fitness femininas. Nas redes sociais, de vez em quando escapa alguns tratamentos masculinos. Ora, é bem possível que homens leiam o conteúdo da marca, mas as mulheres são em suma o público-alvo.

Assim, quando essa marca diz que sua nova calça é “perfeita para corredores amadores”, temos aí um vacilo de comunicação da persona. Perceba sua audiência, com poucos cliques dá para saber as exatas percentagens feminina e masculina que seguem suas redes, por exemplo, e abrace o gênero predominante. Logo, sua calça é perfeita para corredoras amadoras.

Conclusão

Essa foi uma pequena amostra das situações que encontro em que a representatividade de gênero poderia ser mais bem trabalhada por nós, profissionais de comunicação. Para mais exemplos, reforço o convite à leitura do “Manual para uso não sexista da linguagem” produzido pela Red de Educación Popular Entre Mujeres de Latinoamérica y Caribe, assim como do manual produzido pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul, baseado naquele e mais elaborado.

[P.s.: Recomendo também a leitura de “Linguagem não sexista na publicidade”, de Gabriela Rodrigues, que resolve com praticidade muitas outras questões.]

Se você tiver outros exemplos de comunicação que precisamos desenvolver nesse aspecto, por favor deixe seu comentário para enriquecer o debate.

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Christian von Koenig

Eu vim, vi e escrevi. Autor de "Passagem para lugar nenhum" e "Acende uma fogueira para a longa noite". Também escrevo a newsletter Newslenta. @chrisvonkoenig